Filme descortina vasta negociata da época, e vai
além da demolição do Palácio Monroe, batizado em homenagem a um presidente dos
Estados Unidos!
Léa Maria Aarão Reis
O
excelente documentário do carioca Eduardo Ades, Crônica da demolição, em cartaz, é mais uma ação
levantando uma ponta do véu que encobre as vergonhas da aliança capital e
política no Brasil. Através de um episódio emblemático, do passado – a
demolição do Palácio Monroe, o ex-Senado Federal - em 1976, é desvelado um
pouco do que se passava e se passa ainda hoje, de realidade, na governança do
país. E a arrogância, a empáfia e o cinismo da plutocracia brasileira.
No caso
do filme, o primeiro longa-metragem do diretor, o tema trata das manobras
fraudulentas das elites (no caso, as do Rio de Janeiro), patrocinadoras dos
operadores dos seus crimes: os militares golpistas, os ditadores de ocasião,
levas da política e do judiciário, especialistas de diversas extrações,
economicistas e alguns jornalistas, os estetas bem postos, todos eles estafetas
da turba que desfila nos depoimentos dessa crônica cinematográfica, os quais,
na mídia corporativa, se garantem com o silêncio sobre seus embustes e com as
campanhas que encobrem as fraudes desses poderosos senhores dos negócios.
É um
filme que descortina uma vasta negociata da época, e vai além da demolição do
prédio, um símbolo republicano, o Palácio Monroe, de estilo arquitetônico
eclético – e assim batizado em homenagem a um presidente dos Estados Unidos! -,
na cabeceira da Praça da Cinelândia, no Centro do Rio.
Um
‘’trambolho’’, como diziam os modernistas na época, incluído aí o arquiteto
Lúcio Costa, para os quais o estilo eclético não tinha valor. Embora, como diz
um arquiteto entrevistado no filme, seja um estilo ‘’mestiço’’. Como
praticamente todos nós.
A
desapropriação do terreno e a demolição autoritária se deram por resolução de
Ernesto Geisel. É apenas uma peça, mas significativa, no quadro geral da
destruição sistemática do nosso patrimônio, através dos tempos, dos nossos
registros históricos, da nossa memória e da cultura. Manter deste modo, num
eterno presente medíocre, submisso e precário, um povo infantilizado, passivo e
devidamente domesticado é o objetivo das oligarquias.
“Preservar
é um ato afetivo,” diz um arquiteto, nessa crônica da destruição.
Filho de
arquitetos, Eduardo Ades ainda era garoto quando passou, um dia, pela
Cinelândia e ouviu da sua mãe a história do Monroe, sede do Senado Federal até
a transferência do governo para Brasília, e situado na praça hoje adornada por
um chafariz – seco, sem água. No subsolo do terreno arrasado, se estende um
gigantesco estacionamento para automóveis. Excelente negócio.
A pesquisa
iconográfica de Remier Lion é primorosa, os filmetes da época, recuperados, são
preciosos. A devassa relembra os argumentos do governo da ditadura
civil-militar e asseclas, ao justificarem a derrubada do prédio cujos alicerces
prejudicariam, segundo os generais e associados, a construção da primeira linha
de metrô na cidade, então projetada – uma mentira deslavada.
O som da
música de Phillip Glass e de Villa Lobos enfatiza imagens recorrentes do
cemitério de prédios de vidro, com as ‘’cristaleiras’’ à moda americana em que
se tornou o Centro da cidade. Assim, o filme contesta os motivos que levaram à
demolição do edifício, ao invés do tombá-lo.
Mostra as
alianças bastardas do governo com empreiteiros – tão atual! Não muda! -, a
campanha triunfal pró-demolição do prédio desferida pelo jornal Globo (sempre
ele), e os interesses de especuladores imobiliários incluindo aí o próprio
grupo Marinho, que logo viria a ampliar o conglomerado da construção civil na
cidade, com a sua empresa São Marcos. O projeto, dizia-se na época, à boca
pequena, seria levantar duas torres de edifícios ‘’modernos’’ – com a
associação a grupos japoneses - no terreno de valor quase inestimável no
mercado imobiliário: o mais belo cartão de visitas do Rio de Janeiro, com o Pão
de Açúcar ao fundo em perspectiva privilegiada.
Os
depoimentos de urbanistas, arquitetos e políticos, no doc, são entremeados com os tais
filmes que mostram um Rio de Janeiro em vias de modernização. E o caso do
Monroe é o gancho utilizado pelo cineasta para falar sobre algumas das dezenas
de intervenções urbanísticas pelas quais passou o Rio de Janeiro, no começo do
século passado e nas décadas de 1960/70, muitas delas irresponsáveis, outras
criminosas mesmo.
Fonte: Carta Maior
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