Ao retirar o clássico do catálogo
para posteriormente reinseri-lo com contexto, Warner e HBO promovem reparação
histórica.
Por
James Cimino*
Esta
semana foi marcada por uma nova polêmica racial, desta veznão envolvendo a
polícia, mas a indústria do entretenimento dos Estados Unidos.
O serviço de streaming HBO Max, que pertence ao grupo Warner Brothers, decidiu
retirar de seu catálogo o clássico de 1939, vencedor de oito Oscar, inclusive
de melhor filme, “…E o Vento Levou”.
A
decisão foi tomada após John Ridley,
roteirista do filme “12 Anos de Escravidão”, publicar um artigo no jornal Los Angeles Times,
em que pedia que o filme fosse retirado do catálogo “PELO MENOS POR ENQUANTO”. Essa informação vem em caixa alta porque ela é
muito importante e tem sido ignorada no debate.
No
mesmo artigo, Ridley disse não acreditar em censura nem
que gostaria que o filme fosse “enfiado em um cofre em Burbank”, cidade do
condado de Los Angeles onde se encontram os estúdios da Warner. Seu pedido era que, em respeito ao que está
acontecendo neste momento nos Estados Unidos, o filme fosse retirado e depois
reinserido com outros filmes e documentários que retratassem a Guerra da
Secessão com mais fidelidade ao seu contexto histórico.
Segundo Ridley, o clássico dirigido por Victor Fleming e
estrelado por Vivien Leigh, Clark Gable, Leslie
Howard, Olivia de Havilland e Hattie McDaniel “romantiza
os horrores da escravidão”. E
ele está certo. Tanto que a produtora, que detém os direitos sobre o filme,
decidiu acatar o pedido do diretor.
Por
que não se trata de censura
Imediatamente
um debate infundado sobre censura tomou conta das redes sociais. Infundado
porque a HBO Max realmente pretende remover o filme apenas temporariamente. Segundo porque a ação da produtora e
de sua plataforma de streaming não
configuram censura. Não foi o governo dos Estados Unidos que exigiu a remoção
da obra do catálogo nem tampouco determinou sua destruição.
Não
podemos esquecer que censura é sempre estatal e institucional. Pelo menos é
isso que sugere a professora Cristina Costa, diretora do Observatório de
Comunicação, Liberdade de Expressão e Censura da USP (Obcom), em uma série de
reportagens sobre a censura às novelas durante a ditadura militar publicada em 2013 no UOL.
A
professora inclusive destaca que a sociedade civil “pode e tem o direito de não
querer ver certas coisas na TV, mas não pode ser um órgão do governo que irá
decidir isso”. Foi o que aconteceu. Um representante
da sociedade civil fez o pedido e a produtora e proprietária do filme resolveu
acatá-lo em consideração ao momento político pelo qual o país está passando. E
nunca é problema adicionar informação, contanto que o filme seja mantido em sua
edição original.
Mas por que este filme que aprendemos a
amar por ser um dos primeiros épicos do cinema falado e em cores é tão ofensivo
aos descendentes de escravos dos Estados Unidos?
Muita
gente que defende o retorno do longa-metragem ao catálogo da HBO Max acusa o
estúdio de promover revisionismo histórico, pois o filme faz o “retrato de uma época”. Outra
falácia. O pedido de John Ridley se baseia exatamente no caráter revisionista e
romantizado que o filme faz sobre a história americana, mais especificamente
sobre a Guerra de Secessão (1861 — 1865).
Tanto
que não é de hoje que o filme tem gerado polêmica. Sua exibição tem sido
cancelada em diversos cinemas do sul dos Estados Unidos desde pelo menos 2017,
quando começou o movimento #OscarSoWhite, que criticava a ausência de artistas negros entre
os indicados aos prêmios da Academia. Naquele ano, um cinema de Memphis,
Tennessee, que sempre exibia o filme anualmente, cancelou a sessão por
considerá-lo “insensível”.
As
verdadeiras vítimas
Sua
insensibilidade reside no fato de que o filme mostra o sul americano como uma
vítima da Guerra de Secessão, a guerra civil americana, quando na verdade foram os sulistas, motivados pelo
racismo e por seu suposto “direito” a comercializar pessoas, além de
torturá-las e obrigá-las a trabalhos forçados. As vítimas dessa época, portanto,
eram os negros, que são praticamente apagados do filme ou retratados de forma
cômica e servil.
A
Guerra Civil Americana começa em 1861 quando Abraham Lincoln é
eleito presidente pelo Partido Republicano.
Sua principal plataforma era acabar com a escravidão nos Estados Unidos.
Lincoln não era de família escravocrata, mas desde criança aprendeu a odiar a
escravidão — diferentemente da maioria dos Pais Fundadores da América (John
Adams, Benjamin Franklin, Alexander Hamilton, John Jay, Thomas Jefferson, James
Madison, and George Washington). Destes, apenas o advogado John Adams, que
depois da independência se tornaria o segundo presidente americano, e Benjamin
Franklin não tinham escravos.
Thomas
Jefferson, que foi o terceiro presidente, que escreveu a Declaração de
Independência e cujo memorial em Washington, D.C., mostra um texto seu chamando
o tráfico negreiro de crueldade, tinha 607 escravos, além de pelo menos cinco
filhos bastardos com uma escrava chamada Sally Hemings. Seus filhos com ela
eram seus escravos, não tiveram direito a herança depois de sua morte, e Sally
começou seu “romance” com Jefferson quando tinha apenas 14 anos.
Pelos padrões de hoje, o terceiro
presidente americano, responsável pela primeira grande expansão americana em
direção ao oeste, era um pedófilo. Fora isso, investigações genealógicas sobre
os herdeiros negros dele mostram que alguns dos filhos de Sally poderiam ser,
na verdade, filhos do irmão mais novo de Jefferson.
Ou
seja, ela era estuprada em família. Há
quem diga que o que houve entre eles não foi abuso sexual, mas um romance.
Outra mentira histórica, afinal, quando uma pessoa é propriedade de outra, que
detém poder de vida e morte sobre ela, a psicologia chama de síndrome de
Estocolmo, não de amor.
Essa
história está documentada não apenas no Museu
Nacional de História e Cultura Afro-Americana inaugurado
em Washington DC, em 2016, pelo presidente Barack Obama, mas até o museu de
Monticello, Virgínia, que foi a propriedade onde Jefferson viveu, cansou de
esconder a história de Sally Hemings com o presidente e tem um espaço dedicado
a ela.
Enfim, quando Lincoln chegou ao poder,
a escravidão e o tráfico negreiro já tinham entrado em declínio. Em 1804, o
Haiti declarou independência da França e se tornou o primeiro país a abolir a
escravidão. A Inglaterra, que havia começado uma revolução, a industrial, faria
o mesmo em 1833.
Lincoln
era republicano e os republicanos eram abolicionistas porque queriam trazer
para os Estados Unidos a revolução industrial inglesa. Sociedades industriais
não utilizam mão de obra escrava, mas assalariada, porque o escravo, embora não
receba salário, é muito caro ao senhor, que tem que lhe dar de comer, beber,
roupa e abrigo, além de pagar pelo escravo, que naquelas condições de trabalho
e tortura não passavam dos 30 anos de vida. Ou
seja, embora a narrativa sobre a abolição nos EUA e no Brasil seja romantizada
e sempre mostrada como produto de um humanismo que se impôs, não foi nada
disso. Ela acaba porque passou a não ser mais lucrativa.
O
16º presidente americano encontrou resistência nos 13 Estados ao sul do Distrito
de Columbia, onde está localizada a capital Washington. Estes Estados eram
predominantemente agrícolas e não queriam mudar sua matriz econômica, a plantation (monocultura do algodão e do tabaco),
cuja mão de obra era escrava.
O
que o vento levou
Uma
série do jornal The New York Times chamada 1619, que saiu no ano passado, mostra que a escravidão
foi responsável pelo início da riqueza americana e que alguns de seus elementos
ainda existem em nossa sociedade, como, por exemplo, as cotas de vendas no
comércio. Isso vem da plantation, onde os
escravos tinham cotas de algodão a colher.
Quem
não atingisse a cota tomava o número de libras faltantes em chibatadas. E quem
cumprisse a cota, no dia seguinte, receberia uma cota maior. Aliás, essa série do New York Times pretendia fazer
um revisionismo histórico ao declarar que a fundação dos Estados Unidos
acontecera, de fato, em 1619, quando aportou aqui o primeiro navio negreiro,
não em 1776 com a Declaração de Independência.
Apesar
da postura dos sulistas quanto à escravidão, Lincoln ofereceu a eles 7 anos
para que se adaptassem à nova matriz econômica, mas eles se recusaram.
Declararam guerra contra a União e passaram a se autointitular Estados Confederados da América, cheios de empáfia, nacionalismo e muito racismo,
mesmo sendo militarmente inferiores. E isso originou um dos conflitos mais
sanguinários da história americana, que matou
mais de 600 mil americanos e que durou quatro anos — Lincoln estimava que a guerra não duraria
mais de seis meses.
A
história de “…E o Vento Levou” se passa no período desta guerra, mas mostra
os confederados como patriotas que se negam a respeitar as imposições do
norte. Isso e a ocultação dos horrores da
escravidão no filme consistem, sim, em um revisionismo histórico desonesto,
pois seu roteiro, desde a primeira cena, se propõe a mostrar essa “civilização
que o vento levou”.
Por
isso o pedido do diretor de “12 Anos de Escravidão” para
que o filme seja apresentado no catálogo em um contexto mais amplo é
importante, já que os efeitos desta guerra se refletem até hoje na vida e nos
costumes, inclusive na violência policial contra cidadãos afro-americanos.
Ao
fim desses quatro anos de guerra civil, Lincoln foi reeleito e conseguiu fazer
lobby para que o Congresso aprovasse a 13ª emenda que proíbe a escravidão em
território nacional. Logo depois do fim da guerra, no entanto, um filho
de um proprietário de escravos, o ator John Wilkes Booth, assassinou Lincoln
enquanto ele assistia a uma peça no Teatro Ford, em DC. Booth achava que, se
matasse o presidente, a abolição seria cancelada, o que é uma estupidez, já que
quem aboliu de fato a escravidão foi o Congresso. Mas a morte precoce de
Lincoln impediu que ele cumprisse seu projeto de reunificação da nação. Ele
reunificou o território, mas as perdas do sul na guerra apenas aprofundaram suas
cicatrizes.
A
nova segregação
Os
Estados sulistas resolveram que, como não podiam cancelar uma emenda
constitucional, iriam criar leis em seus parlamentos locais para manter a
população negra segregada. Leis que impediam os negros de ir ao mesmo banheiro
dos brancos, de ter propriedade, de votar, de estudar nas mesmas escolas dos
brancos, de dividir espaço com brancos nos restaurantes, no transporte público.
Isso
perdurou até 1965, quando foi assinado o ato dos direitos civis pelo presidente
Lyndon Johnson, que acabava com a segregação institucional, ou seja, um século
depois da abolição estava Martin
Luther King Jr. lutando para que os negros
tivessem cidadania plena, o que culminou em seu assassinato em 1968, na mesma
Memphis que hoje se recusa a exibir o filme. MLK, aliás, aos 10 anos, fez parte de um coral que
se apresentou durante a première de “…E o Vento Levou” em
Atlanta.
Quando
se visita a capital americana, vemos no patamar das escadarias em frente ao
Lincoln memorial o exato local onde MLK proferiu seu famoso discurso “I have a dream” em
1963. A escolha do local obviamente não foi por acaso. Em 2010, Obama também
inaugurou na mesma cidade o Memorial
de Martin Luther King Jr., cuja estátua não
tem parte das pernas nem os pés esculpidos. Segundo o artista que projetou o monumento, o
chinês Lei Yixin, ele quis simbolizar que, apesar de os afro-americanos terem
conquistado muitos direitos, ainda há trabalho a ser feito. De fato, quando se
olha para os protestos anti-violência policial contra negros, conclui-se que
Yixin estava certo.
A
glorificação do passado vergonhoso
Por
fim, é muito importante que “…E
o Vento Levou” seja visto pelo que
ele é e sob a luz do que foi e ainda é a história do racismo americano. E é
importante também não esquecermos da pior história envolvendo esse filme, que é
o Oscar de atriz coadjuvante para Hattie
McDaniel, a Mammy, que nem sequer pôde se sentar com o elenco do filme
durante a premiação por causa das leis de segregação racial. Muitos negros,
depois disso, a criticavam por aceitar interpretar papéis de empregada a vida
toda. Uma vez, ela respondeu: “Prefiro interpretar uma empregada a ser uma.”
Portanto, essa retirada temporária do
filme do catálogo da HBO Max é uma boa oportunidade para que se pare de
glorificar o passado vergonhoso da humanidade, de lamentar pelas estátuas de
senhores de escravos removidas de praças públicas. Esses monumentos são, em
última instância, homenagens a esses homens. E qualquer pessoa que veja uma
estátua de um escravagista não vai vê-lo pelo que ele foi, mas achar que, se
ele está ali, é porque foi um grande homem.
E
filmes não são apenas “obras de ficção”? Essa é outra interpretação rasa das
artes cênicas. Quantas pessoas veem “…E
o Vento Levou” e acham que tudo aquilo é
verdade? Filmes históricos são interpretados como fatos por quem não tem as
ferramentas intelectuais para analisá-los com profundidade.
Não
nos esqueçamos que hoje 30%
dos americanos (cerca de 107 milhões de pessoas) duvidam que 6 milhões de
judeus tenham morrido no Holocausto, enquanto 3% da população dos Estados
Unidos (cerca de 23 milhões de pessoas) acham que o leite achocolatado vem de
vacas marrons, sem falar nos que insistem que a Terra seja plana.
Alguém
poderia argumentar que grandes filmes fazem revisionismo histórico, como “Bastardos Inglórios” de Quentin Tarantino. A
diferença é que, neste filme, o revisionismo histórico é o ponto de partida da
narrativa e ele é apresentado ao espectador desde o lançamento. É uma sátira e
é vendido como tal.
E
outro apontamento importante sobre revisionismo histórico deve ser feito. Sempre vemos historiadores dizendo que a gente não
pode julgar a escravidão com os valores de hoje. Não apenas podemos, como
devemos. Mas vamos dar um salto em direção ao passado, mais
especificamente à Idade Antiga.
Todo mundo que leu a Bíblia sabe por
que aconteceu o Êxodo dos hebreus do Egito, certo? Os hebreus eram escravos dos
egípcios e tratados com crueldade imensa, o que levou Deus a designar Moisés
como seu libertador, certo? Considerando a Bíblia como um código moral,
não como um registro histórico, pode-se concluir que, pela moral do Velho
Testamento, a escravidão já era algo intrinsecamente perverso e cruel.
Por
que então, de repente, no fim da Idade Média e começo da Idade Moderna, essa
prática se tornou algo moralmente aceito? Porque era uma atividade econômica lucrativa. Então
essa lenda de que a escravidão acabou porque “o mundo evoluiu” é pura falácia.
Se o mundo tivesse evoluído tanto, não teria incorrido em um erro que, segundo
a Bíblia, foi punido com dez pragas. Portanto, podemos e devemos julgar a escravidão não
apenas pelos valores de hoje, mas também pelos valores de antes de Cristo.
Quanto
a “…E o Vento Levou”, não deixemos nossa memória afetiva confundir
nosso julgamento. O filme não vai ser queimado em praça pública e merece, sim,
ser visto por seus atributos artísticos. Mas a inserção do contexto histórico
vai apenas enriquecer a experiência de assisti-lo, não pelo que acreditávamos
que fosse, mas pelo que realmente é.
James
Cimino é jornalista graduado pela
Universidade Estadual de Londrina (PR). Mora nos EUA há cinco e escreve sobre
filmes e séries paras diversos veículos de comunicação do Brasil, tendo
entrevistado as personalidades mais emblemáticas do entretenimento mundial. No
Facebook jamescimino, no Intagram @james_cimino e no Twitter @rei_da_selfie.
Fonte: JORNALISTAS LIVRES
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