Ana Luisa Naghettini, estudante de Matemática
Computacional na UFMG e militante independente em defesa do meio ambiente, e
Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social
da UFMG.
Um forte lobby na mídia também está em ação. O objetivo, na linha da privatização imediata proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, é que os governos estaduais vendam, rápido e a qualquer preço, as suas empresas. O objetivo é convencer a população de que a privatização das companhias de água e saneamento é “o único caminho para o Brasil enfrentar o grave déficit no setor”. Para tanto, dados alarmantes são apresentados quase diariamente: “48% da população brasileira não tem coleta de esgoto”; “o país convive com 3.257 lixões a céu aberto”; “é necessário investir R$ 753 bilhões até 2033 para enfrentar esses problemas”.
Antes mesmo de a nova legislação ser aprovada, o governador de Minas Gerais, Romeu Zema (Novo), já dava um largo passo nesse sentido, com a Copasa, a estatal mineira de águas e saneamento, informando aos seus acionistas e ao mercado que iria contratar serviços para começar o processo de desestatização.
A situação se torna mais grave ainda quando se sabe
que, caso o Congresso Nacional não derrube os 11 vetos de Bolsonaro a esta
legislação, as empresas estatais, responsáveis por 70% desse serviço, não
poderão mais assinar contrato com os municípios, sendo obrigadas a se
submeterem às licitações, sob a ótica do mercado. Além disso, a obrigação de
realizar licitações e as metas de desempenho para contratos tenderão a
prejudicar as empresas públicas locais, piorando a qualidade dos serviços
prestados.
Os vetos eram para ter entrado em pauta no
Congresso em setembro, com muitos governadores e prefeitos trabalhando pela
derrubada deles. Até agora não foram apreciados e não falta quem aposte que,
por conta das eleições municipais, dificilmente isso acontecerá em 2020. O que
complicará ainda mais a situação das empresas de saneamento, a começar pela
Copasa.
Risco
Num momento em que o governo Bolsonaro é mundialmente criticado pelo desmonte das políticas ambientais e pela negligência no combate aos incêndios na Amazônia e no Pantanal, além do negacionismo em relação ao vírus do covid-19, não só a nova legislação sobre saneamento virou lei, como o risco agora é que essas empresas sejam privatizadas sem que as pessoas se deem conta da gravidade do que está em jogo.
Uma das principais causas da rápida proliferação do covid-19 no Brasil (o país
ostenta o triste recorde de terceiro no mundo em mortes) reside exatamente na
falta de acesso de expressivos contingentes da população à água tratada e ao
saneamento.
Some-se a isso que estudo do Observatório Fluminense Covid-19 (formado por sete
instituições de ensino e pesquisa do Rio de Janeiro, entre elas a UFRJ e a UFF)
aponta que a própria estabilização do vírus na América Latina deve se dar em
patamares elevados e permanecer atuando na região por mais dois anos.
Lucro
As principais razões para as reestatizações foram a colocação do lucro acima dos interesses das comunidades, o não cumprimento dos contratos, das metas de investimentos – principalmente nas áreas periféricas e mais carentes -, e os aumentos abusivos de tarifas.
O governo Bolsonaro e a mídia corporativa brasileira que o apoia ignoram esse
tipo de alerta e destacam apenas que “a livre concorrência no setor permitirá
mais investimentos – são esperados R$ 600 bilhões, grande parte internacionais,
até 2033” – e que “a universalização dos serviços de saneamento ocorrerá em 30
anos”. Acena-se com promessas, para quebrar resistências e ganhar a opinião
pública.
Não foi por falta de recursos, como alega o governo Bolsonaro, que se optou pela privatização. Um total de R$ 1,2 trilhão acaba de ser repassado para os bancos privados a título de auxiliá-los durante a pandemia. Um terço desse valor por ano seria mais do que suficiente para resolver o problema do saneamento no Brasil.
Nada foi dito sobre a nova legislação possibilitar que os pobres fiquem cada
vez mais distantes do acesso à água tratada e ao saneamento e que o alegado
prazo próximo a vencer, para o fim dos lixões, foi prorrogado. Não foi dito,
igualmente, que as empresas multinacionais dispõem agora de uma chance de ouro
para controlar também as cobiçadas águas brasileiras.
Esse, aliás, parece ser o ponto essencial, porém
obscuro nessa legislação.
A nova lei trata da questão do saneamento, mas
empresas de saneamento são também as que fornecem água. Assim, a privatização
das primeiras traria, como consequência, também a privatização das águas, cujo
fornecimento ficaria a cargo de quem visa apenas o lucro.
Dos atuais 5.571 municípios brasileiros, no máximo
500 têm condições de atrair investimentos no setor. Sem dúvida haverá disputa
pela privatização de empresas estatais em grandes metrópoles como Belo
Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, Salvador, Recife, Curitiba e Brasília.
Mas quais empresas se interessarão por fornecer serviços em municípios pobres do Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, no sertão nordestino ou no interior da Amazônia? Esses, certamente, serão abandonados à própria sorte, pois o chamado “investimento cruzado”, que determina que o lucro obtido pelas empresas estatais nas áreas mais ricas seja aplicado nas regiões pobres e carentes, não existirá mais.
Jereissati e sua Coca-Cola
Não há também justificativa social para a pressa com a qual essa nova legislação foi aprovada. O relator da matéria, senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), rejeitou todas as emendas de mérito propostas para que o texto não voltasse à Câmara dos Deputados para uma nova apreciação. A oposição propôs que a matéria fosse debatida após o fim da pandemia. Deveria ter sido o caminho natural, diante de uma medida de tamanha importância, mas foi derrotada.
De acordo com o Sistema Nacional de
Informações sobre Saneamento (Sinis) de 2018, mais de 83% da população
brasileira tem acesso a serviços de abastecimento de água e 53,2% usam serviços
de esgotamento sanitário. O marco legal anterior, estabelecido por lei de 2007,
definia diversos princípios fundamentais como universalidade, integralidade,
controle social e utilização de tecnologias apropriadas.
Também estabelecia funções de gestão
para os serviços públicos, como planejamento municipal, estadual e nacional e a
regulação, que devem ser usados como normas e padrões. Uma das mudanças mais
significativas introduzida pelo novo Marco foi a retirada da autonomia dos
estados e municípios do processo de contratação das empresas que distribuirão
água para as populações e cuidarão dos resíduos sólidos.
Em síntese, o que foi aprovado é um
enorme retrocesso sob a ótica dos interesses da maioria da população. Razão
pela qual a aprovação desse novo marco legal provocou reação imediata apenas
nas redes sociais, pois a mídia corporativa o apoia e o endossa, bem como a
toda a agenda ultraliberal de Paulo Guedes.
“Sobreviverá quem puder pagar”, escreveu a destacada jornalista Hildegard Angel, ao frisar que “a água de nossas nascentes, fontes, rios, lagoas não pode ter dono. Querem engarrafar a água (…) colocar uma etiqueta e botar preço”.
Mais contundente, a presidente da
Associação dos Profissionais Universitários da Sabesp, a companhia estatal de
águas e saneamento do Estado de São Paulo, socióloga Francisca Adalgisa,
garantiu que “é bala na cabeça da população mais pobre”, pois se essas empresas
não forem privatizadas, também não receberão mais recursos do governo para os
investimentos de que necessitam.
Nada disso parece ter sensibilizado uma população anestesiada em meio a várias pandemias simultâneas. E o lobby pela privatização cresce e aposta na vitória de candidatos “sensíveis” ao mercado nas eleições desse ano nas principais capitais para facilitar as vendas.
Ribs
Atualmente no
Brasil os serviços de água e esgoto são prestados, em sua grande maioria, por
empresas estatais, não sendo vedada a possibilidade de associações entre entes
estatais e o setor privado, através das chamadas parcerias público-privadas
(PPPs). Nesse sentido, a Sabesp, a empresa de saneamento de São Paulo, é um mau
exemplo, que a mídia corporativa brasileira esconde. Mesmo pública, a empresa
tem 50% de seu capital privado. Os acionistas dão as cartas e deixam milhões de
pessoas sem coleta e tratamento de esgoto na maior cidade do Brasil e da
América Latina.
Outro mau exemplo do que faz o setor
privado nessa área é Manaus. Com 20 anos de gestão privada, a capital
amazonense tem apenas 12,5% de cobertura de esgoto, dos quais só 30% são
tratados. Mais de 600 mil pessoas – um terço do total da população -, continuam
sem acesso à água potável. Não por acaso Manaus liderou a primeira onda de
mortes por coronavírus no país e o risco de um retorno do vírus, mais forte
ainda, na cidade é real.
Por isso, o economista Ladislau Dowbor, professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), consultor de agências da ONU e autor de mais de 40 livros sobre desenvolvimento econômico e social, propõe que diante do Covid-19 e da situação caótica da economia brasileira sob a gestão Bolsonaro é fundamental o resgate do papel do Estado, a adoção da renda básica generalizada, o reforço da saúde pública e o financiamento local, com a transferência, de maneira organizada, derecursos a cada município. “É no nível local que se sabe qual bairro é mais ameaçado, onde falta água ou saneamento, quais famílias estão mais fragilizadas”, afirma.
O que Dowbor defende é o oposto do que
define a nova legislação. Na mesma linha, o economista francês Thomas Piketty,
autor de “Capital e Ideologia”, seu mais recente trabalho lançado no país, diz
que as elites brasileiras cometem um erro ao perpetuar o abismo social,
comprometendo o futuro da nação.
Diferentemente do que pensa Piketty, as elites brasileiras sabem o que querem. Em 2009, no XXIII Fórum da Liberdade, promovido pelo Instituto Millenium, um think tank brasileiro ultraliberal, o ex-presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, figura reverenciada pela mídia nacional, proclamava: “jamais os direitos humanos irão suplantar o direito à propriedade”.
Doze anos depois, a Vale foi
responsável pelos dois maiores crimes humanos e ambientais da história
brasileira: o rompimento das barragens em Mariana e Brumadinho, ambas em Minas
Gerais, com a morte de duas centenas e meia de pessoas e a destruição da bacia
do rio Doce, um dos maiores da região Sudeste. As famílias dos mortos,
desaparecidos e dos atingidos pela lama e água contaminada ainda lutam para
receber indenizações. Enquanto isso, as ações da vale seguem nas alturas.
Foi também no governo de Fernando Henrique Cardoso que o Brasil passou a ter agências reguladoras para fiscalizar a atuação das empresas recém-privatizadas. O resultado é que essas agências, Anatel, na área da telefonia, Anac, na aviação civil, e Aneel, nas águas e energia, rapidamente foram colonizadas pelo capital privado, por aqueles a quem deveria fiscalizar. E acabam não fiscalizando nada. Resultado: serviços de péssima qualidade, tarifas caras e cidadãos transformados em meros consumidores. E os serviços, antes um direito social, viraram atividade econômica regulada pelo mercado, possibilitando basicamente acúmulo do capital privado.
Duramente criticadas pelos brasileiros
em suas redes sociais, essas empresas apressaram-se em dizer que não têm nada a
ver com a privatização de águas no país. A Coca-Cola Brasil divulgou um longo
texto em que considera “boato” qualquer relação com o novo Marco Legal do
Saneamento Básico. Já a Nestlé, há anos, vem desmentindo, também por redes
sociais, que tenha interesse em privatizar o aquífero Guarani, uma reserva de
1,2 milhões de quilômetros quadrados, compartilhada por Brasil, Argentina,
Paraguai e Uruguai.
Esse assunto, claro, nunca é tratado nas TVs ou
emissoras de rádio.
O então presidente da República, Michel
Temer, que chegou ao poder depois do golpe, travestido de impeachment contra a
presidente Dilma Rousseff em 2016, também negou que houvesse qualquer
entendimento nesse sentido. Mas não deixa de ser coincidência que tenha sido em
seu governo que o primeiro projeto de lei alterando a legislação de 2007 sobre
saneamento fosse enviado ao Congresso.
Igualmente não deixa de ser
coincidência que esse novo marco tenha sido aprovado a toque de caixa pelo
governo Bolsonaro, em plena pandemia, quando a população brasileira está
assustada com o número crescente de mortos e sem condições de protestar nas
ruas e praças públicas, como sempre fez.
Pelo visto, o governo Bolsonaro está
seguindo à risca a proposta de seu mundialmente criticado ministro do Meio
Ambiente, Ricardo Salles, para quem a pandemia deveria ser aproveitada “para
passar a boiada”.
As medidas impopulares não só estão sendo aprovadas, como se preparam para sair do papel sem que a maioria das pessoas se dê conta disso. Quando perceberem, poderão já estar pagando muito mais caro pela água que utilizam. Ou, pior ainda: tendo que escolher entre cozinhar e tomar banho.
Charge de Bacellar
Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres
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