Por Julia de Albuquerque Barreto e Inês Virgínia Prado Soares no Conjur
A escravização para o trabalho é uma das mais antigas atividades
humanas e entrou em debate e consensos algumas vezes, desde o século 19, na
comunidade internacional, que buscou construir normas para acomodar os
interesses econômicos e políticos à necessidade de respeito a valores
existenciais básicos para a humanidade.
Certamente esses valores mudam ao longo do tempo. Basta pensar
na colonização e sua estruturação baseada na violência e exploração de povos,
especialmente vindos do continente africano, que eram escravizados para
serviços domésticos ou para uma produção ainda manufatureira e
predominantemente rural.
As cicatrizes dessa chaga têm forte repercussão nas relações
sociais, políticas e econômicas atuais, tanto no âmbito local, nas nações que
foram colonizadas, quanto no plano mundial. E, se hoje temos a tecnologia a
favor de muitas profissões, podendo evitar desgastes físicos e riscos à saúde,
há serviços exercidos por grupos subalternizados, que continuam a exigir
esforços físicos extenuantes e sem expectativas de melhorias nas condições de
trabalho. Ao contrário. As pessoas desses grupos ficam à margem, sem acesso a
direitos básicos e sem gozar das inovações, num cenário propício para muitas e
diversificadas violências.
A última atualização global para lidar com a escravização e o
tráfico humano se deu em 2003, com a Convenção de Palermo da ONU, que versa
sobre tráfico de pessoas, que se caracteriza pela subtração da liberdade e da
dignidade da pessoa somada a seu deslocamento territorial, entre municípios,
estados ou países. Esse tráfico tem por finalidade usar o ser humano para: qualquer
tipo de servidão, adoção ilegal, fins de exploração sexual, para fins de
exploração do trabalho análogo ao escravo e para extração de tecidos e órgãos
do corpo humano.
No enfrentamento ao tráfico de pessoas, a adoção de medidas
preventivas, repressivas e de acolhimento às vítimas é obrigação do Estado, mas
pode ter a cooperação da comunidade. Por isso, as instituições públicas devem
estar preparadas para lidar com as diversas situações relacionadas a essa
prática criminosa. Devem ainda primar pela constante atualização e capacitação
de seus agentes e da sociedade civil, grande parceira do Estado, especialmente
nas iniciativas de prevenção e de acolhimento.
O impacto da chegada de refugiados e migrantes, que buscam
abrigos em outros países em decorrência de acontecimentos excepcionais — como
golpes de estado, guerras, conflitos armados e crises econômicas — e
novas situações identificadas em escala crescente a partir da segunda década do
século 21 — como o analfabetismo digital, a captura de vítimas pela internet
(net fishing), dentre outras — precisam ser mais conhecidas, para serem
incorporadas às políticas públicas e aos mecanismos protetivos dos direitos
humanos adotados pelas comunidades internacional e local.
Nas últimas duas décadas, o Brasil assumiu o Enfrentamento ao
Tráfico de Pessoas (ETP) como um tema merecedor de especial atenção na sua
agenda de direitos humanos e tem procurado combater esse tipo de violação com o
desempenho das tarefas de prevenção, repressão e responsabilização indicadas na
Convenção de Palermo da ONU e os seus protocolos adicionais.
Em 2004, o governo brasileiro depositou o instrumento de
ratificação a esta Convenção junto à Secretaria Geral da ONU. O Decreto
5.015/2004 formalizou internamente os compromissos assumidos, permitindo o
desenvolvimento de políticas públicas nessa seara. Em 2006 foi instituída a
Política Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas e, em janeiro de 2008,
foi aprovado o 1º Plano Nacional de Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas
(PNETP), finalizado em 2010. Em 2013 foi publicado o 2º Plano Nacional de
Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas (PNETP) (2013-2016).
O segundo plano, amplamente debatido com a sociedade e com os
órgãos e profissionais que atuam diretamente com o tema, trazendo a experiência
do anterior (que vigorou de 2006 a 2010) e apresentando novidades para maior
efetividade das medidas para o Enfrentamento ao Tráfico de Pessoas no Brasil.
O 3º Plano foi lançado em 2018 com previsão de encerramento em
2022. Distribuído em seis eixos temáticos, a saber: Gestão da política; Gestão
da informação; Capacitação; Responsabilização; Assistência à vítima; e
Prevenção e conscientização pública, o 3º PNETP é tratado, no site do
Ministério da Justiça e Segurança Pública, como um instrumento oriundo de
“uma ampla construção coletiva”. É também destacado que “o III Plano se
apresenta como uma oportunidade para conquistas adicionais nos campos da gestão
da política, gestão da informação, na articulação e na integração de
programas”.
Desde 2003, mesmo ano da Convenção de Palermo, já havia, no
âmbito nacional, a Comissão Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo
(Conatrae). Criada por meio de decreto presidencial, a instalação da Comissão
se somou ao lançamento do Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho
Escravo, que foi apresentado em publicação da Presidência da República e de
autoria da Comissão Especial do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa
Humana da Secretaria Especial dos Direitos Humanos e da Organização Internacional
do Trabalho. Naquele momento, notou-se a necessidade de um espaço participativo
e oficial de acompanhamento, monitoramento e coordenação das ações previstas no
plano.
Em 2019, o governo Bolsonaro revogou o decreto de 2003 e editou
o decreto presidencial de número 1987. Esta norma regulamentou a Conatrae
novamente como órgão colegiado de consulta, assessoramento, com competência de
acompanhar o cumprimento das ações constantes do Plano Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo (PNETE). Apesar da fragilidade do governo
Bolsonaro no encaminhamento das questões sociais e de direitos humanos, o
Conatrae chegou com certa capacidade de atuação nesse novo governo.
É importante lembrar que, apesar do esforço do governo, entre as
12 condenações do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, há uma,
em 2016, exatamente em uma situação de exploração de trabalho análogo à
escravidão, que veio à tona após fugas do local, com indicação do cativeiro
para as autoridades, salvando as vítimas (Caso Fazenda Brasil Verde, 2016).
E os casos têm se repetido desde a condenação do Brasil pela
Corte Interamericana, indicando que o aprimoramento institucional para prevenir
o crime tem sido insuficiente. Em 2022, o Ministério Público do Trabalho
recebeu 2 mil denúncias de trabalhadores em condições análogas às de escravo. O
trabalho de fiscalização do Grupo Especial de Fiscalização Móvel (GEFM), que em
2023 completa 28 anos de funcionamento, tem sido intenso e exitoso.
O crime de trabalho análogo à escravidão está previsto no artigo
149 do Código Penal e nas convenções 29 e 105 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT), ambas ratificadas pelo Brasil, e se caracteriza a partir da
presença dos seguintes elementos (não necessariamente todos): a) a submissão a
trabalhos forçados ou a jornadas exaustivas, b) a sujeição a condições
degradantes de trabalho, e c) a restrição de locomoção do trabalhador. Esse
delito pode acontecer sem que ocorra o crime de tráfico de pessoas, que tem
características próprias, a começar pelo aliciamento e deslocamento promovidos
pela organização
criminosa.
Neste ano, a partir do rumoroso caso dos 207 trabalhadores
resgatados de situação análoga à escravidão em Bento Gonçalves (RS), em
trabalho para o setor vinícola, o ministro dos Direitos Humanos e da Cidadania,
Silvio Almeida, convocou uma reunião extraordinária da Conatrae, que se
realizou dia 13 de março, para tratar da situação, com especial olhar para as
vítimas. Além do anúncio da reunião da Conatrae, o ministro aproveitou a ocasião
para destacar que um dos focos da nova gestão é implementar uma política
nacional de empresas e direitos humanos. Esta ideia, ao ser vocalizada e
anunciada pelo titular da pasta de direitos humanos e da cidadania, num
contexto de repúdio a práticas nefastas ligadas à escravidão contemporânea, não
só confere maior força ao debate, mas principalmente coloca o problema em seu
devido lugar: na ótica dos diretos humanos, da eterna vigília e de
imprescindíbilidade de ações interinstitucionais.
A exploração de trabalho em condições análogas à escravidão
remete ao debate sobre vulnerabilidades e intersecções entre minorias e grupos
minoritários e também sobre os compromissos que podem ser assumidos não apenas
pelo governo e pela sociedade civil, mas principalmente por empresas e
conglomerados econômicos na prevenção desse crime. Para além da repressão
criminal, que apenas atinge os agressores (pessoas físicas) e dos direitos
trabalhistas, é urgente o compromisso público das empresas com os direitos
humanos, com ações concretas, aferidas por metas confiáveis, não apenas para
eliminar violações, mas também para garantir um futuro com igualdade.
Nessa perspectiva, enquanto a política nacional de empresas e
direitos humanos é desenhada pelo governo, as corporações e os empreendedores
precisam atuar de forma alinhada com os valores do Estado democrático
brasileiro e com a Agenda 2030 da ONU, especialmente, nessa matéria, atentas
aos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS) de combate à pobreza (ODS 1)
e do trabalho decente e crescimento econômico (ODS 8).
Vale destacar que dentre as 12 metas do ODS 8 — trabalho
decente, na adaptação das metas ao cenário nacional, as versões brasileiras das
Meta 8.7 e 8.8 são respectivamente: “Até 2025 erradicar o trabalho em condições
análogas às de escravo, o tráfico de pessoas e o trabalho infantil,
principalmente nas suas piores formas”; e “Reduzir o grau de descumprimento da
legislação trabalhista, no que diz respeito ao registro, às condições de
trabalho, às normas de saúde e segurança no trabalho, com ênfase nos
trabalhadores em situação de vulnerabilidade”.
Não há mais como deixar as corporações fora do debate sobre a
erradicação das inúmeras situações de escravidão no Brasil. Além disso, há que
ter em mente que as empresas não respondem penalmente por essas condutas; e
apenas seus dirigentes podem ser punidos criminalmente. Assim, a discussão
precisa ser pautada pelo olhar dos direitos dos mais vulneráveis e da teoria
que vem sendo construída pela comunidade internacional sobre empresas e
direitos humanos. O nosso centenário movimento antropofágico já mostrou que
sabemos mastigar os debates estrangeiros e transformá-los em iguarias valores
nacionais.
Fonte: CTB NACIONAL
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