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segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Wilson das Neves: ás da bateria e sambista de rara elegância

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Morreu aos 81 anos na noite de sábado (26), em decorrência de um câncer, o baterista, cantor e compositor Wilson das Neves. Considerado um dos maiores nomes de seu instrumento no País, das Neves estava internado em um hospital da Ilha do Governador (RJ), onde residia. Na página oficial do músico no Facebook, familiares divulgaram a partida do baterista que, há 35 anos, reinava absoluto na banda de Chico Buarque: “É com grande pesar que comunicamos a todos a partida do nosso grande mestre, que foi tocar suas baquetas do outro lado. Ficaremos com as boas lembranças”, afirmaram. O corpo do músico será velado na segunda-feira (28), na quadra da escola de samba Império Serrano, sua grande paixão. O local do funeral ainda não foi informado pela família do músico.
Em março de 2009, a trajetória do músico foi tema de perfil publicado na edição 20 da revista Brasileiros. Leia, a seguir, na íntegra, a reportagem e a entrevista que originou o perfil.
O som quente e o dom de Wilson
por Marcelo Pinheiro (março de 2009)
Verão em São Paulo. Tarde amena de garoa. O asfalto úmido da Rua Augusta registra os passos de Wilson das Neves. Estacionados na guia irregular, sob um par de sandálias de couro, os pés aguardam um táxi que nos leva à Praça Roosevelt, sede de várias companhias teatrais e reduto boêmio da classe.
Minutos antes, dentro da discreta suíte do hotel – onde um piano de cauda, branco, com ares de John Lennon “Imagine” jaz solitário no hall -, das Neves veste uma camisa elegante, o usual chapéu, e me pergunta se deveria calçar sapatos. Hesitante, concluo que não seria eu quem diria a ele o que fazer com aquele par de pés calejados por infinitas horas no comando de pedais de bumbos e de chimbais. Pés que deixaram suas marcas em álbuns de mais de 600 diferentes artistas da música brasileira e mundial.
Das Neves tem hoje 72 anos. Desde 1959, quando debutou em um estúdio da Copacabana Discos, é um dos curingas da indústria fonográfica quando o assunto é bateria. Há 11 anos, assumiu a faceta de cantor e compositor de samba. Já esteve a serviço de Gilberto Gil, Caetano Veloso, Roberto Carlos, João Gilberto, Tim Maia, Wilson Simonal, Jorge Ben Jor e um sem-número de artistas. Tocou samba, bossa nova, tropicália, jovem guarda e o que viesse pela frente, com a mesma intensidade e alegria com que tocava sua própria música em álbuns instrumentais que soam como retratos de um longínquo Brasil dos anos 1960 e 1970.
Chegamos ao Papo, Pinga e Petisco, olhos atentos, das Neves logo põe à prova a velha memória. O local, reza a lenda, foi o primeiro a receber a cantora Elis Regina em São Paulo. O baterista não confirma nem desmente, diz que ali era o velho Djalma’s, mas que a gauchinha, de fato, mandava brasa no bar vizinho, o famigerado Baiúca, onde Elis cantava assessorada pelo Zimbo Trio.
Wilson passa, então, a também relembrar de seu início de carreira. Revela que a paixão pela percussão e pelo ritmo nasceu ainda na infância, vivida no Méier, subúrbio da zona norte carioca, nas copiosas festas de uma tia e nas frequentes visitas aos terreiros de candomblé, onde o batuque hipnótico dos tambores acabaria por levá-lo, do transe, ao desejo de tocar. Nos bailes da tia, a coisa foi ficando tão séria que, não tardou, havia um conjunto para animar as festas. Logo ele ficaria íntimo do baterista Edgard Nunes Rocca, vulgo Bituca, que também tocava em orquestras de bailes. Das Neves tinha 18 anos e ingressara no Exército quando, de tanto frequentar os bailes com Bituca, viu-se seduzido pela vontade de assumir o comando das baquetas.
Viver de música e mergulhar em um incrível ciclo de criação passou a ser o norte do baterista. Do período áureo da música criada às sombras do desenvolvimentismo bossa nova de Juscelino Kubitschek até o final daquele primeiro quinquênio dos anos 1960 – quando a bossa ainda não competia com a jovem guarda, mas começava a ser colocada em xeque pelas patrulhas da canção de protesto –, das Neves envolveu-se em registros instrumentais antológicos como o célebre Coisas, do Maestro Moacir Santos, Os Ipanemas, álbum de 1964 do combo homônimo liderado pelo trombonista Astor Silva, e Aquele Som dos Gatos, do grupo Os Gatos. Ao lado dos Catedráticos, de Eumir Deodato, imprimiu às belas e intrincadas melodias a cadência malandra de sua bateria em álbuns primorosos como Idéias, Ataque! e Samba Nova Concepção.
Em 1968, Das Neves alcança prestígio popular com o álbum Elza Soares – Baterista: Wilson das Neves. Naquele final da década de 1960, decide então lançar seus próprios álbuns instrumentais. Sem abrir mão da brasilidade, lança seu primeiro disco solo, intitulado Juventude 2000, e o novo repertório ganha acentos bem sintonizados com a música pop produzida naqueles idos de 1968. Do rock ao funk, da soul music aos ritmos caribenhos, do samba ao boogaloo, do jazz ao baião, a bossa de das Neves vai se impregnando de modernidade neste e nos outros três álbuns que viriam a seguir: Som Quente é o Das Neves (1969), Samba Tropi, até aí morreu Neves (1970) e O Som quente é o das Neves (1976).
Os anos 1980 parecem fechar um ciclo para o baterista. Marcam a volta de Wilson às compulsivas horas de estúdio e o casamento insperável com o conjunto que suporta o compositor Chico Buarque, de onde reina absoluto no comando das baquetas de 1982 até hoje. Segredo para muitos, o veterano das baquetas tinha ambição de ser compositor e escrevia suas coisas desde meados da década de 1970. Ao receber um convite para um novo álbum instrumental, em 1996, decidiu propor um disco com suas canções.
Por conta de uma simples fita de amostra do repertório, Wilson foi convidado a assumir os vocais. Desde então, acumula dois álbuns autorais: O Som Sagrado de Wilson das Neves, de 1997 e Brasão de Orfeu, lançado em 2004. Na ocasião desta entrevista, esteve em São Paulo para o último de uma série de shows no Studio SP, casa noturna na mesma rua Augusta onde estava hospedado. Horas mais tarde, Brasileiros foi conferir a apresentação e, a despeito do samba de Wilson não trazer nada de revolucionário, com a devida reverência à tradição do gênero, um público bastante jovem e empolgado lotou a casa para recebê-lo no exercício de sua expansiva simpatia.
Elegante e discreto crooner, acompanhado de seu entrosado quinteto, das Neves segue desfilando uma série de canções que reverenciam o samba, exibindo, orgulhoso, o verde da sua Império Serrano estampado no lenço que ornamenta o bolso de seu paletó. Ao fim de cada canção ele é aplaudido calorosamente, com direito a assovios e casais dançando coladinho, ao que volta a fascinar a todos com a astúcia de quem, do fundo do palco, conhece bem os maneirismos do showbizz. Das Neves é conhecido pelo bordão “Ô, sorte!”. E concluo que seu elevado bom humor talvez se deva muito ao fato de ele se impor como um afortunado diante das coisas da vida. Em sua mais famosa canção, escrita em parceria com Paulo César Pinheiro, insiste em afirmar que o samba é seu dom. Alguém ali haveria de duvidar?
Exercitando sua faceta de cantor e compositor, o baterista se apresenta no extinto Studio SP, em janeiro de 2009 (Foto: Luiza Sigulem)
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Leia, na íntegra, a entrevista que originou a reportagem publicada acima.
Brasileiros – Na internet, a maioria dos textos sobre sua trajetória musical afirma que você começou a tocar bateria aos 14 anos. Foram estudos teóricos ou um aprendizado autodidata?
Wilson das Neves – Não. Eu não comecei a estudar aos 14 anos. Nessa idade eu ia muito ao candomblé, porque desde muito garoto eu era fascinado pelo som dos tambores. Minha família é toda candomblecista. Na verdade, comecei a estudar o instrumento aos 18 anos em 1954, quando entrei para o Exército.
Algum familiar influenciou seu interesse por música?
Sempre gostei de música porque eu tinha uma tia que dava festas em casa quase toda semana e por qualquer motivo. Aniversário do cachorro, ela dava festa. A casa dela vivia sempre cheia de gente e a música era um elemento que não podia faltar. Havia muitos discos de big-bands de jazz que tocavam nas festas dela e eu ficava prestando atenção a tudo. Rolavam também regionais de choro e grandes orquestras nacionais. Um ambiente que muito me estimulou e tudo teve início ali, quando que conheci um baterista que começou a tocar nessas festas chamado Edgard Nunes Rocca, mais conhecido por todos como Bituca.
Bituca foi seu professor?
Eu estava com 18 anos, já estava no Exército, e decidi ajudá-lo nos bailes porque eu não tinha dinheiro pra entrar. Enquanto ele tocava eu ficava por ali, dançando. Depois, no final do baile, eu o ajudava a levar o instrumento de volta. Até que um dia ele perguntou se eu não gostava de bateria, disse que sim e ele aconselhou: “Então, porquê você não estuda o instrumento?!”. Eu não tinha referência alguma, mas ele me levou a uma escola e comecei a ter aulas. Depois disso ia ao baile com ele e já não dançava mais. Ficava ali, de olhos e ouvidos atentos nele, aprendendo. Depois de um ano o Bituca saiu da banda. Fiquei no lugar dele… E estou até hoje tocando por aí.
Nesse período ainda havia resistência ao uso da bateria no samba?
Não, nessa época a bateria já era bem aceita e difundida. A resistência tinha ficado pra trás. Acontece que a bateria não é um instrumento criado para tocar samba, ela foi criada para tocar a música norte-americana. Já na década de 1940 o instrumento chegou fortemente ao Brasil, aí é que começamos a fazer nossa tradição. Nesse período, embora anônimos, já havia grandes bateristas. Músicos que liam e que escreviam música.
Algum grande baterista deste período que você destacaria e que, hoje, não é lembrado?
Difícil citar nomes sem ser injusto. Mesmo porque nossa memória é curta. Naquela época não se dava crédito aos músicos, não se registrava nada. Músico profissional era anônimo. Na grande indústria, quem começou a colocar os nomes de rodos os músicos nos créditos dos discos foi a Elis Regina. Isso na virada para os anos 1970, quando toquei com ela. Antes dela, ninguém dava muita atenção. Crédito mesmo só para o compositor e olhe lá. Nem o maestro que arranjou o disco era respeitado.
Você fez parte de uma geração de grandes bateristas, como Milton Banana, Edison Machado, Airto Moreira e o Dom Um Romão. Todos com um estilo personalíssimo, mas ligado à cadência da bossa nova. Na bateria, a “batida diferente”da bossa foi mero casamento do samba com o jazz?
Para mim, bossa é samba e samba é um ritmo muito complexo. Se você observar bem, ninguém toca samba igual a ninguém, mas tudo deriva dele e tanto faz se é bossa nova ou se é samba. Deem o nome que quiserem dar. Para mim, a bossa é uma variação do samba e cada um a toca do seu jeito. Claro, houve na bateria tocada por aqui muita influência da música americana. O instrumento não foi criado para tocar samba e os métodos de aprendizado acessíveis no País eram todos americanos. Para fazermos um método de samba para bateria no Brasil tivemos de enfrentar dificuldades, como investir nas primeiras partituras.
No início de carreira, nos anos 1950, você tocou na Orquestra Ubirajara Silva e chegou a integrar a filarmônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Como se deu essa ligação?
O que me levou à música clássica foi a curiosidade da descoberta e o fascínio do aprendizado. Minha intenção não era dizer “vou tocar no Teatro Municipal”. Queria vivenciar o universo da música erudita, mas continuava indo ao candomblé e gostava de música popular. Se você ver bem, em uma sinfônica, nas horas vagas, quase todos os instrumentistas – dos metais, das cordas, do sopro – trabalham com música popular. Minha intenção era aprender com propriedade, e acho que aprendi. Toquei em importantes espetáculos, como Mefistófoles e Aida. Era como estar no Céu, no Olimpo, mas, pouco depois, abandonei esse ambiente, porque não me pagavam direito e eu precisava tocar em outros lugares para poder viver de música.
O período que sucede a explosão da bossa revelou grandes instrumentistas brasileiros. Percebe-se nos créditos de álbuns que boa parte desses músicos trafegava pelas mesmas gravações. Como era esse ambiente? Havia competição entre vocês?
Não. Acredito que não havia competição. As gravadoras chamavam os músicos que podiam resolver o problema. Não se chamava por simpatia, pelo nome ou pela cor. Nada disso. Era, essencialmente, a questão do músico que resolve, entende? Os arranjadores tinham uma relação de músicos com quem podiam contar e a gente acabava se encontrando nos estúdios com frequência. Com a afinidade desses encontros, começaram a surgir os trios e os quartetos nesse ambiente da bossa. Com isso, por um breve período ,valorizou-se a música instrumental, que não era prestigiada, por aqui. Até hoje, no Brasil, é muito complicado fazer música instrumental. As pessoas não ouvem, não têm conhecimento.
Em 50 anos de carreira, você teve a honra de participar de uma infinidade de álbuns que são considerados obras-primas, como o LP Coisas, do maestro Moacir Santos. Houve algum trabalho que te surpreendeu, com um resultado final maior do que a expectativa?
Olha, eu gravei com mais de 600 artistas, gosto de tudo que fiz e faria tudo de novo. Quando eu sento no meu instrumento não sento para brincar, não. Sento para fazer direito – ou pelo menos tento. Lógico que tem coisas especiais. Imagine você como eu fiquei quando o meu professor de Harmonia, Moacir Santos, me convidou para gravar com ele. Fiquei, como diria o Chico Anísio “com o peito em festa e o coração à gargalhar”.
Muitos músicos brasileiros de sua geração fizeram carreira no exterior. Permanecer no Brasil foi uma escolha pessoal?
Eu nunca tive a intenção de morar fora daqui. Opção minha. Acho que minha terra é aqui. É aqui que eu vou fazer tudo que eu tenho que fazer. Vou lá, toco, gravo. Já fui várias vezes,para fora do País. Já acompanhei vários artistas, mas meu lugar é aqui. Trabalhando com o Chico, há 25 anos, rodei o mundo. Aliás, essa semana ele ligou para me cumprimentar, porque fui bisavô. Tenho agora um bisneto, Joãozinho, filho da Graça. Tá lá me dando o maior prazer e tenho que agradecer a minha neta por me fazer bisavô vivo, porque bisavô morto não adianta nada!
Depois que você deixa o ambiente da bossa nova, quando iniciou sua carreira solo com o álbum Juventude 2000 (1968), seu som vai se fundindo com o funk, com o soul e o jazz latino. Como foi essa mudança?
Foi papo meu e do Geraldo Vespar (o produtor, violonista e arranjador cearense), que fez os arranjos do meu primeiro disco: “Ah, vamos fazer uma coisa assim mais ousada, com a intenção de atingir a garotada?”. O nome do disco, Juventude 2000, já sugere isso. Mas devo dizer que gosto de tudo. Gosto mesmo é de música. Não gosto de barulho nem esse negócio de “saiu um som!”. Qualquer instrumento bem tocado me faz bem. Tem gente que não gosta de Astor Piazzolla e, para mim, gente assim, não gosta de nada. Eu gosto de tango, como qualquer outro ritmo. Música boa é música universal.
A partir dos anos 1980 você volta a assumir o papel do homem de estúdio. Esse período foi marcado pela explosão do rock brasileiro e um recuo do samba e da MPB. A escolha de voltar a tocar como músico de apoio tem a ver com isso?
Quando você gosta do que faz não vê problema em nada. Como diz o Nelson Sargento: “O samba agoniza, mas não morre!”. Ele cai um bocadinho e se levanta – quando é bom samba, claro, porque, no meio de tanta coisa que se grava também tem muita sandice. Assim como tinha bossa sandice, hoje tem olodum sandice, pagode sandice e axé sandice. Tem os bons e os sofríveis.
Desde 1996 você resolveu tornar público seus dotes de cantor e compositor. Essa vocação era segredo antigo?
Eu já tinha gravado sete, oito álbuns instrumentais e fui convidado para gravar mais um. Disse que não queria. O Esdras, produtor, insistiu e disse a ele: “Fiz tantos discos assim… Vou ter que ficar convidando colega para colaborar e a gente sabe que instrumental não dá dinheiro. Se for para gravar um novo disco, quero gravar minhas músicas”. Eu tinha muitas composições, mas nunca tive a ousadia de gravar, nem de mostrar para ninguém.
E você compõe desde quando?
Comecei a compor nos anos 1970. Quando resolvi gravar meus sambas, minha ideia não era cantar. Minha intenção era montar um conjunto e convidar intérpretes, cantores e cantoras. Quando Esdras pediu: “Traz tuas músicas pra gente ouvir”, ele ouviu umas cinco, seis, e logo falou: “Muito bom, vamos gravar!”. Eu disse: “Vamos! Mas quem é que vai cantar?”. Ele respondeu: “Do jeito que você está cantando aí, canta você mesmo, Wilson”. Foi aí que virei cantor. Não foi nada programado, não tive a intenção. Aliás, a única coisa programada na minha vida é ser feliz.
Ouça Samba Tropi… Até aí Morreu Neves (Elenco, 1970), um dos clássicos da discografia instrumental do baterista

Biografia revela complexidade do ‘rapaz latino-americano’ Belchior

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Escolher Belchior (1946-2017) como tema de uma biografia não é tarefa fácil, pois o artista de voz fanhosa e obra literária tem trajetória de significado singular na canção brasileira. E Jotabê Medeiros, que estreara como escritor no livro O Bisbilhoteiro das Galáxias (Lazuli, 2015), no qual mostra os bastidores de entrevistas com ídolos da música, aceitou o desafio.
Quatro meses depois da morte do cantor, chega às livrarias Belchior – Apenas um Rapaz Latino-Americano, a biografia, de título inevitável, assinada pelo jornalista, crítico musical e colaborador de CartaCapital.
Se a história da vida e da música de Belchior estava até hoje circunscrita a uma quantidade escassa de comentários encontrados em uma série pequena de livros sobre o panorama da música brasileira, que em sua grande maioria o restringem a um compositor regional, oriundo do agrupamento de artistas que ficou conhecido no eixo Rio-São Paulo, a partir da década de 1970, como Pessoal do Ceará, sempre associado ao nome de Elis Regina (que o consagrou nacionalmente ao gravar Como Nossos Pais e Velha Roupa Colorida, em 1976), o lançamento do livro ocupa de modo inédito essa importante lacuna na produção bibliográfica do País.
Nesse sentido, a biografia de Medeiros já teria mérito apenas por abrir caminho para a compreensão de Belchior como cancionista merecedor de ser melhor e mais bem discutido, de ser ouvido. Até então, o universo particular e o denso cancioneiro do artista vinham sendo abordados no campo acadêmico, em teses que analisam características da produção de Belchior.
Não bastasse essa primazia, Medeiros mescla uma narração primorosa e agradável de ler entre o tom culto e o coloquial (estrutura talvez exigida pelo tipo de trabalho do protagonista) e vai contando numa temporalidade quase integralmente cronológica, após um flashback inicial, os feitos da pessoa e do artista Belchior (da infância até a morte, com capítulos especiais dedicados ao autoexílio), os de homem comum e outros que adquirem inflexões épicas.
Os fatos específicos das várias fases da vida e da obra do compositor cearense são apresentados num assemblage que parte do perfil biográfico (iniciado com Belchior ainda vivo) e chega ao ensaio biográfico, com ares por vezes de biografia romanceada.
Belchior
Em muitos momentos do texto, a trajetória de Belchior, entrelaçada à de pessoas que conviveram com ele (familiares, professores, colegas de convento, ex-esposa, ex-namoradas, filhos, parceiros, amigos e até mesmo o “analista amigo meu”), é descrita com uma intervenção interpretativa e crítica do autor, bem como com algumas liberdades de invenção próprias do romance, o que me faz pensar na máxima “todo grande artista merece um grande biógrafo”. É certo que o autor faz esse trabalho em convergência com o quilate de Belchior.

Um dos primeiros pontos de destaque é a capa do livro, assinada por Elohim Barros e Renata Mein, com foto de Silvio Corrêa, com um projeto gráfico que dialoga tanto com a emblemática capa do disco homônimo de estreia de Elvis Presley, de 1956, em que aparece cantando e tocando energicamente seu violão, quanto com o álbum London Calling da banda The Clash, que em 1979 homenageou o rei do rock.
Diferentemente de Elvis, Paul Simonon está prestes a destruir seu contrabaixo. Já na imagem do livro, Belchior aparece sem instrumento algum, fotografado em 1983, com seu famoso bigode, numa posição em que olha delicadamente para a direita, não voltado para o espectador.
A intertextualidade visual incitada na capa do livro aponta para duas características marcantes na identidade musical de Belchior e retratadas no livro: a sensualidade, tal qual Elvis; e a rebeldia, à maneira de Simonon.
Paradoxalmente à imagem instituída na canção-identidade que singularizou o artista na história da música brasileira, Belchior foi muitos, muito além de apenas um rapaz.
A própria quarta capa do livro já anuncia aos leitores que ali dentro ele vai encontrar um Belchior múltiplo e complexo: “Um erudito de disciplina monástica, um hippie vivendo num prédio em construção, um poeta fã de João Cabral e Bob Dylan, um músico experimental, um incorrigível Don Juan, um pintor de retratos, um pop star, um pai de família, um desaparecido”.
Todas essas personas são desvendadas nos 15 capítulos. Em sua maioria curtos, com feição de artigo jornalístico, ao mesmo tempo que guardam uma interdependência no formato livro, poderiam ser lidos autonomamente.
Os títulos ora citam trechos de músicas de Belchior (“O que pesa no norte cai no sul”, “Que esse canto torto corte a carne de vocês”), ora revelam a posição crítica do autor com relação à história do biografado (“Aquele amistoso pessoal do Ceará”, “Bangalôs, charqueadas e acampamentos”).
Diferencial e charme da biografia é o desempenho lúcido do escritor na análise de discos fundamentais de Belchior, como Mote e Glosa (1974), Alucinação (1976) e Coração Selvagem (1977), com um capítulo cada um: “A obra-prima que te fez passar fome”, “Amar e mudar as coisas me interessa mais” e “Vida, pisa devagar”.
Em “A verdade está no vinho”, o autor analisa conjuntamente os álbuns Todos os Sentidos (1978), Era uma Vez um Homem e o Seu Tempo (1979), Objeto Direto (1980) e Paraíso (1982). O leitor vai se deliciar com as curiosidades do contexto de produção de canções célebres.
Algumas das mais interessantes são a gênese do mote “eu sou apenas um rapaz latino-americano” e o surgimento da parceria entre Belchior e Fagner na canção lírica praieira Mucuripe (1972), apresentada a Roberto Carlos, que a gravaria em 1975.
Medeiros também relata como uma paixão por uma mulher originou o disco de intérprete do profícuo compositor: o CD praticamente desconhecido Vício Elegante (1996), onde registrou músicas de Caetano, Chico, Roberto e Erasmo Carlos.
Um dos trechos mais significativos dá-se quando o autor desvela o lado “fingidor” de Belchior, mostrando que muito da narrativa reproduzida até hoje sobre o artista faz parte de uma mitologia criada pelo compositor sobralense como, por exemplo, a existência do grandioso nome “Antônio Carlos Gomes Belchior Fontenelle Fernandes”, o fato de vir de uma família de 23 irmãos e as características de seus ascendentes (a mãe ter cantado em coro de Igreja, o pai ter sido bodegueiro e juiz).
BELCHIOR
Belchior deixou claro de modo inequívoco ao público o investimento em um exercício de figuração, ou seja, o trabalho de construção da imagem de si no campo da música brasileira, que envolve constantemente a preocupação com a filiação, como prova trecho da canção Rock Romance de um Robô Goliardo (1984): Mas não confiem em mim: eu não existo!/ sou apenas o personagem que diz isto/ vou contar para vocês a vida que eu inventei pra mim.

O livro faz um sumário da identidade musical de Belchior, aguçando o olhar com relação à sua posição no mapa da canção nacional, ao mesmo tempo que radiografa a história da moderna música cearense e da chegada ao “Sul Maravilha” dessa geração (de Ednardo, Fagner, Rodger Rogério, Téti, Fausto Nilo, Jorge Mello e tantos outros).
Além disso, como ensinam o filósofo russo Bakhtin e o teórico francês Maingueneau, a leitura evidencia que por trás da produção de Belchior (o “autor-criador”, que emerge da obra propriamente dita) existe sobretudo um homem (o “autor-pessoa”, sujeito empírico, elemento social da vida).
A biografia do artista cearense comprova assim que a música de Belchior só pode ser compreendida na imbricação necessária à sua trajetória de vida, pois, como ele mesmo cantou no clássico Como Nossos Pais, qualquer canto é menor do que a vida de qualquer pessoa.
Josely Teixeira Carlos, cearense, é professora de linguística, pesquisadora da USP e autora da tese Fosse um Chico, um Gil, um Caetano – Uma análise retórico-discursiva das relações polêmicas na construção da identidade do cancionista Belchior.
Fonte: CartaCapital