POR FERNANDO GENTIL
O momento para os povos originários brasileiros é de preocupação. Há um projeto de lei na Câmara dos Deputados que visa legalizar a grilagem, ou seja, o roubo de terras da União.
Isso quer dizer que latifundiários, empresários, madeireiros e garimpeiros poderão pegar terras indígenas e depois legalizá-las.
Além disso, toda a política do governo Bolsonaro é voltada para o extermínio de indígenas, desde a não demarcação de terras, até a expulsão desses povos dos territórios tradicionais.
A questão é que os problemas enfrentados pelos povos originários não vêm de hoje. Desde a invasão portuguesa em 1500 que os indígenas precisam lutar pela própria vida.
O DCM entrevistou uma das principais lideranças do país, Ailton Krenak. Ele falou sobre essas guerras que o povo dele teve que encarar nos últimos anos, a afetação da Covid-19 aos povos originários, as políticas de extermínio bolsonaristas, a vida acadêmica e a de escritor.
DCM: A história dos Krenak passa por diversas guerras, desde a invasão portuguesa até os dias atuais com a Covid-19. Como foram os últimos anos para a comunidade?
Ailton: Nós, Krenak, vivemos em uma região que, historicamente, foi muito disputada pelo garimpo, mineração e também pecuária. Faz 100 anos que esta região é depredada por todo tipo de dano: uso errado da bacia do rio Doce e a construção das hidrelétricas são alguns exemplos. A última construída foi a barragem de Aimorés, inaugurada pelo presidente Lula no ano de 2005 sob protesto nosso.
Então, desde aquela época que esta terra indígena vem sofrendo uma espécie de linchamento ecológico. As atividades econômicas implantadas no entorno deste território passaram a ignorar que já existia um uso diferenciado desta terra indígena.
Nossos vizinhos são sedes de municípios, empreendimentos, agronegócio, mineradoras, além da Estrada de Ferro Vitória-Minas que tem 70 anos que passa aqui na margem direita do rio. Nós ficamos ao lado esquerdo e escutamos toda hora os trens da Vale passando e apitando, dia e noite.
Isso é um conjunto de danos ambientais que se acumulam ao longo de décadas, até chegar ao ponto de saturação. Essa saturação foi quando a lama da barragem de rejeitos de minério da Samarco, em Mariana, desceu por todo o rio Doce até o litoral.
Do ponto de vista ecológico, nós estamos em uma área de alto risco. Muito antes da Covid-19, nós já estávamos confinados em uma pequena área cercada por todo tipo de agressão ambiental. Mesmo se não houvesse nenhuma ofensa aos direitos humanos desta comunidade, ela está confinada por um conjunto de situações externas que isolam os índios aqui dentro. É como se nós tivéssemos que contar o tempo nós mesmos diante de tanta pressão.
Faz quatro anos que não usamos a água do rio Doce, do Watu (nome dado à divindade representada pelo rio para o povo Krenak). Aqui em Resplendor a gente tem visto uma certa conveniência de não assumir a responsabilidade de fiscalizar os atos da Fundação Renova e da Vale.
A nossa comunidade virou um pátio de obra das empreiteiras contratadas pela Renova. Isso pode parecer um privilégio, mas, na verdade, é uma desgraça, porque é uma invasão da nossa vida, do nosso território.
Uma hidrelétrica construída às margens do rio Doce faz parte de uma política de governo. Ela vai produzir energia, dar base ao desenvolvimento regional, todo esse argumento lógico.
Porém, ela também vai causar um dano ambiental. O relatório socioambiental de quando ela foi construída, por exemplo, ignorou a existência de um território indígena na faixa de impacto da barragem.
Os Krenak pararam a linha de trem da Vale duas vezes apenas: uma em 2005 por conta dessa barragem e outra em 2015 por causa da lama da Samarco. Nos últimos 10 anos nós estamos vivendo no limite da nossa capacidade de resistência dentro de um lugar flagelado por todo tipo de ataque.
Parece que este território está sob constante pressão, seja do rio sendo destruído, a ferrovia que inferniza nossa vida… Nós achamos que se a Vale quer manter essa drenagem da riqueza do Brasil para fora sem pagar nada, ela não vai. Ela vai ter que pagar para a comunidade que ela afeta algum tipo de benefício, porque é uma grande sacanagem uma corporação gigantesca sugando a riqueza nacional, com um governo leniente, autoridades corruptas e a comunidade perdendo rio, floresta, paisagem… até as tartarugas marinhas já pagaram o pato por causa disso.
Antes da Covid invadir, a gente já está invadido. Por isso, hoje nós temos que redobrar os cuidados para que uma pessoa de dentro desta aldeia não pegue lá fora o vírus e traga aqui para dentro.
Em outras regiões do Brasil, onde esse cuidado não foi eficiente, pessoas indígenas que vivam nas cidades retornaram aos territórios e transmitiram o vírus de forma comunitária. Isso aconteceu em Manaus, por exemplo. Está havendo uma mortandade em aldeias da Amazônia. Tem o caso de uma específica, em que todo mundo que vive lá pegou o vírus. Então, imagine a tragédia. Um lugar que não tem hospitais, não tem como socorrer, os hospitais de campanha prometidos pelo governo federal não foram feitos.
Mesmo quando eles construíram o balcão e colocaram macas e outros equipamentos, eles não complementaram isso com a implantação das UTIs. Não adianta você tirar um cara que está no meio da floresta, viajar com ele três dias e colocar numa maca. Ele podia ficar na aldeia dele mesmo, tendo o cuidado de não transmitir para os outros e esperar passar o tempo de contágio. É uma situação trágica!
O senhor vê a Covid-19 como uma nova forma de genocídio aos povos originários?
O vírus é um vetor de invasão, mas a gente não pode simplificar dessa maneira. É uma doença que está afetando a humanidade. Seria um exagero a gente dizer que ele é uma praga usada para nos afetar diretamente, como foi o crime da barragem da Samarco, por exemplo.
A Articulação dos Povos Indígenas Brasileiros (Apib) tem publicado informações regulares sobre o número de indígenas contaminados e os que morreram. Ela questiona os números publicados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) que tem um cadastro apenas dos indígenas que vivem em aldeias, mas e os que estão na cidade?
Eles não têm esse cadastro, não têm esse atendimento direto. Eles são atendidos pelo SUS tradicional. Isso quer dizer que há uma subnotificação de casos e também de óbitos. A diferença é enorme entre os dados da Apib e os do governo federal. Só em Manaus são mais de 30 mil indígenas que vivem na capital, longe da aldeia e essa população não é contabilizada pelos números da Sesai.
E essas pessoas não têm a informação necessária para poder se proteger do vírus. Muitos vivem em 10, 15 pessoas no mesmo espaço em subempregos ou na busca por uma vaga em universidades da capital do Amazonas. É uma situação extremamente grave.
Aqui na reserva indígena Krenak nós somos 130 famílias fazendo quarentena coletiva. Internamente, a gente tenta conscientizar cada um. Se uma pessoa sair daqui e for para um forró lá fora, ela vai trazer o vírus aqui para dentro. A gente sabe que agora está tendo essa campanha incendiosa que diz para as pessoas irem para a rua.
Antes era porque as pessoas não podiam ficar sem trabalhar, mas agora a gente vê um desespero das pessoas querendo sair correndo para a rua, como se a gente tivesse vivendo uma situação de contenção não só do vírus, como também da ansiedade das pessoas que não conseguem ficar quietas.
Nós estamos vivendo uma mudança no clima do planeta inteiro. Assim como esta comunidade está sofrendo danos, as outras também estão em todo o planeta. Tem gente que não tem nem como ficar, que tiveram seus territórios bombardeados, como é o caso da Síria.
A gente tem que ter um pouco de “simancol”. Olhar ao redor e ver o que os outros estão passando para a gente não ficar no lugar de vítima. Nós estamos tornando o mundo um lugar improvável de se viver no futuro.
Eu vejo que você é um jovem e jovens da sua geração devem botar a mão na cabeça e pensar: “que mundo eu vou largar para o meu filho?” É uma tragédia ecológica o que estamos vivendo no planeta.
Sobre a questão da lama da Samarco que invadiu o rio Doce e depois o território Krenak, essa invasão chegou dentro da comunidade de várias formas: econômica, social, cultural e até espiritual. Como o povo Krenak tem lidado com tudo isso?
São questões diferentes que têm a ver com a mesma situação. Uma é sobre a subsistência das famílias que vivem aqui no território. Desde a época da construção da barragem hidrelétrica, em 2005, nós entramos com um processo no Ministério Público contra a Cemig, a Vale e o governo do Estado de Minas Gerais para garantir a recuperação ambiental e também a economia da nossa comunidade. A primeira atividade que foi implantada aqui, que foi uma escolha circunstancial das famílias Krenak, foi a de desenvolver a atividade de pecuária leiteira.
Isso é uma coisa totalmente estranha à cultura Krenak, nós nunca criamos gado e, de repente, a gente tem que se adaptar a uma atividade econômica que é tirar leite de vaca, separar as crias, descartar as que não vão produzir. É uma rotina que exige um treinamento e uma capacitação de longo prazo. As famílias que vivem na roça, que criam gado, ao longo das gerações aprende a fazer queijo, laticínios em geral.
Aqui na nossa aldeia, a única coisa que a vaca dá é o leite. Ele sai daqui em um caminhão para ir para alguma empresa de laticínio. Quer dizer, é um subaproveitamento de uma atividade que poderia ter vários desdobramentos. É uma atividade precária aqui dentro.
A outra forma de reparação são as cestas básicas. As famílias têm que receber em caráter emergencial, até que se reconstitua modos próprios de subsistência aqui dentro.
Uma coisa que é muito curiosa, Fernando, é que ao longo desses anos o governo de Minas deu no pé e a Cemig também. Quem ficou aqui foi a Fundação Renova. Se você olhar, os responsáveis legais por esse crime evadiram da cena e largaram um laranja aqui que é a Renova que fica contratando empreiteiras, transforma isso aqui em um canteiro de obras, para tampar o sol com a peneira.
O que nós estamos tendo aqui na bacia do rio Doce é uma cortina de ações que não vão, efetivamente, restaurar a bacia, não vão recompor a mata ciliar. Que cara de pau é essa do governo de Minas, da Cemig e da Vale sugerirem que estão fazendo alguma restauração?! Se você olhar o desembolso que eles declaram fazer nesses anos, você vai ficar assustado.
São mais de dois bilhões que eles declaram ter investido nas ações emergenciais do médio rio Doce. Eu não estou falando de Mariana, de Regência, nem de Brumadinho e esses outros estragos que eles saíram largando para trás. São dois bilhões apenas para o médio rio Doce (região que envolve cidades como Governador Valadares, Conselheiro Pena, Resplendor e Aimorés).
É um acúmulo de desastres que ficam como se eles fossem planejados. Aí, eles deixam de ser desastres e passam a ser uma ação criminosa.
Essa questão da criação de gado é também um problema ambiental, porque a vaca destrói o solo, as nascentes, os córregos, a floresta. O senhor vê isso como um outro problema que os responsáveis por esses crimes estão levando aí para dentro do território?
Imagina a ironia. Essa opção da pecuária leiteira foi colocada como uma possibilidade. Até o pessoal da Universidade Federal de Viçosa (UFV) foi convidado para desenvolver o programa. Como que uma universidade confirma uma hipótese de ação dessa em uma área confinada, já muito impactada ambientalmente?
Como implantar essa atividade de forma sustentável? Que sustentabilidade que tem uma palhaçada dessa? A UFV deveria ter vergonha de colaborar com um tipo de remendo desse. Larga o gado aqui e vai todo mundo embora. Vão acabar com as nascentes, com a vegetação que tentar ressurgir, com a bacia dos córregos pequenos e eles ficam com essa falsidade, dizendo que estão fazendo restauração.
Os municípios envolvidos nesse crime como Resplendor, Conselheiro Pena, Valadares, Ipatinga, que têm uma expressão política relevante na bacia do rio Doce, deviam se erguer, chamar o governador e perguntar: que coisa é essa? Vocês vão esperar a gente virar um esgoto? Aí, vocês põe um tapume em cima depois para esconder o cheiro? Eu fico muito indignado!
Além de não fazer a reparação, a Renova impede a efetivação das assessorias técnicas criadas pelos próprios atingidos para ajudá-los a resolver os problemas causados pelo crime ambiental. Como o senhor vê isso?
Eles são muito hierarquizados. Algumas pessoas a gente só vê nas assinaturas dos relatórios. Não sei nem se elas existem. Eles contratam os profissionais especialistas em cada área e dizem que essa gente vai trabalhar. Os profissionais têm que seguir um protocolo muito detalhado e, caso não sigam, essa atuação deles é interrompida. Ou seja, não funciona.
A gente ficou mais de um ano e meio discutindo com Vale e Renova sobre esse assunto e nada resolveu. Para não dizer que não estão fazendo nada, contrataram um monte de empreiteira para fazer estrada aqui dentro. Nós nos tornamos um pátio de obra para construir estrada que vai trazer água de caminhão.
Uma água potável de qualidade bem duvidosa, inclusive. A gente ficou sabendo que eles estão tirando essa água do próprio rio Doce. É um monte de abuso. Nós temos que gastar nosso tempo para fiscalizá-los.
O que mais impacta a gente não é o risco do vírus, mas sim todas essas outras invasões que a gente vem sofrendo. Elas, sim, impedem que a gente tenha vida própria.
E a questão cultural, espiritual?
O sentido da nossa relação com o nosso território é como se você estivesse passando por uma espécie de crise existencial. O futuro está suspenso. Isso é um dano irreparável. Isso tem relação com o que a Convenção de Genebra considera como etnocídio. Ele não elimina os corpos, mas ele destrói a cultura, o sentido da vida, a percepção da própria existência.
Eu evito usar o termo espiritualidade, porque as pessoas acham que a gente está apelando. Como a gente está vivendo em um tempo de muita banalização de tudo, fazendo tudo quanto é tipo de besteira em nome de Deus, eu prefiro não usar esse termo.
O crime afeta, profundamente, a experiência de vida das pessoas que vivem em comunidade. É diferente de alguém sozinho que pode se mudar para qualquer lugar do mundo. O horizonte das pessoas daqui não é ir para outro lugar. Aqui existe um controle social nosso. Se alguém daqui quiser ir para os Estados Unidos, por exemplo, viver lá, não é escolha pessoal dele.
Vai ter que negociar com a comunidade o que é que ele vai fazer lá. Se ele nunca mais quiser voltar, ele pode ir, mas não tem esse negócio de ir e voltar. Isso desvincula a pessoa do território. Eu duvido que um garoto que vai embora para os EUA com cinco, seis anos e volta para a cidade em que nasceu com 20, 30 anos, enxerga esse local como a casa dele. Ele vai olhar esse lugar como uma plataforma extrativista, um local em que ele também tira algo que ele quer ou precisa.
Essa ideia extrativista que a Vale implantou na nossa região, que já foi Vale do Rio Doce, ou seja, que invoca uma bacia hidrográfica que ela própria destruiu, acha que pode dar um troco e a gente tem que ficar feliz e bater palma. É muita sacanagem!
E ainda tem uma empresa de água mineral que atua bem próxima à comunidade. Além da barragem hidrelétrica, da ferrovia, da lama da Samarco, do agronegócio… São vários crimes que o povo Krenak enfrenta cotidianamente, né?
O que é interessante é que historicamente isso não é percebido como crime. Se você perguntar a qualquer um desses empreendedores, se eles estão criando algum dano ecológico e econômico ao povo Krenak, eles vão dizer que não, de jeito nenhum, que são parceiros, que nos querem bem. A lógica capitalista é para você empreender. É para você abrir mesmo um garimpo, a mineração, uma fábrica, uma indústria. Se você puder se apropriar de uma mina de água e fazer a extração comercial disso, tudo isso é considerado empreendimento.
São estimulados e ganham até linhas de crédito especial para que essas atividades econômicas deem emprego. É toda a lógica do desenvolvimento capitalista. Se você não conseguir fazer uma crítica a essa ideia, todas as outras coisas não podem ser consideradas crimes. Pelo contrário, são atividades essenciais que vão cooperar com o desenvolvimento regional.
E esse papo é uma conversa para boi dormir. Se isso fosse verdade, a gente não estava entre as cidades com menor Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) do nosso estado. A região do rio Doce, junto com a do Jequitinhonha são consideradas as regiões mais pobres de Minas Gerais. Por quê? Essas estatísticas que a turma do Guedes (Paulo Guedes – ministro da economia) adora lamber!
O senhor também foi convidado à época da Constituição de 1988 para escrever os artigos que falam dos direitos dos povos originários brasileiros. Existe algo que hoje o senhor vê que deveria estar na lei para proteger os indígenas e não está?
Existe uma confusão causada pelo Wikipedia de que eu fui deputado constituinte, mas, na verdade, eu fui convidado para fazer a defesa pública apenas dos capítulos que envolvem os povos indígenas. Eu ganhei esse direito, ajudei a debater e a criar esses artigos. É um orgulho que eu levo para a vida toda.
Eu quero que, se existir um mundo para meus filhos e netos compartilharem, eles saibam que o pai e avô deles escreveu o capítulo dos índios na Constituição. Foram 120 mil assinaturas de pessoas do Brasil inteiro, sem legenda partidária, criada por uma frente ampla com diversas organizações da sociedade civil que decidiram que eu escrevesse esses artigos.
Felizmente, eu estava inspirado aquele dia, pintei até minha cara com a tinta preta de jenipapo e aquele gesto foi definitivo para que os constituintes decidissem que tinham que respeitar os direitos indígenas que estavam sendo reivindicados. Então, eu acho que não mudaria nada. A Constituição de 88 continua sendo um consenso.
Juristas de fora do Brasil elogiam-na, dizendo que ela é um documento muito avançado, que incorpora a perspectiva socioambiental, que dá limite à propriedade privada, que aplica a redistribuição de renda. A nossa Constituição é avante ao nosso tempo, a questão é que nós não temos governos à altura dela.
Você teve uma sociedade que conseguiu pensar uma nação, mas você tem políticos que conseguem depredar essa construção social e transformar em um conflito jurídico. Por isso que toda hora tem uma medida provisória, que é uma maneira de ofender a Constituição dentro da legalidade. Governar por MP é uma ofensa à Constituição.
Inclusive, agora teve o arquivamento da MP 910 que, praticamente, permitia a grilagem, o roubo de terras públicas, né?!
Ela é chamada de MP da Grilagem. Foi denunciada, mas os espertalhões modificaram e agora estão transformando em um projeto de lei. Eles vão tentar tramitar isso na Câmara dos Deputados, onde eles acham que têm maioria, para aprovar uma lei que permite que alguém que invadiu uma terra pública não pague por ela. É bom lembrar que as terras indígenas são patrimônio da União. Os índios têm direito de usufruto, mas o dono é o Estado brasileiro.
É por isso que em uma terra indígena não pode ter uma fazenda de gado, mineração, garimpo. O tipo de usufruto é de atividades sustentáveis de longo prazo. As gerações futuras precisam poder beber água no igarapé, na nascente ou córrego que exista dentro do território. Então, não pode transformar isso em um bueiro, um chiqueiro, é proibido. O problema é que a maioria das pessoas ignoram isso, sentam o pau e querem transformar as terras indígenas em verdadeiros condomínios comerciais.
De 1988 para cá, o que o senhor vê da relação entre o não-indígena e os povos originários no país?
Piorou, né, Fernando?! Piorou muito! Se no começo da década de 90 é concebida uma ideia como essa que está nos artigos 231 e 232 da Constituição que promove políticas de proteção, de reconhecimento cultural, de falar a língua indígena, de criar as escolas propriamente indígenas para os índios não terem que estudar fora das aldeias, não ser impedida de falar sua língua materna… hoje boa parte dos povos indígenas não falam a própria língua, porque foram proibidos e discriminados.
E, quando foram para escola, aprenderam português. Se você vai para a escola aprender a ler e escrever em português, como você vai desenvolver conhecimento sobre a sua língua materna? A gente piorou muito, ao ponto de ter um governo agora que incita as pessoas a invadir e roubar as terras indígenas… Você está ouvindo? Essa buzina? Sabe o que é?
É o trem da Vale?
É…
Nossa, é muito alto.
De hora em hora, eles fazem isso. Se a gente ficar conversando por mais uma hora, o trem vai passar e vai tocar a buzina. Se você medir o ruído ambiental, só por isso, a Vale tinha que pagar para a gente pelo resto da nossa vida uma indenização.
Se a gente fosse um país que respeitasse mesmo as normas ambientais, a Constituição, as recomendações da Convenção de Genebra, a gente não tinha mais essa ferrovia passando com minério aqui na nossa casa. Essa atividade já teria sido considerada antieconômica. Mesmo que uma geração encha o bolso de grana, a outra vai estar doente e gastando esse dinheiro com hospital.
É, mais ou menos, o que está acontecendo com a Covid hoje. Dizem que tem centenas de pessoas, pesquisadores tentando achar uma vacina. Quer dizer, centenas de laboratórios gastando milhões de dólares para desenvolver uma vacina que a gente não precisaria dela, se a gente não tivesse criado o vírus.
Eu estou te contando uma parábola de uma atividade econômica que depois você vai ter que gastar mais do que obteve com ela para conseguir uma vacina contra ela. Um dia o Brasil ainda vai ter que pagar pelos lucros que a Vale teve em cima do nosso território. Vai pagar em hospitais, em remédio, em indenização. É estúpido, não é?!
Falando dessa questão política, o que o senhor acha da atuação e das interferências do governo Bolsonaro na Funai, Sesai e demais órgãos de política indigenista?
Eu acho que ele é muito coerente com o que ele diz. A Funai tem um regime de funcionar que supõe que ela tem que defender e proteger as terras indígenas diante de uma usurpação qualquer. Todos os protocolos da Funai agora revisam o uso das terras indígenas pelos indígenas. O governo Bolsonaro, depois de colocar um dirigente anti-indígena lá dentro, está mandando a Funai mudar os procedimentos internos de fiscalização, monitoramento e proteção da terra indígena.
Tem um documento, por exemplo, do final da década de 80 que diz que alguém que tivesse que fazer um registro de uma escritura de terras com extensão acima de 100 hectares, tinha que pegar uma certidão negativa na Funai, dizendo que lá não era terra indígena. Esse governo agora está acabando com esse procedimento. Você não precisa confirmar com a Funai, se aquele lugar é uma terra indígena. Você invade e depois pede à Funai uma autorização de registro daquela propriedade em cartório no seu nome. Quer dizer, ele está legalizando o roubo de um patrimônio da União.
Nós temos um governo que está vendendo ficha para latifundiários ladrões de terra, principalmente no Norte do país. No Sudeste, se você for ocupar uma terra, tem muito conflito, muita disputa. Na Amazônia, você pode pegar 2 mil, 3 mil hectares de terra através do Cadastro Rural. O novo Código Florestal exigiu o uso desse cadastro para novos empreendimentos, então ele passou a ser obrigatório. É um protocolo que um proprietário de boa fé, legítimo faz para poder determinar os limites do território dele. E até mesmo como ferramenta de georreferenciamento, ela é uma boa forma de gestão. Só que estão usando para roubar terra!
Esses caras que estão no governo agora rasgaram esses protocolos e fizeram a gente virar uma espécie de Uganda. Do ponto de vista de governança, o nosso país está desgovernado. Isso pode ofender algumas pessoas que elegeram o Bolsonaro, mas só um cego que não vê isso.
Já morreram mais de 20 mil pessoas (por Covid-19). A contagem é igual taxímetro, não para. Quando a gente desembarcar dessa experiência, nós vamos parecer um passageiro perdido, tendo que rapar o bolso para pagar o táxi, olhar para os lados e perguntar: onde é que nós estamos?! Mas os brasileiros colheram esse governo que está aí.
O senhor faz parte um povo reconhecido por ser guerreiro. Desde a “guerra justa” que vocês enfrentam tudo e todos em prol da vida e do território em que vivem. Pensando de uma forma mais geral, o senhor acredita que o povo brasileiro segue essa mesma determinação? Acredita em uma luta de classes violenta no país?
Eu não tenho essa avaliação. Nós estamos vivendo uma situação que é, basicamente, econômica. É uma crise de perspectiva, porque tem uma parte das pessoas que controlam a riqueza no Brasil, que acham que devem manter a gente na condição de subdesenvolvimento, só como mão de obra.
Tem uma elite que aposta nisso, internacionalista, que fica lambendo o Trump… essa gente não quer progresso, não quer desenvolvimento. Não sei se a gente vai desembocar em um conflito dessa proporção, porque a sociedade brasileira não tem um histórico de resolver as coisas fazendo guerras. Pelo contrário, essa mistura excêntrica do povo brasileiro é muito subalterna. Eu acho que a gente não é uma nação.
É um país esquizofrênico, com gente de tudo quanto é lugar, com todo tipo de interesse. Tem gente que venderia o Brasil de graça. Uma nação não se constitui assim. Eu acho que estamos longe de ter um conflito identitário desse tamanho.
O senhor acha que a solução é esperar passar esses dois anos de governo e tentar eleger outra pessoa?
Nós temos uma cultura rural. Você sabe o que é íngua?
Então, é uma íngua e nós vamos ter que esperar passar. É chato para caramba, mas vamos ter que esperar passar. A gente vai ter que ter paciência. Não adianta a gente sair por aí matando uns aos outros. O Brasil, em todos esses anos, só teve conflitos localizados. O país é de uma estrutura continental. Teve conflitos, pequenas guerras, mas nada que faça sentido agora e em um país do tamanho do nosso.
Lá no Chile, por exemplo, você teve agora um conflito que foi do povo contra os abusos do governo, não é uma luta de classes. Todo mundo foi pra rua: rico, pobre, direita, esquerda. Aqui no Brasil não é assim. Aqui no Brasil tem passeata, carreata de Land Rover, que são os senhores de engenho gritando com os negros da senzala: “Ô vagabundo, vai trabalhar!” É imoral, a gente não é uma sociedade!
Mas o senhor não acha que com o armamento desenfreado da elite brasileira, a formação de milícias bolsonaristas, liberação de munição, isso não pode trazer esse tipo de consequência?
O rico no Brasil vê um problema, pega um avião e vai embora para Miami. Não acho que chegue a isso. E é claro que tem sido público e notório o fato da gente ter um governo que estimula milícias e que foi patrocinado pela indústria armamentista. A gente vai ter que atravessar isso e superar.
O senhor também trabalha como acadêmico, dá aula em universidades. Aumentou o número de indígenas nas cadeiras das universidades, na pesquisa? Há mais professores e pesquisadores indígenas no país?
O acesso dos indígenas às universidades só começou com a implementação das políticas de cota. Antes disso não tinha indígena no ensino superior, só raras exceções. Tenho alguns amigos com título de doutorado, pós-doutorado. Eu não estudei, tenho título de Doutor Honoris Causa, sou conferencista, dou aulas em algumas universidades em diferentes programas de graduação e pós. Inclusive em experiências escolares para a infância.
É um engajamento que eu tenho com a questão da educação, não é por uma profissão. Nós temos milhares de jovens indígenas nas universidades brasileiras nos últimos cinco anos. A maior parte deles na graduação, mas alguns já na pós-graduação. Estão espalhados nas universidades públicas e particulares em todo o país.
Eu não sei se no futuro isso vai aumentar a chance de reafirmação cultural dos povos indígenas ou se vai ser uma diluição da cultura indígena na academia.
O senhor acha que esse aumento no número de indígenas nas cadeiras das universidades aumentou o preconceito contra eles dentro da academia?
Não se trata de aumentar ou diminuir o preconceito. Um sujeito que estava lá na floresta e conseguiu uma vaga na Unicamp, ele disputou essa vaga com um ou vários não-indígenas. Isso que está em jogo! A gente não pode simplificar apenas para preconceito, porque assim a gente elimina os outros vetores que envolvem essa ocorrência.
O senhor lançou agora o livro “O Amanhã Não Está à Venda” e, no ano passado, “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”. Em 2019 não se imaginava uma pandemia como a que ocorre este ano. O senhor lançou esse novo livro como uma atualização das ideias para adiar o fim do mundo?
Quando eu publiquei o “Ideias Para Adiar o Fim do Mundo”, eu não imaginava que ele ia ganhar um sentido tão profético. De a gente entrar pelo cano com essa situação ambiental, política e sanitária. No meio da crise da Covid-19, eu tive a oportunidade de refletir sobre um possível amanhã e pensar que esse amanhã não pode estar à venda. A conclusão de que, se a gente sair dessa, correndo para a fila do mercado financeiro, nós estamos negando a tragédia humanitária que esse vírus causou matando muita gente.
Alguém que vai estar me lendo, provavelmente perdeu um familiar nessa pandemia. A gente não pode desrespeitar o sentimento de quem perdeu não só familiares, como o sentido da vida também. Voltar à rotina seria aderir ao negacionismo. É coisa dessa gente que diz que a terra é plana ou desse ministro da Educação que é um boçal e que só fala besteira. Se a gente sair da pandemia no mesmo estágio de alucinação que a gente estava, nós estamos fazendo uma declaração que nós somos mesmos idiotas.
Para terminar, Ailton, qual recado você deixa para as crianças indígenas e também não-índigenas sobre esse amanhã?
Nos últimos anos eu tive vários encontros com várias crianças nos meus trabalhos com educação infantil. Na minha conversa com essas crianças, eu digo para elas: eu sei que vocês têm mais capacidade de compreensão do dano que a forma que a gente vive traz para o planeta, mas eu sei também que vocês têm sabedoria para entender que nós não temos capacidade de salvar o planeta. O planeta é muito maior do que nós.
Para algumas culturas, tradições, a Terra é uma entidade superior, é como um deus, uma divindade. Seria idiota o humano pensar que ele poderia salvar uma divindade. Um dos termos para pensar a Terra vem do grego: gaia. Se a Terra é o organismo de gaia, nós humanos somos mais um pequeno que precisa desse organismo para existir, respirar, comer, beber água. Nós não podemos salvá-lo. O que a gente pode e deve é diminuir a nossa ofensa e agressão a esse organismo.
Inclusive, um evento futuro que pode acontecer é que esse organismo, como um urso, pode ter um piolho (nós humanos), em que ele chacoalha o corpo e o piolho vai embora. Se a Terra balançar, ela manda a gente embora.
Fonte: Diário do Centro do Mundo - DCM