Hélio Xavier de Vasconcelos
Cursou Direito na
Universidade Federal do Rio Grande do Norte na turma de 1961. Presidiu a
Seccional Potiguar de primeiro de fevereiro de 1993 a primeiro de fevereiro de
1995. Durante sua gestão recebeu a medalha “Djalma Marinho” e fez questão de
dividi-la com a própria OAB/RN.
Apresentação - Hélio Xavier de
Vasconcelos - Volume XII
Diz Godard em seu último filme¹:
- Não existe resistência sem memória.
Este livro de, e em homenagem a, Hélio
Vasconcelos é uma consolidação de memórias, consequentemente, matéria-prima
para a continuidade da luta da resistência política, atributo de nossa geração,
dele e minha. À lição de Godard eu acrescento: que esta memória seja de
qualidade para poder servir à resistência. E isso vai ser encontrado neste
livro, sendo a primeira dessas qualidades a coerência de uma vida.
1 - POLÍTICA E COERÊNCIA – Dos papéis aqui
editados, vou tomar duas datas: 21 de março de 1959 e 01 de fevereiro de 1993.
A primeira é a de seu discurso quando da instalação da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte e a segunda sua falta quando assumiu a presidência da
OAB/RN.
a) – Em 1959 diz Hélio Vasconcelos:
Sejamos heroicamente fiéis ao nosso destino.
O Péguy católico e o Péguy socialista – ambos possuíam sobre o destino, a mesma
doutrina, “um homem é responsável por certo destino. Possui esse destino, mas
também é possuído por ele. Não é possível dissolidarizar-se dele.” Tomemos para
nós, geração necessariamente poética e inquieta. A lição do escritor francês;
liguemos o nosso destino ao destino do nosso povo. Sirvamos na Universidade ao
nosso próprio destino.
b) – Em 1993 diz Hélio Vasconcelos:
Escolhi dois colegas advogados para neles
sintetizar a nossa gratidão. Refiro-me às pessoas de Carlos Antônio Varela
Barca, nosso ex-presidente, valoroso, combativo, inteligente, probo, grande
defensor das públicas liberdades; o outro, Luiz Ignácio Maranhão Filho, advogado
dos humildes, patriota convicto, estudioso dos problemas brasileiros, digno e
forte, bárbara e covardemente trucidado nos porões da ditadura. Um cristão, o
outro socialista, ambos com os mesmos sentimentos, os mesmos sonhos, as mesmas
esperanças. A eles e tantos outros que se foram a nossa homenagem (...).
Entre as duas datas, 34 anos se passaram: um
tempo com dias claros de alegria, outros dias com o peso de chumbo do
sofrimento; tempos de trabalho, de criação e recriação e, principalmente, de
coerência e esperança. Ao curso de sua vida, Hélio procurou valorizar os
humanismos cristão e marxista, como demonstram os dois discursos,
aproximando-os, politicamente.
Desde o movimento estudantil, é visível o
crescimento político de Hélio. Muito terá contribuído para isso sua aproximação
de Luiz Maranhão. Repetia-se, aqui, um comum fenômeno brasileiro: inúmeros
intelectuais cresceram na escola do Partido Comunista Brasileiro (PCB), nas
oito últimas décadas do século 20. Ali era o locus de encontro com o pensamento teórico
marxista-leninista e, com o Partido na clandestinidade, a práxis se fazia através
de alianças políticas no campo burguês, oscilando a opção como pêndulo nos
apoios aos partidos tradicionais. Desta prática vão nascer, em Hélio, traços
profundos de amizade às lideranças de Dinarte Mariz e Djalma Marinho. Isso,
todavia, não o impede de reiterar sua vocação de esquerda e apoiar a
administração do Prefeito Djalma Maranhão (1960-64).
Acredito que será a partir do Centro de
Cultura Popular de Natal (CCP da UNE), de 1962 a 64, que Hélio vai se tornar
mais visível no campo político potiguar, com luz própria. Ali ele vai liderar
uma aliança marxista e cristãos de esquerda e passar a influenciar um movimento
ascendente de jovens, dentro e fora da Universidade. Este CCP, falando pelo PCB
e pela AP (Ação Popular), vai ser um importante aliado da Campanha De Pé no
Chão Também se Aprende a Ler, dirigida pelo Prefeito Djalma Maranhão. Datam
desse tempo a realização de vários eventos comuns, desenvolvidos em Natal, principalmente
nas áreas dos sindicatos de trabalhadores e dos Comitês Nacionalistas que,
criados em 1960, funcionaram alguns até o Golpe de Estado de 1964. No campo
cultural, lembro que estivemos lentos na encenação teatral de um novo
julgamento de Tiradentes e na realização de um congresso de cultura popular que
contou com a colaboração de vários intelectuais oriundos de diversos Estados
brasileiros e que se encerrou na praça pública, numa passeata de Primeiro de
Maio, celebrando nossa visão utópica de uma aliança
operário-estudantil-camponesa. Tempos de sonhos. Também, tempos de lutas pelas
Reformas de Base do Governo Jango, quando vários manifestos políticos da
esquerda nacionalista foram redigidos a quatro mãos - as dele e as minhas – nas
salas da Prefeitura de Natal que, no dia do Golpe, se autodenominou, com muito
orgulho nosso, o QG da Legalidade e da Resistência.
Depois, vieram as prisões de 1964; o
auto-exílio no Rio de Janeiro; o desemprego; a ansiedade do político
perseguido. Mais tarde, a vida que segue: o reingresso no mundo do trabalho,
primeiro, vendendo colchões no subúrbio carioca do Vila da Penha, depois já na
FUNABEM (1966), exercendo o ofício de advogado; o casamento com Hilda, o
nascimento das filhas Inah, Zilda e Gabriela; a volta para Natal; a anistia; a
retomada da vida pública: Procurador do Poder Legislativo; Secretário de Estado
de Educação e Cultura (1983-87); Presidência da OAB/RN (1993-95). Ele que, em
1959, como estudante, fizera a convocação sirvamos na Universidade ao nosso próprio
destino, nos anos 80 volta à UFRN e funda a disciplina Direito da Criança e do
Adolescente e nela leciona até a aposentadoria.
Ai está o nosso primeiro e principal destaque
neste Prefácio: a coerência de um homem.
2 - O ADMINISTRADOR – O segundo aspecto
que quero ressaltar é a sua qualidade de administrador, também coerente aos
seus paradigmas políticos. Vou utilizar as datas de 1987 e 1995, e isto é os
discursos de transmissão de cargos exercidos por Hélio, o primeiro de
Secretário de Estado de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte e o segundo
de seu mandato de presidente da OAB/RN.
Na SEEC ele foi formulador de uma política
educacional que denominou de Escola Aberta e Democrática. Chamo
atenção para a data na qual iniciou o seu trabalho: novembro de 1983. Esta é a
época em que já estava exaurida a Ditadura, mas o Estado de Direito ainda não
havia surgido. Esta transição é um período de imensas dificuldades, mas Hélio
não tem medo. Vai trabalhar com o espólio recebido que é uma educação pública
em pedaços. Quando, depois de 3 anos, 3 meses e quinze dias entrega o cargo ao
seu sucessor, pode dizer em seu discurso que a proposta da Escola Aberta e
Democrática é o locus no
qual Direção, Professores, Especialistas, Estudantes,
Funcionários e a própria comunidade convivessem e participassem integralmente
para que a instituição funcionasse bem. Escola que fosse o local aberto às
discussões sobre os problemas educacionais e aqueles outros comuns à própria
comunidade.
Dirá que esta escola sonhada não será uma concessão
de Estado, de Governo, e sim uma conquista de responsabilidade de todos. E de
forma lúcida declara: sabíamos também que a Escola Aberta e Democrática
não seria alcançada isoladamente, mas, e tão somente, quando a própria
sociedade brasileira conquistasse a democratização global do país.
Além dessa construção democrática, outros
resultados são importantes: o aumento de 19,49% de acesso à rede escolar: a
realização do primeiro Concurso Público para o Magistério Potiguar: a
implantação do Estatuto do Magistério, a modernização dos serviços da
Secretaria, etc. Quanto à prestação de contas, Hélio é minucioso em informar
cada tostão recebido e cada tostão aplicado. A transparência é uma de duas
qualidades administrativas.
E mais uma vez, coerente e fiel aos seus
postulados políticos, dirá de forma clara as limitações brasileiras no campo
das escolas: Sabemos quão difícil e penoso é fazer-se educação em um
país em que o sistema econômico seja capitalista.
O segundo discurso, o de 1995 quando
transmite o cargo de Presidente da OAB/RN, é tambémuma detalhada prestação de
contas. Suas palavras ficarão para a história das lutas para dotar Natal de um
Fórum Judiciário. Hélio quer somente um lugar digno, acessível, onde trabalhem
Advogados, Juízes, representantes do Ministério Público, serventuários da Justiça
e funcionem as Varas Cíveis e respectivos cartórios. Esta seria uma ferramenta
para alavancar a solução de um dos mais graves problemas – nas suas
palavras: a morosidade da Justiça no Brasil (...) (é) uma das mais
perversas formas de injustiça que, atingindo a todos, violenta e massacra,
sobretudo, os mais fracos. Mais uma vez é a visão política da questão e,
mais uma vez, a coerência do gesto. No biênio da gestão Hélio Vasconcelos, a
Defensoria Pública, as Procuradorias do Estado e do Município de Natal contaram
com o seu apoio e a própria OAB/RN prestou assistência judiciária gratuita a
3.344 pessoas carentes. Finalmente, seguindo a tradição da OAB brasileira, a
entidade potiguar foi além da legítima defesa corporativa e exerceu o mandato
que lhe é inerente de defesa do estado de direito, da democracia e da luta
pelos direitos humanos.
3 - O HOMEM – Felizes aqueles que convivem
com Hélio Vasconcelos. Por mais que se estude, academicamente, o seu
pensamento, através de seus escritos, a formação de um perfil dele fica a dever
à atmosfera que
ele cria pela palavra oral, pelo gesto, pela conversa jogada fora, pela
cumplicidade conspiratória, pelo alto astral, pelas anedotas, sempre contadas
(e vale a pena ouvi-las várias vezes) pelo humor fino, pela risada solta (tão
solta que as vezes é acompanhada de uma batida de sola do pé no chão). Daí a
importância dos depoimentos acolhidos neste livro — eles desvelam o olhar do
outro, dos amigos, sobre o nosso
herói. Digo mais, por experiência própria: uma cervejada com Hélio
e Omar Pimenta, quando a noite ainda é uma criança, é uma festa — da qual Paris
perde!
De seu humor, Hélio não abre mão nos momentos
mais solenes e também nos mais tensos (aqui poderia contar dezenas de causos se houvessem
espaço e tempo suficientes). Lembro o setembro de 1992, quando o Professor Otto
de Brito Guerra recebeu da OAB o título de Benemérito e Hélio foi o orador. Lá
para as tantas, o discípulo se permiteinvadir a intimidade do mestre para
contar uma história de seu próprio filho, Luiz Guerra. E conta que Luiz
chegando em casa pela alta madrugada, vindo de uma farra homérica, liga o som
em toda altura e desperta Dr. Otto que vem à sala admoestá-lo. E diz; meu filho, se você continuar assim vai
terminar sendo um ébrio contumaz. Ao que Luiz retrucou: com Tomaz
não, com Hélio. E conclui o orador: com esta afirmação caía por terra o
restinho de credibilidade do pobre Hélio perante o Mestre. Dá para imaginar
o riso discreto do Dr. Otto e a risada geral do auditório.
Uma vez já contei em um livro meu (Sem Paisagem – Memórias da Prisão)² uma boutade de Hélio. Conto,
novamente. No final de junho ou início de julho de 1964 houve um grande
movimento de transferência de presos políticos pelos quarteis da Cidade. Assim,
um dia, chega Hélio ao Quartel de Polícia onde me encontrava, vindo ele do R.O.
Abraços, risos, alegria de reencontro. E o importante: ele trazia debaixo do
braço um vade-mecum. Era uma época em que a imprensa metralhava diariamente que
os presos políticos estavam enquadrados na Lei de Segurança Nacional. Aí, eu tomei
o livro de suas mãos e pedi:
- Hélio, é possível eu ser enquadrado em
algum artigo da Lei de Segurança Nacional? Veja.
Aí ele, sem abrir o vade-mecum, estalou uma
risada, respondendo:
- Em todos, mestre, em todos os artigos!
Foi quando eu me dei conta da realidade: o
preso político estava na cadeia por crime de opinião, o que não é uma questão
jurídica. Chocado de início, terminamos rindo juntos.
Quando se fala em Hélio Vasconcelos, o
difícil é parar. Mesmo assim, eu tenho que colocar um ponto final. Direi,
então, como meus netos Bruno e Mateus que, ao falar de alguém que admiram e
gostam, eles dizem: ele é
um cara legal, sinistro e irado. Acho que isso é o reconhecimento
ao carisma de alguém. Isso vai para Hélio que, quando jovem (antes de Hilda,
por favor me entendam), também foi um grande mulherengo. E as mulheres diziam
que ele tinha borogodó.
Sobre isso não posso passar recibo.
Rio de Janeiro, 05 de novembro de 2011.
Moacyr de Góes
1 - Jornal O Globo. Rio. 28-X-2001. In
entrevista de Luiz Fernando de Carvalho, diretor do filme “Lavoura Arcaica”.
2 - GOÉS. Moacyr de. Sem paisagem – Memórias
da Prisão. Edição Europa. Rio, 1989.