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"A escravidão é o crime da raça branca" - Joaquim Nabuco |
Reis: "meus livros são povoados de
escravos que fogem de toda parte para toda parte" (Fotos: Marília Campos
e Companhia das Letras)
A partir dessa terça-feira 27/XII, o Conversa Afiada
começa a exibir, em três capítulos, magnífica e instigante entrevista
com o historiador Durval Muniz Albuquerque sobre "a invenção do Nordeste
(pela Casa Grande)" e o que fazer para dissolvê-lo.
Foi Durval quem sugeriu ao Conversa Afiada
ofertar como presente de Natal a seus amigos navegantes o magnífico
discurso do também historiador João José Reis, autor do clássico
"Rebelião escrava no Brasil - a história do levante dos malês em 1835",
ao receber, em 20 de julho de 2017, o "Prêmio Machado de Assis", da
Academia Brasileira de Letras.
(Não há notícia de que o Ataulpho Merval de Paiva e o monarquista José Murilo de Carvalho o tenham vaiado...)
Ao discurso memorável:
Sou grato aos membros desta
Academia por considerar minha obra merecedora do Prêmio Machado de
Assis. Sendo um historiador da escravidão (embora não apenas)
permitam-me imaginar a concessão do prêmio, quando a Academia cumpre 120
anos, como uma homenagem àqueles dentre os seus fundadores que, entre
outros, militaram contra a escravidão — penso em Rui Barbosa, Joaquim
Nabuco, José do Patrocínio e, muito especialmente, Machado de Assis, que
dá seu nome a este laurel. Neto de escravos, Machado, além de
abolicionista arguto, radical, embora discreto, foi a seu modo
historiador da escravidão, no que acompanho um de seus mais destacados
intérpretes, Sidney Chalhoub, também historiador da escravidão.
Outro historiador, o acadêmico Alberto
da Costa e Silva, aqui presente, avaliou perfeita e concisamente o peso
desse sistema de trabalho e modo de vida para o Brasil: “A escravidão
foi o processo mais importante e profundo de nossa história.” Não podia
ser diferente: durou perto de 400 anos, contra apenas 129 anos de
liberdade; o tráfico transatlântico luso-brasileiro importou quase
metade dos 11 milhões de suas vítimas; e o Brasil foi o último país das
Américas a abolir a escravidão. Ela deixou marcas indeléveis na
sociedade que nasceu de seus fundamentos e ainda nos assombra com
fantasmas de várias espécies – as desigualdades sociais e raciais, o
racismo sistêmico, o racismo episódico, agora mais assanhado pelo
anonimato da internet (já chamado “racismo virtual”), hoje o principal
veiculo de pregação de todos os ódios, inclusive do ódio racial.
O Brasil precisará de esforço hercúleo
para livrar-se desse passado que se recusa a passar. O principal
caminho talvez seja mais informação, mais educação e ações afirmativas,
umas entrelaçadas com as demais. Neste sentido, algumas medidas
reivindicadas pelos movimentos negros foram adotadas nas últimas
décadas. Entre elas, destacaria três: as cotas educacionais, o ensino da
história afro-brasileira e a criação da Universidade da Integração
Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira.
As cotas sociorraciais para ingresso
nas universidades públicas já resultaram em mudança na cor dessas
instituições, corrigindo em muitos casos a quase exclusividade branca
nos cursos de maior prestígio – Medicina, Direito, Engenharia. Apesar de
problemas aqui e ali, as cotas estão dando certo.
A introdução, no ensino fundamental e
médio, de disciplina voltada para a história e a cultura
afro-brasileiras, com ênfase na história da África, prometia uma
equiparação a conteúdos sobre a história da Europa. Lamentavelmente, a
disciplina desapareceu da nova Base Nacional Comum Curricular. E a
África voltou a ser emparedada naquela acepção, denunciada por Cruz e
Souza, de “África grotesca e triste, melancólica, gênese assombrosa de
gemidos, África dos suplícios e das maldições eternas”, enfim, a África
que predomina na grande mídia, refém de uma “história única”, na
expressão certeira da escritora nigeriana Chimamanda Adichie. Torço pelo
retorno da África às escolas.
Uma história de outras vozes está
representada na Universidade da Integração Internacional da Lusofonia
Afro-Brasileira – a UNILAB, implantada a partir de 2011 como um gesto,
ainda que acanhado, de solidariedade com um continente pilhado pelo
tráfico luso-brasileiro de cativos. Essa instituição acolhe em suas
salas de aula quase mil alunos africanos, mediadores qualificados de
suas Áfricas com o Brasil, jovens que recebem pequena bolsa mensal de
530 reais. Pois a comunidade da UNILAB esteve ameaçada recentemente com o
corte desse minúsculo item do orçamento nacional. Urge defender a
UNILAB!
Políticas de inclusão racial, além do
esforço para educar e informar todos os brasileiros sobre a imensa
contribuição dos africanos e seus descendentes para a formação histórica
e cultural do país, são, entre outras, medidas necessárias – não sei se
suficientes – no combate ao legado nefasto da escravidão. Prefiro
acreditar que seja produto da ignorância, e não desfaçatez, gestos de
delinquência simbólica como batizar um restaurante chique de Senzala.
Desejo, desejamos um país onde não seja preciso uma jovem negra
empunhar, numa recente manifestação de rua, cartaz que dizia: “A
casa-grande surta quando a senzala aprende a ler.”
Invocar a escravidão passou à ordem do
dia. Com uma maioria de detentos negros (cerca de 60%) amontoados em
espaço exíguo, nossas prisões são comparadas a senzalas onde não é
servida a boa comida do restaurante Senzala. Comparação talvez injusta,
porque a vida de seus escravos valia mais para o senhor do que parece
valer a vida dos presos para os governos e a sociedade que, conivente,
se cala. Preso não conta como cidadão, ele é preto, ou, se branco, é
também preto de tão pobre – já acusou Caetano Veloso. A precariedade da
cidadania, filha da desigualdade social e racial, tem sido vinculada ao
passado escravista com insistência. Ainda na semana passada, Milton
Hatoum escreveu em sua coluna de O Globo: “Quase
quatro séculos de escravidão, e mais de um século de uma democracia
manca, interrompida por várias ditaduras, só poderiam gerar uma
sociedade extremamente desigual.”
Há, no entanto, outra dimensão
inquietante nessa ordem de questões, que é quando, em vez de alegoria, a
escravidão se insinua como dado de realidade efetiva ou em construção.
Como no passado, o ciclo começa com o
tráfico – de trabalhadoras e trabalhadores sexuais, domésticos,
industriais ou rurais. Imigrantes legais e ilegais são com frequência
resgatados de porões insalubres nas grandes cidades, onde trabalham,
moram e morrem. Na zona rural chovem denúncias de pessoas submetidas a
trabalho (forçado, exaustivo, degradante) análogo à escravidão, matéria
que hoje mobiliza pesquisadores e membros da Justiça do Trabalho numa
discussão que já ganhou foro internacional.
A recentíssima reforma
trabalhista causa temor a quem entende do assunto. Segundo o auditor
fiscal do trabalho Luís Alexandre farias, “as mudanças criam
condições legais e permitem que a legislação banalize aquelas condições
que identificamos como trabalho análogo ao escravo”. E a respeito do
princípio do negociado sobre o legislado, o procurador do MPT Maurício
Ferreira Brito, que encabeça a Coordenadoria Nacional de Erradicação do
Trabalho Escravo, advertiu sobre o perigo da escravidão voluntária: “A
depender do que se negocie”, ele alertou, “você pode legalizar práticas
do trabalho escravo.” Seria uma graça que este procurador
fosse tão ouvido quanto os de Curitiba. Faltou falar da licença agora
dada ao capital para empregar a mulher gestante em ambientes insalubres.
Não me convencem as ressalvas da lei: se isso não é trabalho
degradante, o que mais será?
Sobre a reforma trabalhista, aceitem
um exercício de imaginação pessimista. Não resisto a comparar o
“trabalho intermitente” ali contemplado com o sistema de ganho ou de
aluguel nas cidades escravistas: no primeiro caso, o senhor mandava o
escravo à rua para alugar ele próprio sua força de trabalho; no segundo,
o senhor escolhia um locatário. Circulava o escravo ao ganho ou de
aluguel entre um e outro e mais outro empregador, como cumprirá fazê-lo o
trabalhador intermitente do novo Brasil. Um professor, por exemplo,
poderá, como autônomo intermitente servir em vários estabelecimentos de
ensino, um dia num, no dia seguinte mais um, depois ainda outro.
Nascerá, assim, o professor ao ganho.
Some-se a recente Lei da Terceirização
e alcançamos o quadro quase completo de precarização radical do
trabalho. A terceirização agora vale para atividades fins. Ainda no
setor do ensino, empresas que antes limitavam-se a fornecer empregados
para atuar na segurança ou na limpeza, poderão doravante oferecer
professores a escolas, faculdades e universidades, e fazê-los circular
de acordo com a demanda do mercado. Nascerá, então, o professor de
aluguel.
Por felicidade, já passou meu tempo de
ser professor ao ganho ou de aluguel. O emprego em regime de dedicação
exclusiva na Universidade Federal da Bahia deu-me a oportunidade de ser
um professor pesquisador. À minha universidade e aos órgãos de fomento
de pesquisa, em especial ao CNPQ, eu agradeço ter podido escrever a obra
historiográfica agora premiada. Dela já falou, com generosidade, o
professor José Murilo de Carvalho.
Queria apenas acrescentar que meus
livros, artigos, capítulos em coletâneas etc, foram e continuam a ser
escritos com paixão pelos temas de que tratam, sem o selo de garantia da
objetividade perfeita exigida pelo positivista. Busquei, sim, a
compreensão weberiana. No entanto, não permito que minhas inclinações
ideológicas e minha utopias pautem as interpretações que faço dos
processos, episódios e personagens sobre os quais escrevo. História
panfletária, nem pensar! Me curvo às evidências que brotam dos arquivos,
e elas não cessam de surpreender com um universo muito mais complexo do
que caberia numa explanação fácil e porventura maniqueísta, que divida o
mundo entre o herói e o bandido.
Meus livros são povoados de escravos
que fogem de toda parte para toda parte, criam quilombos nas periferias
da Cidade da Bahia ou nos mangues de Barra do Rio de Contas, se levantam
em nome de Alá e de Ogum, mas nesses escritos também se encontram
escravos que negociam com seus senhores um cativeiro menos opressivo.
Escravos que querem e senhores que permitem a acumulação de bens e a
compra da alforria. A maioria de meus personagens têm nomes,
subjetividade, não são peças passivas da máquina escravista. Bilal
Licutan, Luiz Sanin, Manoel Calafate, João Malomi, Francisco e Francisca
Cidade, Zeferina, homens e mulheres à frente das revoltas escravas
baianas. O alufá Rufino José Maria, liberto malê que virou cozinheiro de
navio negreiro e pequeno traficante transatlântico de gente. Domingos
Sodré, adivinho e curandeiro nagô que fornecia beberagens a escravos
para amansar seus senhores, mas era ele próprio senhor de escravos.
Manoel Joaquim Ricardo, dono de dezenas de escravos, liberto haussá que
prosperou a ponto de ser contado entre os homens que formavam os 10%
mais ricos de Salvador. E alguns outros mais…
Contudo, termino com um aviso aos
navegantes: a ascensão social aconteceu para poucos escravos
desembarcados ou nascidos no Brasil. A maioria morreu escravizada. No
balanço final, fico com Joaquim Nabuco, que escreveu:
Não importa que tantos dos seus
filhos espúrios tenham exercido sobre irmãos o mesmo jugo, e se tenham
associado como cúmplices aos destinos da instituição homicida, a
escravidão na América é sempre o crime da raça branca, elemento
predominante da civilização nacional…
Fonte: CONVERSA AFIADA