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quinta-feira, 6 de agosto de 2020

Ressentimento é a palavra-chave para compreender o mundo atual e a extrema-direita, diz Maria Rita Kehl, em seu novo livro

Psicanalista Maria Rita Kehl.

Psicanalista Maria Rita Kehl. (Foto: Editora Boitempo / Divulgação)

"Maria Rita Kehl traça um vasto panorama que pode nos ajudar a compreender nossa posição diante de conflitos religiosos ou políticos, desde a ascensão do nazismo até a da extrema direita atual", aponta a psicanalista Maria Homem, na resenha da obra.

Por Maria Homem, no blog da Boitempo – Ressentimento é palavra-chave para ousar compreender o mundo hoje. Para escutar as camadas subterrâneas do contínuo (res)sentir de uma mágoa e um lamento que parecem infinitos e exigem desforra e vingança. Como se a culpa do que não somos ou não pudemos ser fosse sempre de um outro, esse bode expiatório que escolhemos quando não podemos nos haver com nossos próprios limites. E assim engendramos sociedades que se acreditam polarizadas e cujas eleições podem ser decididas a partir do ódio e do anseio por erradicar aqueles que são “fonte de todo o mal”. Como viver em um mundo em que os outros são um bando de bandidos e de ignorantes, diante dos quais não temos alternativa lógica sem ser o desejo de eliminação? O livro Ressentimento é urgente pois nos ajuda a desvendar esses mecanismos.

Maria Rita Kehl traça um vasto panorama que pode nos ajudar a compreender nossa posição diante de conflitos religiosos ou políticos, desde a ascensão do nazismo até a da extrema direita atual, do hemisfério Norte ao Brasil de Bolsonaro. A autora trabalha com uma ampla rede de autores para mapear o campo complexo do ressentimento, este afeto que Espinosa chamou de “paixão triste”. Retoma as fundadoras análises de Friedrich Nietzsche, Max Scheler e Sigmund Freud, passando por olhares mais contemporâneos como os de Hannah Arendt, Giorgio Agamben e Slavoj Žižek, que buscam o insondável de nossas vãs repetições. Ganhamos ainda, nesta reedição do livro de 2004, uma importante abordagem no novo (e atualíssimo) posfácio.

Não nos esqueçamos. O ressentimento não se confunde com a revolta ou com a luta por justiça e reconhecimento. Ressentimento não é ação que busca transformar. Ele é o canto queixoso do sujeito da modernidade e de todo aquele que projeta para fora de si, em determinado momento histórico, a fonte de seus males, como um mecanismo de defesa e escudo de proteção para preservar seu narcisismo. Como teremos a sabedoria de escapar do que Freud chamava de “covardia moral”? Quem sabe tenhamos a coragem e as ferramentas para atravessar um dos maiores desafios atuais que é justamente poder se colocar além do ressentimento. Talvez possamos um dia (trans)sentir e assim criar um novo modo de estar com o outro.

Com edição de Carolina Mercês, Ressentimento, de Maria Rita Kehl, conta com capa e diagramação de Antonio Kehl, e vem acrescido de um novo texto de posfácio da autora. Trata-se do quinto livro da psicanalista pela Boitempo: depois do premiado O tempo e o cão: a atualidade das depressões, publicamos também 18 crônicas e mais algumas, Deslocamentos do feminino: a mulher freudiana na passagem para a modernidade e, pela coleção Estado de Sítio, Videologias: ensaios sobre televisão, escrito em conjunto com Eugênio Bucci.

Maria Homem é psicanalista, pesquisadora do Núcleo Diversitas FFLCH/USP e professora nas áreas de Psicanálise, Cinema, Literatura e Comunicação da FAAP. Tem pós-graduação em Psicanálise e Estética pela Universidade de Paris VIII/Collège International de Philosophie e doutorado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Pela Boitempo, publicou No limiar do silêncio e da letra: traços da autoria em Clarice Lispector (2012).

Fonte: Brasil 247

A morte de um bravo. Por Ulisses Capozzoli

Imagem: Renato Soares, meu parceiro no Xingu no centenário da reserva.

Publicado originalmente no perfil do autor

Por Ulisses Capozzoli

Aritana Yawalapiti, filho de Kanato, desde a manhã de hoje (5/8) não respira mais sobre a Terra, onde esteve ao longo dos últimos 71 anos. Líder mais respeitado do Alto Xingu, dividindo prestígio com o primo, Kotok, líder dos kamaiurá, morreu vítima da epidemia de Covid-19 depois de uma longa e difícil batalha em que saiu derrotado. Aritana era uma espécie de esteio cultural de seu povo e, por extensão de todo o Alto Xingu, ainda que sua atuação se estendesse por todo o parque, com seus 26.420 km², o dobro da Irlanda do Norte, mais de duas vezes e meia o Líbano e o triplo de Porto Rico.

A morte de Aritana, com sua liderança natural, firme e pacífica, identificada por Claudio Villas-Bôas (um dos célebres irmãos Villas-Bôas os criadores da reserva do Xingu para a proteção e sobrevivência de 16 etnias do Brasil Central) pode ser debitada à estúpida e criminosa recusa do governo em oferecer às populações indígenas, os primeiros donos do que agora é o território brasileiro, um mínimo de garantia fitossanitária contra a contaminação que varre o planeta como um demônio enlouquecido. As duas últimas semanas de vida Aritana passou confinado em uma unidade de terapia intensiva (UTI) num hospital de Goiânia. Até chegar lá, no entanto, despendeu a energia que teria feito a diferença, caso tivesse tido atendimento pronto, negado sob a forma de veto pelo presidente da república a um plano de atendimento às populações indígenas contra as ameaças da pandemia.

Há três semanas ele estava em sua aldeia, junto ao rio Kurisevo, um do formadores do Xingu, quando teve um forte crise respiratória, diagnosticada em seguida como Covid-19. Inicialmente ficou em Canarana, um dos portões de entrada da reserva indígena pelo Sul, mas sua saúde piorou sem que os médicos do parque tenham podido contar com socorro aéreo. Chegou a Goiania ao final de uma viagem de dez horas a partir de Canarana, no interior de uma ambulância, respirando com ajuda precária de um cilindro de oxigênio. Quando deixou o Xingu, segundo o depoimento de uma sobrinha, Ana Paula Xavante, mais de 50% de seu pulmão já estava comprometido.

A morte de Aritana, uma das memórias de seu povo, é mais uma nódoa na imagem internacional do Brasil, ao menos em relação às populações sensíveis à proteção que culturas mais ameaçadas devem merecer antes que se transformem em imagem apagada do passado. Aritana falava, além da língua de seu povo, do tronco Aruak, outras quatro, como a dos seus parentes próximos, os Kamaiurá, do tronco Tupi-Guarani. Desde a infância, foi preparado pelo pai, Kanato Tepori, para o resgate de sua gente e essa é mais que figura de linguagem. Quando os Villas-Bôas chegaram ao Xingu, comandando a Expedição Roncador-Xingu (para desbravar o Brasil Central como uma das consequências geopolíticas da Segunda Guerra Mundial) os Yawalapiti estavam reduzidos a sete sobreviventes. Orlando Villas-Bôas, e isso ouvi muitas vezes da boca dele mesmo, estimulou casamentos com os kamaiurá e assim os Yawalapiti renasceram. Aritana passou cinco anos recluso em casa, recebendo ensinamentos do pai, tios e avós numa preparação para a tarefa que tinha pela frente. Sua gente havia minguado a partir dos anos 30 e só a miscigenação, que também incluiu os Kuikuro, do tronco Karib, permitiu essa dramática recuperação. Ouvi isso mais de uma vez de Aritana, em especial em um depoimento que me concedeu em 2011 para uma edição especial de “Scientific American Brasil” comemorativa dos 50 anos da reserva.

O Brasil é cada vez mais associado à destruição, incêndio e morte no interior da maior floresta tropical da Terra, a Amazônia, majoritariamente concentrada aqui, e a morte de Aritana divulgada por agências internacionais de notícia já aparecem nas páginas dos jornais e mídia social de todo o mundo. Há um fascínio e um profundo temor pelo que acontece por aqui e também isso não é mero acaso. O Brasil ainda tem sertanistas, gente especializada no contato com povos isolados, no sentido de estarem separados da sociedade exterior, que parte da mídia chama de “civilização”. Como se as culturas originais, que permitiram a sobrevivência de nações inteiras no interior da floresta, e ainda hoje assegurem isso a pequenos grupos, não tivesse consistência e valor legitimados. Certamente é o caso de acrescentar que os “povos isolados” são gente que não teve qualquer contato com a sociedade exterior desde que Cabral desembarcou por aqui. Ao contrário. Eles tiveram e, traumatizados pelo que viram e sofreram, decidiram recuar e procurar abrigo na floresta profunda que agora é vítima do desmatamento, do fogo e de hordas de garimpeiros, também eles resultado de uma social desigual e marginalizadora.

Aritana, por formação cultural e característica pessoal, era um líder conservador, no sentido literal da expressão. Na longa conversa de 2011, comprimida em duas páginas da edição especial de “Scientific American Brasil”, ele falou do temor pelo turismo desenfreado, invasão de pescadores, represas de menor e grande porte, como Belo Monte, além do encantamento de jovens indígenas por motocicletas, pela vida na cidade que ele acreditava ameaçada por alcoolismo e drogas em geral e também da dificuldade de seduzi-los para uma função estratégica da cultural indígena, a pajelança. Apenas essa última referência espaço ilimitado de reflexão e interpretação do que os “brancos” chamam de “realidade”. Aritana não disse, mas deixou claro, a diferença entre uma sociedade mágica, espiritualizada e ritualística e uma sociedade, digamos, cartesiana, mas esvaziada até mesmo dessa possibilidade, pelo consumismo, alienação e competição que um índios é incapaz de imaginar como estilo de vida.

A morte de Aritana, em uma idade em que poderia fazer muito por seu povo e por todo o Brasil, ainda que muitos sejam incapazes de perceber essa possibilidade, é tanto um lamento quanto um alerta. Mais um. Cada dia mais evidente e dramático em uma sociedade submetida a um brutal processo de aniquilação. Quem tiver interesse em conhecer os cenários possíveis por aqui, talvez possa encontrar resposta em um clássico: o livro “Enterrem meu coração na curva do rio”, de Dorris Alexander Brown, Dee Brown, escritor e historiador sobre a sanguinária aniquilação de populações indígenas nos Estados Unidos, mostradas em faroestes vivenciados por atores reacionários como John Wayne. Ah! Sim. Essa é a fonte da expressão “brancos” para se referir a não indígenas. Injustificada para um pais com perfil como o do Brasil. Aritana, o corajoso e sábio conciliar, no sentido mais nobre dessa expressão, fará falta imensa. E ela já começa a se fazer sentir.

Fonte: DCM - Diário do Centro do Mundo