Data é dia de reflexão sobre uma falsa
abolição que relegou à população negra a perpetuação do racismo estrutural na
sociedade até os dias de hoje.
A data oficial da abolição da escravidão no
Brasil, o 13 de Maio, é uma data que, para a população negra, não é um dia de
comemoração. Ao contrário, é uma data de reflexão sobre uma medida tomada, à
época, levando em consideração interesses capitalistas e que, na prática, não
trouxe liberdade aos negros e negras e sim, perpetuou o racismo estrutural
existente na sociedade.
Lideranças dos movimentos sindical e
negro, explicam que ao assinar a Lei Áurea, em 1888, a Princesa Izabel não
editou nenhuma medida para garantir uma sobrevivência digna para os negros e
negras sequestrados no continente africano, escravizados durante anos.
“Eles foram ‘libertados’, mas jogados
nas ruas com somente a roupa do corpo e nada mais. Isso contribuiu com a
perpetuação do racismo”, diz a secretaria de Combate ao Racismo da CUT,
Anatalina Lourenço.
Para o secretário de Combate ao
Racismo da Confederação Nacional dos Trabalhadores do Ramo Financeiro
(Contraf-CUT), Almir Aguiar, “o 13 de Maio não é uma data a ser comemorada, foi
um fato histórico que omitiu a luta do povo negro contra a escravidão, e até os
dias atuais a historiografia tem omitido o nosso legado”.
Almir lembrou que a Lei Áurea tinha
somente dois artigos, sem qualquer proposta de política pública. “Isso fez com
que o preconceito, o racismo, o feminicídio, o genocídio do povo negro e a
falta de inclusão no mercado de trabalho mais qualificado se tornassem uma
realidade cruel até os dias de hoje. Mas a nossa luta por uma sociedade
inclusiva e sem racismo é permanente”, completou.
Contexto histórico da Lei Áurea – a
ascensão do capitalismo
A abolição libertou escravizados, mas
não trouxe nenhuma reparação pelos quase 300 anos anteriores de escravidão. À
época já havia um movimento de libertação pelos próprios escravos, com as lutas
dos quilombos pela liberdade e, em especial, pelas mulheres escravizadas que,
pelo trabalho forçado, compravam a liberdade de seus filhos e companheiros.
Anatalina Lourenço, em entrevista ao
Portal CUT em 2022, explicou que o capitalismo estava em ascensão no mesmo
período e esse foi um fator preponderante para a Lei Áurea. À época, chegavam
os primeiros imigrantes italianos, portugueses e espanhóis, uma mão-de-obra
branca que agradava à elite e favorecia o capitalismo.
Este fato, por si só, explica o
branqueamento do mercado de trabalho, que perdura até os dias atuais. Os dados
do IBGE mostram que entre os 9,5 milhões de desempregados no Brasil, no 3°
trimestre de 2022, 65% eram prestos ou pardos.
Quando a Lei Áurea foi assinada,
havia ainda uma cobrança da sociedade e de abolicionistas e até mesmo da
polícia que se rebelou tomando a atitude de não mais ‘caçar’ os escravos
fugitivos. Por isso, e em acordo com os latifundiários que exigiam que a
propriedade das terras não sofresse qualquer consequência, a Lei foi assinada e
os negros foram libertos.
Mas, no dia seguinte, diz Anatalina,
o sentimento daquela população foi de ‘o que nós vamos fazer agora?’.
Eles não tinham emprego, não tinham
comida, não tinham casa para morar, estavam jogados à própria sorte e nenhuma
ação do governo protegeu essas pessoas- Anatalina Lourenço
Os homens ficaram à margem da sociedade e tiveram de recorrer a furtos para
poderem comer, já que eram hostilizados pela sociedade branca. Daí vem o termo
“marginal”, estigmatizado até os dias de hoje e, geralmente usado para se
referir a negros.
Já as mulheres continuaram a ‘prestar
serviços domésticos para suas senhoras’, porém com uma singela remuneração.
Como o racismo perdurou ao longo dos tempos, a profissão, hoje conhecida como
‘empregada doméstica’, é ocupada, na grande maioria, por mulheres negras.
Herança da escravidão no mercado de
trabalho
A dirigente da CUT reforça que o
chamado fim da escravidão foi uma abolição inacabada. “Os
escravizados não tiveram direito a nada e, portanto, tiveram de viver à margem
da sociedade. Eles foram marginalizados a tal ponto que hoje, 72% da população
negra é pobre”, ela afirma.
Dados sobre do mercado de trabalho e
indicadores sociais confirmam a realidade da população negra hoje no Brasil. Em
2022, quando a pandemia já dava sinais de enfraquecimento, segundo os
indicadores da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC),
realizada pelo IBGE, entre os segundos trimestres de 2019 e 2022, houve
elevação da informalidade, da subocupação e queda dos rendimentos e os efeitos
sentidos mais intensamente pelo homem e pela mulher negra.
·
Entre as mulheres negras, 53,3% estavam ocupadas ou desempregadas em
2019. O número caiu para 52,3% em 2022.
·
Entre os homens negros, as taxas ficaram semelhantes nos dois períodos
–72,9%, no segundo trimestre de 2019, e 72,6%, em 2022.
“São os que estão nos trabalhados com
menor remuneração, maior vulnerabilidade, piores condições – os trabalhos mais
precarizados”, diz Anatalina, ressaltando que tal realidade é resultado de uma
mentalidade escravocrata que ainda permanece no inconsciente coletivo da
sociedade.
Outra prova dessa herança da
escravidão são os casos de condições degradantes, extremas, a que trabalhadores
são submetidos ainda hoje. “O trabalho análogo ainda acontece e não causa
grandes comoções”, observa a dirigente.
Reportagem feita pelo Brasil de Fato mostra que de um
total de cerca de 500 trabalhadores resgatados por auditores fiscais do
trabalho em condições análogas à escravidão, nas lavouras de cana-de-açúcar em
2022, 84% eram negros.
Mas os números são ainda mais
alarmantes. No total do país, segundo informações do Ministério do Trabalho e
Emprego, em todos os setores, no ano passado foram resgatadas 2.575 pessoas
nessas condições, sendo 83% negros e negras.
Saiba o que é racismo estrutural e como ele se organiza no Brasil
Racismo
Não somente os números e dados acerca
de questões sociais e no mercado de trabalho, mas também o preconceito tem sido
escancarado no cotidiano. Entre outros, dois casos emblemáticos ganharam a
atenção da mídia nos últimos dias e geraram reação na sociedade.
Os mais recentes envolvem o deputado
estadual pelo PT do Paraná, Renato Freitas que, mais uma vez foi alvo de
racismo. Desta vez, ele foi abordado pela Polícia Federal (PF), dentro de um
avião pouco antes da decolagem no aeroporto de Foz do Iguaçu (PR), cidade em
que ele foi a convite do Ministério dos Povos Indígenas, com destino a
Londrina. Os policiais entraram na aeronave e o retiraram da cabine para que
ele fosse revistado, mesmo já tendo passado pela inspeção na máquina de Raio X.
Leia Mais: Deputado estadual Renato Freitas (PT) é retirado de avião para
ser revistado pela PF
Ainda no início de maio, a professora
Samantha Vitena foi expulsa de um voo por se recusar a despachar sua mochila,
onde guardava seu notebook, fato que provavelmente não aconteceria se a
professora não fosse negra.
O advogado de defesa Fernando Santos
ingressará com uma ação judicial em discriminação racial contra a Gol Linhas
Aéreas. A Polícia Federal também investiga o caso.
Por todo este contexto, tanto
Anatalina Lourenço quanto Almir Aguiar pontuam que não há nada para comemorar
neste dia.
“É um dia de aprofundar o debate
demonstrar para as pessoas que o racismo estrutura de forma negativa a
sociedade e uma data que não marca a luta da população negra, mas uma data de
denúncia de que estamos em situação precária e precisamos mudar”, dizem
os dirigentes.
Fonte: CUT NACIONAL