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segunda-feira, 5 de março de 2018

Atriz Tônia Carrero morre aos 95 anos

No mesmo solo narrou, para delícia do público, a paixão do escritor de Rubem Braga por ela, ‘resolvida’ num namoro meteórico. E contou ainda que mesmo Drummond, o mineiro reservadíssimo, não resistiu ao galenteio ao conhecê-la na ‘casa do Aníbal’. Mas nem tudo era festa. Tônia tinha ambições. Formada em Educação Física, queria ser atriz, mas ninguém levava tal projeto a sério. Em uma época de raras escolas de teatro, deixou o filho pequeno com a babá e partiu para a França, onde fez um curso livre de iniciação teatral com Jean Louis Barrault.
De volta ao Brasil, fez testes, tentou atuar, mas ninguém lhe deu um papel. Só no cinema conseguiu atuar, no filme Querida Suzana, com direção de Alberto Pieralisi. Em 1949 volta a filmar, sob direção de Fernando de Barros, em Caminhos do Sul. Com ele, funda sua própria companhia teatral em 1949 e tenta convencer o ator amador e advogado Paulo Autran a entrar para o grupo. Mas ele não pretendia se profissionalizar, ganhava muito bem como advogado, estava satisfeito, o teatro era secundário em sua vida. Numa última cartada, ela pediu-lhe que estipulasse seu salário. Para se ver livre do assédio, Autran pediu um valor absurdamente alto, e ela pagou. Mais tarde, já consagrado, ele repetiria muitas vezes essa história, ao recordar sua longa carreira.
Assim, ambos, Tônia e Autran, que se tornariam ‘amigos para sempre’ estrearam juntos, profissionalmente, na peça Um Deus Dormiu Lá em Casa, de Guilherme Figueiredo, sob direção de Silveira Sampaio. Ambos receberam prêmios de revelação e a trupe ganhou fôlego. No ano seguinte, Ziembinski foi convidado para dirigir o espetáculo Amanhã se Não Chover, de Henrique Pongetti. E no outro ainda, o trio – Tônia, Barros e Autran – se transfere para São Paulo para atuar na Cia. Cinematográfica Vera Cruz e no Teatro Brasileiro de Comédia, ambos empreendimentos do italiano Franco Zampari.
(Foto: Reprodução)
Na Vera Cruz atuou em filmes importantes na época como Tico Tico no Fubá, sob direção de Adolfo Celi e Apassionata, de Fernando de Barros, ambos de 1952. O cinema não foi sua principal forma de arte, mas ainda assim até 1977 já tinha participado de 13 filmes. No TBC atuou sob a direção de Adolfo Celi – Uma Certa Cabana e Uma Mulher de Outro Mundo, e novamente sob a batuta de Ziembinski, em Candida, peça de Bernard Shaw, no papel título. Casou-se com Celi e um novo trio se forma para a fundação da Cia. Tônia-Celi-Autran. O repertório eclético, iniciado com o clássico Otelo, passando por Entre Quatro Paredes de Sartre e Seis Personagens à Procura de um Autor, de Pirandello, permitem a atriz um aprimoramento reconhecido pela crítica.
Tal amadurecimento não passou despercebido pela crítica da época. “Ela foi afiando pacientemente o seu instrumental interpretativo, revelando progressivamente uma sensibilidade, uma intuição e uma gama de recursos que lhe permitem abordar papéis frontalmente opostos à sua imagem padronizada”, escreveu o crítico Yan Michalski. Desfeita a companhia, cria sua própria empresa e segue atuando. Em 1968 surpreende ao despojar-se de sua beleza e elegância para encarnar a prostituta Neusa Suely numa montagem de Navalha na Carne, de Plínio Marcos, dirigida por Fauzi Arap, a quem ela reputava como um de seus mestres na fase da maturidade. Atuação que lhe vale os principais prêmios do ano, entre eles o prestigiado, e cobiçado, Molière.
Além dos já citados, ao longo da carreira de seus 60 anos de carreira, levou ao palco autores como Tennessee Williams (Doce Pássaro da Juventude), George Feydeau (A Dama do Maxim’s), Shakespeare (Macbeth), Ibsen (Casa de Bonecas), Marguerite Duras (A Amante Inglesa) e Dürrenmatt (A Visita da Velha Senhora). E atuou sob a direção de Flávio Rangel, Gianni Ratto, Domingos de Oliveira e Antunes Filho.
Tônia Carrero em foto de 1955
(Foto: Cedoc/Funarte)
Em meados da década de 80 inicia uma fase de experiências mais ousadas com ao interpretar Quartett sob direção de Gerald Thomas, trabalho que lhe vale o segundo Prêmio Molière. Três anos depois, arrisca-se numa nova linguagem, em atuação coreografada, sob direção de Marcio Aurelio no espetáculo Esta Valsa É Minha, de William Luce. Outros jovens diretores entrariam em sua vida a partir daí. Em 1999, Eduardo Wotzik, na encenação de Um Equilíbrio Tão Delicado, de Edward Albee e, no ano seguinte, Élcio Nogueira, em O Jardim das Cerejeiras, de Chekhov, montagem na qual contracena com Renato Borghi.
Em 2005 volta a ser dirigida por Fauzi Arap, também autor, na peça Chega de História!. na qual, curiosamente, retoma não só a parceria bem-sucedida em Navalha na Carne, mas também uma atitude. Como fizera para viver Neusa Suely, mais uma vez se despoja de sua natural vaidade para encarnar a professoria Dona Filó, vestida de forma muito simples. “Ela não tem nada a ver comigo e isso foi o que me motivou”, disse em entrevista ao Estado.
A carreira no cinema foi menos intensa, mas só em 1988 participaria de três filmes: A Bela Palomera, de Ruy Guerra; Fogo e Paixão, de Isay Weinfeld e Marcio Kogan e Sonhos de Menina Moça, de Tereza Trautman. O papel de Dona Alice, em Chega de Saudade, de Laís Bodansky foi o mais recente nas telas do cinema. Já na telinha participou de 15 novelas, desde sucessos como Pigmaleão 70, Uma Rosa com Amor, Água Viva, Sassaricando e Senhora do Destino. Título, aliás, que bem poderia defini-la.
Depois de 60 anos de trajetória em palcos e telas, do cinema e da TV, Tônia Carrero tinha motivos para se orgulhar da atitude corajosa e da persistência de Mariinha. Só lamentava, em entrevistas, o inevitável envelhecimento. Saudade, só da beleza estonteante da juventude. Nada mais compreensível.

Mano Brown: Um sobrevivente do inferno


Por Guilherme Henrique, Henrique Santana e Nadine Nascimento*
“Quantas vezes eu pensei em me jogar daqui…”, diz a voz grave que ecoa de um som altíssimo, vinda de um Passat Variant que sobe a Rua Adoasto de Godói, no Capão Redondo, bairro da zona sul de São Paulo. O carro arranca, e a poeira que se descola do asfalto embaça a visão do cenário digno de uma das letras do Racionais MC’s. O clima, no entanto, já não é de campo minado, como disse Pedro Paulo Soares Pereira em sua “Fórmula mágica da paz”, lançada em meados de 1997, no disco Sobrevivendo no inferno.
O destino final da caminhada encontra um sobrado com portão preto e grafites na parede. Ao entrarmos, Mano Brown aparece vestido com camisa azul, calça jeans da mesma cor e tênis branco, além dos óculos escuros. O cabelo está impecavelmente alinhado. “Entra aí, que eu vou buscar uma água. Está quente demais”, comenta. Na sala contígua, o ventilador de teto faz o trabalho solitário de apaziguar o calor, enquanto a TV e o videogame esperam os próximos jogadores.
“Vai escolher quem? São Paulo? Ah, não…”, brinca Mano Brown com o amigo, enquanto altera os jogadores do seu time, o Santos. De fundo, uma música permeia o ambiente. Nada de rap. Algo com mais balanço, swing. “Quero estar de novo com você/num encontro que não seja tão igual”, afirma a canção do grupo Senzala. O jogo termina com a vitória do Santos por 2 a 1, e a imagem do sujeito mal-humorado e arredio, difundida desde sempre, desaparece.
“Daqui eu vejo tudo, até quando a polícia está passando”, revela Brown. A laje do sobrado é cimento puro, sem charme, com uma caixa-d’água e vista privilegiada do Capão Redondo. “Isso aqui era uma fazenda, um sítio gigante. Lama, vaca, boi, um hospital para todo mundo”, contaria depois, durante a conversa com o Le Monde Diplomatique Brasil.
Aos 47 anos, Mano Brown viu o bairro e a cidade onde vive mudarem. Mais que isso: observou a evolução da juventude negra periférica. “A gente tinha vergonha do nosso cabelo, dos costumes ligados ao passado. Hoje eu vejo o negro ligado mais ao futuro do que ao passado. Na verdade, eu vejo o negro ligado ao presente, ao agora”, analisa.
Durante uma tarde, o líder do Racionais comentou o aniversário de vinte anos do disco Sobrevivendo no inferno, as críticas com o lançamento de Boogie naipe, seu trabalho solo, relembrou o panorama social brasileiro das décadas de 1980 e 1990 e expressou olhar crítico ao comentar o futuro político do país. “Está todo mundo ambicioso, tanto a esquerda quanto a direita.
Eles ficam em uma guerra psicológica. Ninguém acredita mais em ninguém. O povão quer segurança. Daqui a pouco você vai ver o que o povão vai querer. Vão pedir o Exército e já era.”
Leia ao som da trilha desta entrevista
 

LE MONDE DIPLOMATIQUE BRASIL – Brown, em “Fórmula mágica da paz”, você diz que era um vencedor por chegar aos 27 anos. Qual foi a estratégia para seguir sendo um vencedor vinte anos depois?
MANO BROWN – Recorrer à arte. Foi política e arte, ou a arte da política. Você pode usar os dois juntos ou um de cada vez. Teve época que usei mais a política: precisava falar e eu falava. Depois veio um tempo em que todo mundo estava falando e surtindo pouco efeito, então eu apelei para a arte. Fui para outro contexto, dentro do próprio Racionais, com outras ideias. A ideia é maior que nós todos. Ela é tão grande que cabem outras ideias dentro dela. Estava cego. Como uma coisa desse tamanho pode ter uma ideia só? Achei outras vertentes e formas de falar. Atingir outros espaços do cérebro que não foram trabalhados antes.

Isso tem a ver com o jeito de fazer música apresentado em Boogie naipe?
Falo de antes até, como no Nada como um dia [Nada como um dia após outro dia, lançado em 2002]. Ali nós demos outra cor, vimos o Racionais de outro ângulo. [Neste momento, um garoto apelidado Costela chega à laje da casa de Brown.]

Você falou do Nada como um dia. Na música “Da ponte pra cá” há a citação “errare humanum est” [do latim, errar é humano]. Vem da canção de Jorge Ben, lançada no Tábua de esmeralda, de 1974?
Exatamente. Essa música é muito louca, com várias camadas. Um som diferenciado, com os violões, as guitarras, os baixos. Ele fez uma letra que poderia ser considerada desinteressante se tornar interessante e agradável. A ideia tinha que ser passada de uma maneira agradável. A verdade já dói, então a música tinha que ser agradável.

Os primeiros discos do Racionais eram bem fortes e incisivos. Vocês foram mudando com o tempo?
Tinha o lance da idade, de que ninguém nunca falou. Hoje, depois de tantos anos, eu penso: “O que um moleque de 20 anos poderia fazer de tão mal contra o sistema, fora aquele rap?”. Era a arte do blefe. Eu pesava 70 quilos, não tinha dinheiro para pegar ônibus e já ameaçava o sistema. E o sistema acreditou. O que mais eu poderia ter feito? Pegar uma arma, virar assaltante e morrer rápido? A leveza da música, o que nós tínhamos dessa leveza, era a idade, que ninguém notava. Hoje em dia eu posso fazer muito mais, até falando de amor. Eu sou muito mais perigoso, mais bélico, mais vivido…

Mais estrategista?
Estrategista sempre, desde aquela época.

Mas era uma estratégia diferente, não?
A estratégia era sobreviver. Um machado na mão, uma faca na outra e cobras e lagartos pela frente. Não é como hoje, na era da informação rápida, da internet. Era outra realidade. A mortalidade aqui na zona sul, no Capão Redondo, batia recordes mundiais. A gente cresceu nos anos 1980, na época mais violenta do bairro mais violento. Todo mundo era magro, franzino e perigoso. Desnutrido e perigoso [risos].

Durante um evento de comemoração pelos trinta anos do Racionais, você questionou sobre o que tem surtido mais efeito: conscientizar ou sensibilizar. Ainda hoje muitas pessoas, inclusive crianças, escutam as músicas do Racionais dos anos 1990.
A gente precisa partir da ideia de que não estamos sozinhos no mundo. Existem outras influências muito fortes sobre as pessoas. Isso é obvio, ainda que não seja dito claramente. Ele [Mano Brown aponta para Costela] ouve Racionais, mas também escuta muito funk. São outras ideias assediando o garoto. O Racionais está no meio disso tudo, com um discurso que poderia ser interpretado como uma espécie de manipulação sobre eles, e isso não é saudável. A essa altura as mentes já precisam estar formadas. O convívio e a prática é que vão lapidá-lo. Se ele não tiver com quem conviver, não terá como mostrar a inteligência, o talento. Pode ser um músico no meio de gente que nem sabe como funciona. Muitos talentos são desperdiçados.

Como você vivia a música na idade do Costela?
Com quantos anos você está, Costela? [“12”, responde o menino.] Nessa idade eu morava no Jardim Evana [Campo Limpo, zona sul de São Paulo] e estava na rua, jogando bola, curtindo música. É a idade que o moleque desperta para a vida. Nos anos 1980, tudo era muito pouco, então só tínhamos a nós mesmos, nossa ambição e os sonhos, de ir para Nova York e tal… O sonho americano morando na fazenda, que isso aqui [olha ao redor] era uma fazenda, um sítio gigante. Lama, vaca, boi, um hospital para todo mundo. Uma época sem disciplina nenhuma, muita gente boa ficou pelo caminho. Um genocídio. No começo dos anos 1980, ser preto era muito perigoso. Você podia morrer sem saber o porquê, tamanho o preconceito e o medo que eles tinham. Não havia conscientização de nada, a não ser pela sobrevivência. “Politicamente correto” era uma expressão que não tinha nem embrião. Tudo que era incorreto valia. Não tinha lei pra resguardar direitos humanos, nada. O barato era selvagem, sem regras básicas de convivência. Era a lei do mais forte. Desde que eu comecei no rap, vi São Paulo e o Capão mudarem. Eu vi o metrô chegar aqui, as roupas, a visão dos moleques sobre si mesmos.

O que mudou nessa autoanálise deles?
Eles se veem muito melhor do que a gente se enxergava. Eles têm autoestima. Tem música e arte envolvidas nesse processo, muitos artistas falando. Houve o governo Lula, que ajudou a fortalecer uma coisa que já estava acontecendo desde 1999. Essa mudança de perfil ajudou a eleger o Lula, em 2002. Se não tivesse essa transformação, ele não teria sido eleito. Nossa família, por exemplo, era toda malufista. Quem fez eles mudarem de ideia fui eu e o Blue [a mãe de Mano Brown e a de Ice Blue tinham grande amizade. Os dois cresceram juntos e se consideram primos]. Essa conscientização, espécie de evolução intelectual e comportamental, de raça mesmo, de beleza negra, aconteceu em muitos lugares. Em 1994, todo mundo sonhava ser o Tupac [Tupac Shakur, rapper norte-americano assassinado em 1996, aos 25 anos]. Eu já era queria ser o RUN DMC [grupo de rap dos Estados Unidos] antes de 1994. Teve essa influência muito forte do negro norte-americano aqui também, com a coisa da estética, beleza, corpo…O que é que vende no mundo? Beleza, mano! Um povo que se sentia feio não ia vender nada mesmo. Esse lance de se sentir feio é foda, e era isso que eles faziam com a gente. Nós tínhamos vergonha do nosso cabelo, dos costumes ligados ao passado. Hoje eu vejo o negro ligado mais ao futuro do que ao passado. Na verdade, vejo o negro ligado ao presente, ao agora.

No álbum Cores e valores (2014), há uma frase emblemática na música “Quanto vale o show” que diz: “O preto vê mil chances de morrer”. Essas chances diminuíram ou aumentaram?
Continuam altíssimas. Nós estamos em outra etapa da vida, de visão de classes sociais. O governo Lula colocou o povo em uma situação de exposição dos valores e dos nossos costumes. Como somos maioria, a coisa tomou uma proporção muito grande no Brasil. Você pode ver pelo crescimento do funk, do sertanejo: esses estilos populares tomaram o mercado. Então muita coisa trouxe essa radicalização contra o preto. Eu me lembro de muita gente reclamando dos moleques ouvindo funk de manhã no trem. “Ah, tem seis celulares ligados ao mesmo tempo, não aguento mais, país do caralho.” Malandro, graças a Deus que eles têm celular. Todo mundo com seu aparelho se comunicando, chegando rápido ao trabalho, com oportunidade… Entendeu a ideia? O Tim Maia falava isso: no Brasil, pobre é de direita. O governo Lula deu uma condição de o povo ter algumas coisas, e depois desse governo o povo quer polícia para defender essas coisas. Ele se torna um cara de direita, que defende os valores que foderam ele. Isso refletiu contra o preto. Você vai ao Norte, Nordeste: Fortaleza, campeã de homicídio no país. Maceió, Salvador, Recife… Morre preto pra caralho. Se na época do Lula já era difícil, imagina agora? Aí os moleques viram facção mesmo. Você pega um cara que foi abandonado por todo mundo e acolhe, dá uma assistência, um nome, uma família…

Status?
Status, não. Isso é um slogan. O cara dá família, proteção, honra e motivo para viver. Isso é status? Status é uma palavra chula perto disso tudo. Parece um nome que o branco inventou para ferrar com o preto. Não é status que a gente quer. A gente quer sobreviver, mano.

Como você vê a participação do PCC [Primeiro Comando da Capital] no crime organizado em SP?
O PCC controlou os homicídios em São Paulo, mas eu posso ser morto por falar isso. O sistema é falho e depende da violência para sobreviver. É diferente do PCC, no qual a violência faz eles perderem dinheiro. O sistema precisa da guerra para vender arma, munição, empregar mais gente na polícia, fazer mais cadeia, superfaturar. Antes de morrer, o Bezerra da Silva (sambista falecido em 2005, aos 77 anos) me disse: “Brown, cadeia é que nem show: precisa estar lotada para dar dinheiro”. Isso é uma máquina de comer dinheiro público. Está morrendo muito favelado, negro, moleque pé no chão mesmo. Gente que não é vista e não é lembrada morrendo aos montes por aí. É como se fosse gado.

Voltando à música, quando estávamos subindo a rua para te encontrar passou um carro ouvindo “Fórmula mágica da paz”. As pessoas ainda cantam muito essas músicas de 10, 11 minutos.
São canções que estiveram com o povo, lado a lado, em uma época difícil. As pessoas têm essa lembrança e carregam isso. Também tenho músicas daquela época de que eu gosto, apesar de não gostar daquele período. Quando fiz essas letras, lembro exatamente o que estava vivendo. Não tenho saudade daquilo. Tenho saudade de algumas coisas: eu jogava bola, meu filho era pequeno… Morreu muita gente ali. “Qual é a próxima mãe que vai chorar?” [trecho de “Fórmula mágica da paz”], entendeu? Como eu vou querer viver aquilo de novo?

Naquele DVD que vocês fizeram em 2006, intitulado 1000 trutas, 1000 tretas, em Itaquera, você altera, ao vivo, um trecho de “Fórmula mágica da paz”. Em vez de “Que porra é essa, que mundo é esse, onde está Jesus?”, você se cala e diz: “Perdão, senhor”. Por quê?
Eu achei que as palavras estavam mal colocadas, até pela minha ignorância, raiva e ódio. Também em respeito à fé das pessoas, que é muito maior que a minha, inclusive. Se você for ver, o DVD foi feito dez anos depois de lançarmos o CD, então já tinha outra visão… Minha ideia de religião hoje é aberta, sem discriminar nem pregar nenhuma.

Há uma presença fortíssima de temáticas religiosas nas músicas mais antigas do Racionais…
Estava sendo influenciado. Lembra o Tim Maia no disco Racional? [Dois álbuns lançados em 1975, quando o cantor foi devoto da Cultura Racional]. Eu fumava maconha e ficava na boca de fumo o dia inteiro. Às 7 horas da noite ia à Igreja Universal. Era isso todos os dias ou três vezes por semana. Eu estava buscando alguma coisa. Ficava na boca, viciado chegando e comprando as coisas… Era a visão crua da vida, e isso aparece nas músicas. As palavras pulam da minha boca assim [faz um gesto como se vomitasse], então vou vivendo e falando, sem planejar muito. Você vai ouvir o Brown cantando sobre as suas fases. Ali era eu indo à igreja, depois no candomblé, ali desandado, outrora louco…

Agora um Brown romântico?
Sempre fui romântico. Um cara que vai à igreja três vezes por semana quer o quê? Eu ia para ouvir a palavra mesmo. É um romantismo. Achava que tinha de estar perto da boca porque meu rap falava de tráfico, então precisava viver aquilo e ser verdadeiro no limite do limite.

Você já disse que falar de preconceito é normal porque você vive na pele, não é militância. Como você vê o movimento negro atualmente?
Bonito, forte, criativo. Nunca foi tão bom. Estou vendo vocês [Guilherme e Nadine, negros] e lembro o que o MV Bill (rapper carioca) fala: preto em movimento. Esse é o negócio. Isso é evolução. O tempo traz coisas ruins e boas. A internet veio, afastou um pouco as pessoas, e isso é ruim. Mas trouxe coisas legais, com uma geração negra de visão acima da média. Sou otimista em relação ao movimento negro. A gente só precisa tirar essa coisa da religião das costas.

Você diz que na época de Sobrevivendo no inferno as pessoas que moravam na periferia viviam entre o bar e a igreja, dando voltas nesse círculo. Isso mudou? Qual é a realidade?
As pessoas têm mais diversão e opção. Entre a igreja e o bar tem muita coisa. São vinte anos. Imagina 1960 com Beatles e 1940 sem Beatles. Mudou muito? Pensa em 1992 e 2002? Imagina 2020? Muda tudo. Sou obrigado a ficar respondendo pelo passado porque sou o mais velho [risos]. “Por que mudou?”… Sei lá por que mudou. Mudou porque tinha que mudar, porque é maior que a gente. Nós somos grão de areia. A mudança é viva e te engole, como se fosse uma pílula.

Você é um cara de muitas utopias?
Várias. Todas artísticas. Socialmente, sou realista. Como artista, sonho mais, alço voos maiores. Como cidadão, não. É que os dois se confundem. Artística e pessoalmente é o mesmo cara. Agora, eu posso usar minha arte de outra forma, pôr outra roupa nela, abordar outros assuntos. Não é porque você é negro que eu tenho que falar de favela com você. Que porra de preconceito é esse? Vejo muitos negros querendo falar de outras coisas. Na verdade, os negros querem falar de outras coisas. Esse é o ponto. O branco vai entender isso também, mas vai demorar um pouco. A gente tá ligado às coisas que aconteceram há quatrocentos anos. Nós queremos novidade. Eu vejo a raça negra buscando a tecnologia, a beleza. Ser hype também, do jeito que está e do jeito que dá. Uns com mais conteúdo, outros com menos, mas todo mundo tentando. Antes ninguém tentava. A utopia era não tentar. Ali estava a anestesia. Você via o Wilson Simonal ali no palco, sozinho, lutando… Olha o Seu Jorge atualmente, lutando com arte, argumento, com a raça dele, falando o que quer, na hora que quer. Revolução é isso.

Musicalmente tem algo que você considere uma evolução, mas que ainda não conseguiu fazer?
Ainda não fiz nada na música, e o que está aí é muito menos do que os caras que eu admiro fizeram. Eu sou um adolescente na música. Fiz o que era necessário para uma época. Era a prioridade de todos lutar pela quebrada. Bandeira única. “Primeiro a periferia, depois debatemos outras ideias, quem é de Touro, Áries, corintiano, palmeirense…” Tinha um genocídio acontecendo. O Racionais uniu quebradas, bairros que não se falavam e estavam em guerra. Os caras se uniram nos shows do Racionais, andando comigo. Isso são coisas do submundo que ninguém sabe. A bala comia. Os caras cheirando no bar e ouvindo Racionais. Altas horas da madrugada, no bar, bebendo e analisando a ideia do Racionais. A mudança acontece onde você menos espera, mas é justamente lá que ela precisa acontecer.

Você já falou sobre os comentários que ouviu quando lançaram o Cores & valores e depois o Boogie naipe: “O Brown abandonou suas origens”.
Voltei para as origens mais ainda. Boogie naipe é soul. É que os caras são mais novos, geração hip-hop, então eles comem, bebem e respiram isso. Não tenho culpa de ser mais velho e ter vivido mais coisa. Tem o lado bom e o lado ruim disso. Dói aqui, dói ali. Sou mais velho, mas em compensação, eu vim do samba, curti funk, fui função, ouvi a raiz do barato e vi o rap chegar. Vi Thaíde, Facção e o RZO começarem. Ia para a São Bento ouvir os caras, todos moleques. Agora, não pode querer me impedir de viver o que a minha idade pede que eu fale. Tenho que representar eles da melhor forma, pela verdade, e não pelo comodismo e pela conveniência. Nunca fiz música conveniente. Invisto na inteligência, não na preguiça. Pega o cara cansado e dá mais aquela marretada para o cara arriar. Não dá, isso é covardia. Tem que ser companheiro do cara, saber por que ele está louco, virado…

Boogie naipe é um CD companheiro nesse sentido?
Companheiro e intimista. E cofre. O que você sente e não quer falar. O lado humano também tem que ser olhado. Comecei a reparar nos problemas encobertos, dos casais, da massa negra, das nossas famílias. Não é comprador de CD. É gente que ama, se decepciona, sofre, chora. Vai ouvir samba romântico e chora pra caralho. Ouve forró, sertanejo romântico e chora. Tem que saber o que eles estão sentindo. Não interessa que ritmo você canta. Foda-se, mano. Essa bandeira eu não levo. Cada um ouve o que o coração manda. Os caras estão ouvindo o sertanejo porque ele está tocando o coração. Se você não consegue tocar o coração, o problema é seu. As pessoas são seres humanos, não números. Fora o racismo, tem muitos problemas. A gente não é só raça, a gente é pessoa, mil fitas, mutante, ama, sofre… Desce para o asfalto, briga, chora. Às vezes perde, às vezes ganha. Volta para casa e às vezes nem tem a mulher de que gosta ao lado. Às vezes não tem mulher nenhuma, está abandonado. Coisas de um homem normal, mas que não é visto. É visto como gado, eleitor e comprador de CD. “Ah, o perfil do negro é esse aqui. Vamos fazer música nesse perfil aqui.” Eu quebro esse perfil. Falo de carro caro, moto cara, mulher bonita e falo também de outras fitas.

Boogie naipe quebrou um pouco o perfil que fizeram de você?
Os caras fizeram uma caricatura fácil de usar. Não posso deixar me usar. Os caras fizeram uns três, quatro personagens meus na televisão. Todos tinham o mesmo perfil: burro, ignorante, falando as mesmas coisas. O cara burro que fala coisas engraçadas. Eles põem um bigodinho, às vezes põem um preto ou um branco, sempre bravo, pondo ritmo na cadeia, ofendendo as minas no auditório… E sempre essa visão clássica do ignorante. Interessante a visão deles sobre mim. Isso tem um tom de racismo também. O tempo todo o tempero das piadas é o racismo, seja contra judeu, japonês, baiano, com nós [negros], gordo.

Você falou que construíram essa imagem de você como o cara que ofende as mulheres. E é muito presente nas suas músicas a forma como você retrata as mulheres…
Qual é?

A vadia, a mentirosa, a falsa…
Mas isso tem vinte anos…

Mas sua visão mudou?
Mas na época… Vadia? Em que momento?

“Vadia, mentirosa, nunca vi, deu mó faia, espírito do mal, cão, de buceta e saia” (trecho de “Vida loka – Parte I”).
Ai, ai, ai… [risos] Verdade. Mas mudou, né? Engraçado ver as mulheres pedindo essa música. As minas chegam e pedem “Estilo cachorro”… Mas tem que pedir perdão e seguir em frente. Mudei minha visão, não por conveniência, mas porque realmente mudei meu pensamento. Não vale a pena falar essas coisas só para rimar. Ali era só para rimar. Na verdade, nunca tive ódio a mulher nenhuma. É que, naquele momento, uma mulher quase causou minha morte, então foi algo extremo… Peço perdão por isso. A linguagem de hoje mudou e tenho total respeito pelas mulheres e tudo que elas representam. Na verdade, três partes de mim é mulher: minha mãe, uma filha e a mãe da minha filha. O mínimo que eu posso fazer é pedir perdão e seguir.
Recentemente você disse que o Brasil, em alguns momentos, passa por períodos de cegueira. A gente está vivendo isso?
Sim. Cegueira e ambição. Está todo mundo ambicioso, tanto a esquerda quanto a direita. Eles ficam em uma guerra psicológica. Ninguém acredita mais em ninguém. O povão quer segurança. Daqui a pouco você vai ver o que o povão vai querer. Vão pedir o Exército e já era. A gente tem medo de ladrão, medo de não sei o quê, medo disso e daquilo… “Então, me defende, por favor!”, o povão vai virar criança, vai pedir segurança. Isso enfraquece as pessoas, deixa elas completamente perdidas. Sinto a periferia perdida, carente de informação, de instrução real, porque tudo parece ser xaveco, direcionamento político, e isso pega mal. Você tem que deixar as pessoas pensarem. Por mim, seria todo mundo santista, e não é assim. Eu não aceito? Não convivo com isso? Pronto, irmão. A gente convive com quem vota diferente; você não concorda, mas ele vota. E agora? Vai sair na mão com o cara? Vai ter que arrumar um jeito de sobreviver. A favela já sabe como sobreviver a tudo isso e não absorve nada. A gente sabe que as pessoas estão alheias a essas ideias. Desanimam essas coisas que aparecem sobre corrupção, impunidade, e o pessoal aqui vai preso por causa de maconha. Na quebrada, os caras vão preso por causa de baseado. Está no beco, a polícia passa, ele correu, pegaram um baseado no bolso, um pino de cocaína, vai tirar cadeia. Vai ficar fichado, não vai mais arrumar emprego, acabou com a vida do moleque. Aí, o outro que tem faculdade, que é branco, fala bem, mete a mão no dinheiro do povão, os políticos se unem, chamam todo mundo e decidem o que fazer com o cara. E o povo está vendo. Ninguém acredita mais em ninguém, mesmo porque essas ideias de civil e militar, quem vai ser presidente, ninguém tem medo. O povo já convive com isso dentro das favelas.

Como tem sido o relacionamento com a polícia?
Tenho que andar na linha. O resto é administração diária.

O Mano Brown que lançou Boogie naipe está mais próximo do Pedro Paulo do que aquele que canta as músicas do Racionais?
O Pedro Paulo tem várias fases, idades. Ele com 17 anos era uma coisa, com 27 era outra, e agora com 47 também mudou… É a mesma pessoa em períodos diferentes. Tem a fase que eu não tinha filho, que eu não tinha nem mulher, depois a fase que eu já tinha filho, aí na outra meu filho criança correndo, agora ele já está homem. Hoje eu vejo a vida de ângulos que antes não tinha como ver. É covardia dizer “Ah, você mudou, Paulo”. Lógico, não sabia nada da vida.

Sua relação com seus filhos é boa?
Muito boa. De amizade, parceria, sem pressão. Eles têm a personalidade feita.

Da ponte pra cá antes de tudo é uma escola, né?
Antes de tudo é uma escola. Escola de viver em conjunto, em comunidade e coletividade.

*Guilherme Henrique, Henrique Santana e Nadine Nascimento são jornalistas.
Entrevista publicada no Le Monde Brasil.
BRASIL CULTURA