· Por Jornalistas Livres
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Mayra Marques, Mateus Pereira e Valdei Araujo professores
da Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), em Mariana, MG *
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Como se sabe, uma das ações que passou a
fazer parte destes protestos foi a derrubada de estátuas que homenageiam
personagens de algum modo envolvidos com a história da escravização moderna ou
do colonialismo, o que logo suscitou um debate entre a defesa do “patrimônio
histórico” e a necessidade de “fazer justiça às memórias” de grupos
historicamente oprimidos. A polêmica se dá entre aqueles que alegam a defesa de
um certo patrimônio histórico e artístico versus os que demandam
por justiça e reparação.
· Nos Estados Unidos, uma das tensões com a derrubada ou remoção de estátuas de Cristóvão Colombo envolveu parte da comunidade ítalo-americana, que via e vê na imagem de Colombo um elemento de reforço de sua identidade estadunidense. Segundo um articulista do The New York Times, as estátuas “reconhecem a dívida geral que os colonizadores do Novo Mundo, colonos e imigrantes, têm com o homem que conectou a Europa às Américas, junto (em muitos casos) com o desejo específico dos imigrantes ítalo-americanos de reconhecer e reivindicar o explorador italiano”.[1].
Os personagens históricos, assim como os
seres humanos, são multidimensionais, isto é, suas vidas possuem diversos
aspectos contraditórios. Assim, como separar o que está sendo homenageado
daquilo que deveria ser repudiado, se ambos estão presentes em um mesmo
personagem-monumento? Podemos celebrar o Colombo explorador e repudiar o
Colombo conquistador? Podemos nos afastar dessa concepção tradicional e
homogênea das biografias que ainda organiza as expectativas de boa parte
público? Para começar a responder a essas perguntas é preciso analisar em que
medida uma visão celebrativa e acrítica do colonialismo que Colombo representa
ainda é uma ferida aberta, assim como as concepções racistas e eurocêntricas
que fundamentam essa concepção de história.
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· Mais recentemente alguns críticos invocaram o tema da liberdade de expressão em torno de uma suposta cultura do cancelamento, da qual a destruição das estátuas seria apenas mais uma dimensão. Nesse grupo de críticos pode-se encontrar quase todas os matizes da direita política contemporânea, mas, também, setores da esquerda, como muitos dos que assinaram a carta publicada na Revista Harpers em 7 de julho deste ano em um manifesto contra uma alegada cultura do cancelamento que estaria colocando em risco a liberdade de expressão. As posições, naturalmente, vão oscilar desde uma recusa total a qualquer esforço de revisão – como defendido por Donald Trump no caso dos militares confederados que nomeiam bases militares estadunidenses – até críticos moderados que admitem a legitimidade de algumas demandas e que questionam apenas os métodos de algumas dessas ações.
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No dia de 13 de maio, que no Brasil se comemora a abolição
da escravatura, a “derrubada simbólica” da figura de Zumbi pela Fundação
Palmares foi acompanhada do reforço de personagens supostamente mais afinados
com a base do bolsonarismo, como a Princesa Isabel e Joaquim Nabuco; mas também
do intelectual negro Luiz Gama, celebrado como patrono da abolição. A operação
reforçava a oposição entre uma narrativa de resistência violenta dos negros e a
via por dentro do sistema através de reformas. De certo modo, Luiz Gama, filho
de pai branco e mãe negra, cuja biografia destaca sua capacidade de prosperar
dentro da ordem, estaria mais adequado à mitologia conservadora promovida pelo
bolsonarismo.
Pelourinho
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Na Praça Minas Gerais, em Mariana, cidade que abriga nosso campus da UFOP, há um dos poucos pelourinhos em espaços públicos
ainda existentes no Brasil. Esses marcos eram usados no período colonial para
identificar o poder local quando da criação de vilas, simbolizava o poder de
administrar a justiça, o que na época poderia envolver a exposição e o açoite
em público. Muito frequentemente as pessoas punidas nesses espaços eram seres
humanos escravizados. O pelourinho de Mariana havia sido derrubado em 1871,
mesmo ano em que entrou em vigor a Lei do Ventre Livre, mas foi reconstruído e
reinstalado em 1981, em novo local, a mando do então prefeito Jadir Macedo.
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Muitos turistas que visitam a Praça Minas
Gerais em Mariana se divertem tirando fotos nas quais simulam estar algemados,
e alguns brincam que estão sendo chicoteados. Não há, no monumento, uma
explicação clara sobre a sua história, apenas uma placa dizendo que o prefeito
havia “restituído” o pelourinho à “memória nacional”. Alguns metros ao lado há
outra sinalização em que se lê: “Símbolo do poder municipal, inicialmente
composto por simples coluna de madeira com argolão ao pé, no qual eram
amarrados criminosos e cativos expostos ao castigo público” e mais alguns
detalhes técnicos. É interessante notar que o “poder municipal” não precisaria
necessariamente continuar a ser simbolizado pelo pelourinho para as gerações
futuras, já que o prédio da Câmara Municipal, erguido também no século XVIII,
se encontra preservado e ativo nessa mesma praça.
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Caso a placa de identificação do pelourinho
contivesse mais informações sobre a violência contra os presos e escravizados,
os turistas continuariam a tirar fotos agrilhoados? Encarar este local como um
lugar onde pessoas foram torturadas no passado não tem nenhuma relação com os
inúmeros casos de violência que presenciamos hoje em dia? Como não lembrar de
vários casos em que pessoas alegando fazer justiça com as próprias mãos amarram
suspeitos de roubo (geralmente pobres e negros) em postes? O pelourinho como
monumento não não seria também um símbolo dessa violência policial e social de nosso
presente? Não seria ele a reafirmação de frases populares como “bandido
bom é bandido morto”, que autorizam a prática do justiçamento contra pessoas
pretas e pobres? O tipo de frase inúmeras vezes repetida pelo presidente
Bolsonaro e que tem nas condições genocidas das prisões e cadeias brasileiras
sua materialização enquanto política pública.
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Esse seria um exemplo da plurissignificação
aderida aos monumentos históricos, pois, nesse caso, a elite local celebra, com
a reinauguração do Pelourinho, uma suposta autonomia que reforçou a imagem da
cidade como a origem administrativa do poder em Minas, enquanto também
representa um passado-presente violento e racista que é invisibilizado ou
ignorado. O reerguimento do pelourinho no final da Ditadura Militar está
relacionado à onda ufanista de valorização do patrimônio colonial, mas também
com as ansiedades que a expansão da mineração trazia. Segundo o mesmo prefeito,
em declaração para o Jornal do Brasil em 1981, a cidade corria o risco de ter
um “futuro vazio”. O pelourinho representava a atualização de uma forma de
poder baseado na hierarquia e na violência racial que, de algum modo,
pacificava a consciência das elites locais em um momento de rápida
transformação. Na época, o turismo histórico baseado em uma concepção
celebrativa do passado colonial também começava a ser alvo de políticas
públicas locais.
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Quase quatro décadas depois de restauração do pelourinho o
futuro de Mariana não foi vazio. De algum modo as elites locais conseguiram
repetir o passado colonial de desigualdades e hierarquias. A município saltou
de 14 para 60 mil habitantes, as periferias cresceram com pouca ou nenhuma
infraestrutura, a mineração nos legou o crime da Samarco e somos hoje o
município com um dos piores indicadores socioeconômicos de Minas Gerais. O
turismo valorizou as áreas centrais da cidade beneficiando os herdeiros do
casario colonial e a especulação imobiliária.
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· Para o antropólogo haitiano Michel-Rolph Trouillot, em Silenciando o Passado, “trivializar a escravidão – e o sofrimento que ela causou – é algo inerente ao presente, que envolve tanto o racismo como as representações da escravidão”.[2] É importante ressaltar mais um aspecto da presença do pelourinho em Mariana: a cidade é sede, desde os anos de 1980, de um curso de História vinculado à Universidade Federal de Ouro Preto.
Como professores isso significa que não estamos ali só de passagem, vivemos a cidade e suas contradições. Como em muitas outras salas de aulas no Brasil e no mundo, concordamos com as palavras dos colegas Francisco Carballo, David Martin e Sanjay Seth que recentemente escreveram sobres os protestos antirracistas em Londres: “Os manifestantes, muitos deles jovens, porém já amadurecidos, estão fazendo a ligação entre a história do colonialismo, a história da escravidão e o racismo estrutural que é o seu legado. Eles estão fazendo isso apesar de sua educação formal, e não porque esta lhes deu essa oportunidade. A rua é a sala de aula porque as salas de aula falharam”.[3]
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Seria ingênuo, e mesmo violento, imaginar
que comunidades humanas possam viver sem suas narrativas de orientação e
presença no tempo. Para que sejam eficazes, no entanto, é preciso que
essas narrativas sejam representativas e inclusivas. O que observamos em
situações como a do pelourinho em Mariana é uma perda de representatividade de
narrativas tradicionais convivendo com uma crise mais profunda da forma como
vivemos a nossa história comum. Portanto, não se trata apenas de refundar e
atualizar narrativas históricas, mas de questionar seus efeitos e duvidar das
condições de que isso aconteça em um tempo atualista que nos pressiona a viver
uma história pobre.
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A derrubada de estátuas pode simbolizar um deslocamento ou
uma atualização da relação com o tempo histórico, levando a inevitáveis
redimensionamentos das disputas por orientação e performances. Exemplos
conhecidos são as estátua do Czar Alexandre III, retirada pelos revolucionários
russos em 1917, os bustos de Lenin e Stalin, com o fim da URSS, e, mais
recentemente, a estátua de Saddam Hussein, em Bagdá, em 2003. Em Budapeste,
encontramos um jeito próprio de lidar com o passado: as estátuas retiradas de locais
antes públicos agora se encontram no Memento Park, um museu a céu aberto, bem
longe do centro da cidade.
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O fato é que perpetuar e destruir registros
são gestos siameses e constitutivos de nossa condição humana, que podem
acontecer de modo programático ou espontâneo. No caso atual, a retirada,
ressignificação ou atualização das estátuas simbolizaria não a inauguração de
um novo regime político, mas a tentativa de dar visibilidade àqueles sujeitos
que a história teria invisibilizado ou registrado a partir de hierarquias e
distorções. A luta por equilibrar a economia da memória histórica compõe o rol
das lutas por uma sociedade menos violenta, racista e sexista e mais
igualitária. Essas novas disputas, em torno de personagens muitas vezes
desconhecidos, indica também que a presença do passado é mais complexa do que a
“consciência historiográfica” gostaria de supor. Ou seja, longe de um passado
morto e domesticado por um historiador terapeuta, o que vemos nessas disputas é
uma sociedade plural e muito atenta à forte presença da história, capaz de
identificar e disputar passados-presentes sensíveis e apontar para um
necessário esforço de atualização que abra outros futuros.
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Se considerarmos as cidades ou os países
como grandes museus, nos quais se integram as estátuas, os casarões históricos
e os monumentos que os compõem, assim como as peças expostas, precisamos pensar
sobre as decisões em relação às seleções feitas pela curadoria que, em última
instância, vai decidir sobre a relevância desse ou daquele objeto presente
nestes espaços. Ou seja, estamos diante de figuras fundamentais nessas
escolhas: os/as curadoras, que, no caso das cidades, geralmente são as
autoridades políticas, mas que também podem ser pessoas comuns que reivindicam
a inserção ou a retirada de um monumento.
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Nessa direção, ao analisar o caso americano, Trouillot
afirma que: “O fato de que a escravidão estadunidense tenha acabado
oficialmente, mas continue sob muitas formas mais sofisticadas – em especial,
sob a forma de racismo institucionalizado e de degradação cultural da negritude
–, torna a sua representação particularmente incômoda nos Estados Unidos. A
escravidão, aqui, é um fantasma, isto é, simultaneamente uma figura do passado
e uma presença viva; e o problema da representação histórica é como representar
este fantasma, algo que é, mas não é”.
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Derrubar estátuas não significa que o
passado a elas relativo será apagado, mas que há um desejo de mudança em
direção a um futuro em que aqueles que construíram suas vidas baseadas na
escravização de outras pessoas não se tornem referência. Portanto, a questão
que se coloca é: como lidar com a obsolescência de monumentos? Haveria lugar na
monumentalização pública para objetos obsoletos? Haveria uma força de
atualização, em sentido próprio, que pode ser despertado pelo que nosso
presente considera obsoleto?
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As estátuas não deveriam ser celebradas. Qualquer pessoa
familiarizada com a imperfeição das coisas humanas saberá que por trás de cada
personagem ou evento escondem-se falhas, insuficiências, erros, mentiras e
mesmo crimes. A ambivalência é constitutiva da vida humana e se enquadra mal às
exigências rigorosas da escala moral e ética. Assim, o mais prudente é
entendermos que a monumentalização de personagens e eventos históricos deveria
ser um motivo para comemoração no sentido estrito da palavra, ou seja, um
convite à rememoração coletiva, à reavaliação crítica dos sentidos e
consequências dessas pessoas e eventos para o nosso tempo.
· (*) Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo escreveram o Almanaque da Covid-19: 150 dias para não esquecer ou o encontro do presidente fake e um vírus real. Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. Também são autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem. Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
· [1] DOUTHAT, Ross. The Ghost of Woodrow Wilson. The New York Times, Nova Iorque, 30 de junho de 2020. Opinion. Disponívelem <https://www.nytimes.com/2020/06/30/opinion/woodrow-wilson-princeton.html>> Acesso em 26 ago.
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[2] TROUILLOT,
Michel-Rolph. Silenciando o Passado: Poder e
a Produção da História. Curitiba: Huya, 2016.
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[3] CARBALLO,
Francisco; MARTIN, David; SETH, Sanjay. A sala de aula e a rua. HH Magazine, 08
de julho de 2020. Ensaios. Disponível em
<https://hhmagazine.com.br/a-sala-de-aula-e-a-rua/> Acesso em 01 set.
2020.
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Este
texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres