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domingo, 3 de fevereiro de 2019

TRANSFORMAÇÃO SOCIAL - Cinema negro brasileiro ganha mostra em Roterdã

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Filme 'Kbela' (2015), de Yasmin Thayná, foi ignorado/recusado por todos os grandes festivais do país
Com exibição de 28 filmes, quatro longas e 24 curtas, participação é considerada histórica para o cinema nacional e um aceno de otimismo que comprova importância das políticas públicas de inclusão.
São Paulo – O Brasil vive um momento histórico para sua cultura: pela primeira vez uma mostra internacional reúne filmes e a maior delegação de realizadores do cinema negro nacional. A 48ª edição do Festival Internacional de Roterdã (IFFR), na Holanda, teve início na quinta-feira (24) e vai até esta segunda-feira (28). No primeiro dia da mostra teve lugar a obra Soul in the Eye – Zózimo Bulbul’s legacy and the contemporary Black Brasilian cinema (Alma no Olho – O legado de Zózimo Bulbul e o cinema negro brasileiro contemporâneo). O festival conta com a exibição de 28 filmes, quatro longas e 24 curtas metragens do produção negra do Brasil.
A curadoria é da professora Janaína Oliveira, do Instituto Federal do Rio de Janeiro, em parceria com os programadores do festival Tessa Boerman e Peter Van Hoof. Doutora em História, Janaína é integrante da Associação dos Profissionais do Audiovisual Negro (Apan).
“Essa mostra é relevante por uma série de motivos. É um momento histórico, não só para o cinema negro, mas para o cinema brasileiro como um todo. Isso nunca aconteceu, de você ter uma mostra nos maiores festivais do mundo, com a quantidade de filmes, a presença dos realizadores. Entre curtas, longas, diretores, assistentes de fotografia, atriz, temos cerca de 19 brasileiros aqui”, relata de Roterdã.
Para a professora, a mostra é um aceno de otimismo, resultado de um processo de transformações vividas no Brasil de 2003 a 2016, com políticas globais de educação inclusiva, com as ações afirmativas no audiovisual, novas escolas de cinema fora das principais capitais. Medidas fundamentais para o surgimento dessa nova geração de cineastas que hoje vê seu trabalho contemplado na mostra internacional.
“Tudo isso junto tornou possível que essas pessoas tivessem acesso à universidade, à formação. Essa geração que a gente vê aí com esses filmes representam uma coisa que a gente não pode esquecer nesse período que a gente está vivendo: alguns processos não têm como retroagir, retroceder. Educação é um deles. Uma vez que as pessoas têm acesso, têm formação, e não é uma coisa que se pode tirar. Continuamos aí produzindo, fazendo, buscando formas, não importa o contexto.”
E reforça: esse processo representa que quando um país tem iniciativas globais por parte das políticas de governo, de educação, de acesso e permanência nos espaços, as transformações sociais acontecem. “É a prova disso, apesar de todas as políticas nesse sentido estarem em xeque, sendo revogadas”, lamenta.
JANAÍNA OLIVEIRA/FICINE
zózimo bulbul
Zózimo Bulbul lutou durante toda sua vida para denunciar o apagamento das culturas africanas
Com orgulho e emoção, Janaína conta que a mostra foi aberta, na quinta-feira (24), justamente por Abolição, primeiro e único longa-metragem de Zózimo Bulbul. “E como nada é por acaso, foi quando se completaram cinco anos da passagem do Zózimo. Na abertura falei disso, falei dele e ao invés de fazermos um minuto de silêncio, fizemos um minuto de aplauso. Foi muito lindo.”
Um filme brasileiro da mostra também foi exibido na abertura da cerimônia do festival: Travessia, de Safira Moreira.
Sessões cheias, público participando dos debates que sempre levam a questões sobre como se chegou a esse quadro atual da política brasileira. “É uma pergunta incontornável que as pessoas trazem com algum grau de perplexidade. Elas não entendem como pudemos chegar onde estamos. As participações recentes em Davos, no cenário internacional por parte do novo presidente, deixaram o público internacional ainda mais apreensivo em relação ao Brasil. As pessoas sempre querem entender o que está acontecendo e a gente tem muita presteza e paciência em explicar a complexidade dos nossos desenvolvimentos históricos. Não é fácil.”

Desapagamentos na origem da mostra

Janaína informa, em texto publicado no site do Fórum Itinerante de Cinema Negro (Ficine), do qual é coordenadora, que todo trabalho para chegar à mostra em Roterdã nasceu de “desapagamentos”. “Foi o de Kbela, filme de 2015 de Yasmin Thayná, notoriamente ignorado/recusado por todos os grandes festivais do país, e que Tessa Boerman encontrou na internet em suas pesquisas.”
Impressionada pelo filme, Boerman convidou Thayná em 2017 para participar do programa Black Rebels (Rebeldes Negros), do qual foi criadora, assim como do Cinema Pan-Africano da Atualidade (Pact, na sigla em inglês, 2018). Junto com Bruno Duarte, um dos diretores de comunicação do filme, Thayná levou para o IFFR o Alma no Olho, curta-metragem de Zózimo Bulbul, que agora dá nome à mostra.
“Foram, portanto, os desapagamentos de Thayná, Bruno e do filme Kbela, e do trabalho seminal de Bulbul, que resultaram nesse momento histórico”, lembra Janaína.
A pesquisadora destaca, no site do Ficine, que, nem os “veículos hegemônicos” da imprensa brasileira, nem a Ancine noticiaram o fato em 2017. “Era a primeira vez que uma diretora brasileira era convidada para o festival, era a primeira vez de Zózimo e Alma no Olho, e era mais uma vez o silêncio e a invisibilidade dos grandes circuitos relacionados ao cinema.”
Mas foi graças a esses desapagamentos que surgiu a ideia da mostra de homenagear o legado de Bulbul. Já a extensão da mostra para os filmes contemporâneos, explica Janaína, foi uma outra semente plantada por Kbela, já que o caráter inovador do filme despertou o interesse em saber mais sobre esta geração de cineastas que hoje compõe o cenário do cinema negro brasileiro.
“Foi assim o começo de tudo. Nas histórias que compõem as trajetórias negras é fundamental sempre lembrar e reverenciar o caminho, celebrando quem trabalhou ontem para tornar o hoje possível”, afirma Janaína.

Alma no olho de Bulbul

A mostra Soul in the Eye é o terceiro programa que destaca os principais movimentos do cinema pan-africano, mas dessa vez voltado totalmente para a produção do cinema negro brasileiro, “a maior comunidade da diáspora africana no mundo”, ressalta Janaína. “E ligamos o recente surto de filmes brasileiros negros ao trabalho pioneiro do ator, produtor, diretor e ativista Zózimo Bulbul.”
O curta-metragem Alma no olho foi escrito, dirigido e interpretado por Zózimo Bulbul, em 1973. Inspirado no livro Soul on Ice, de Eldrige Cleaver e dedicado a John Coltrane, o filme de onze minutos foi a estreia do cineasta e se tornou referência para os realizadores negros.
Nascido em 1937, no Rio de Janeiro, Bulbul iniciou sua carreira no início dos anos 1960 como ator durante a era do Cinema Novo. Fez mais sete curtas e o longa-metragem Abolição, documentário épico em comemoração ao centenário do fim da escravidão no Brasil.
O ativista pan-africano lutou durante toda sua vida para denunciar o apagamento das culturas africanas e afrodescendentes. “Em 2007 criou o Centro Afro Carioca de Cinema, um quilombo no coração do Rio de Janeiro como ele próprio costumava dizer, e fundou o Encontro de Cinema Negro - Brasil, África e Caribe, um dos primeiros festivais de cinema negro na América Latina e o maior até o presente”, relata Janaína, que trabalhou com Bulbul como pesquisadora até sua morte, em 2013.
OS FILMES QUE COMPÕEM A MOSTRA SOUL IN THE EYE

Abolição, Zózimo Bulbul, 1988, Brasil, 153’

Ilha, Ary Rosa/Glenda Nicácio, 2019, Brasil, 94’ (veja trailer)


Meu amigo Fela, Joel Zito Araújo, 2018, Nigéria/França/EUA/Brasil, 94’

Temporada, André Novais Oliveira, 2018, Brasil, 113’

Afronte, Bruno Victor/Marcus Azevedo, 2018, Brasil, 15’

Alma no olho, Zózimo Bulbul, 1973, Brasil, 11’

Aniceto do Império em dia de alforria, Zózimo Bulbul, 1981, Brasil, 11’

ASSIM, Keia Serruya, 2013, Brasil, 13’

BR3, Bruno Ribeiro, 2018, Brasil, 23’

Cartucho de Super Nintendo em Aneis de Saturno, Leon Reis, 2018, Brasil, 20’

Dia de Jerusa, Viviane Ferreira, 2014, Brasil, 21’

Elekô, Coletivo Mulheres de Pedra, 2015, Brasil, 6’

Eu, Minha Mãe e Wallace, Eduardo Carvalho/Marcos Carvalho, 2018, Brasil, 22’

Experimentando o Vermelho em Dilúvio, Musa Mattiuzzi, 2016, Brasil, 8’

Kbela, Yasmin Thayná, 2015, Brasil, 22’ (veja trailer)


Merê, Urânia Munzanzu, 2019, Brasil, 16’

Nada, Gabriel Martins, 2017, Brasil, 27’

NoirBLUE, déplacements;une danse, Ana Pi, 2019, Brasil/França, 27’

Pattaki, Everlane Moraes, 2019, Cuba, 20’ (veja trailer)


Pequena África, Zózimo Bulbul, 2002, Brasil, 14’

Perpétuo, Lorran Dias, 2018, Brasil, 25’

Peripatético, Jéssica Queiroz/Jéssica Queiroz, 2017, Brasil, 15’

Pontes sobre Abismos, Aline Motta, 2018, Brasil, 8’

Quantos eram pra tá?, Vinícius Silva, 2018, Brasil, 29’

Quintal, André Novais Oliveira, 2015, Brasil, 15’

Rainha, Sabrina Fidalgo, Sabrina Fidalgo, 2016, Brasil, 30’

O Som do Silêncio, David Aynã, 2019, Brasil, 17’

Travessia, Safira Moreira/Safira Moreira, 2017, Brasil, 5’

FEMINISMO - As escolhas das mulheres em 'Minha Carne'




Minha Carne
Documentário retrata luta de negras e indígenas por lugar de direito na sociedade. Clipe com a música que deu origem ao filme será lançado em 14 de março, marcando um ano da morte de Marielle Franco.
São Paulo – Em outubro do ano passado, Preta Ferreira compôs a música Minha Carne para o filme Tlazolteotle, de Carla Caffé, Eliane Caffé e Beto Amaral. Três meses depois, Minha Carne virou um documentário e ganhou um clipe para ampliar a voz que fala de “corpos precarizados” e sobre o papel da mulher na sociedade. “Mas o papel em que ela escolheu estar, escolheu ser”, explica a publicitária de 34 anos.
Preta é a terceira dos oito filhos da coordenadora do Movimento Sem Teto do Centro (MTSC), Carmem Silva. Foi nessa luta por moradia digna para famílias de baixa renda que a jovem formou sua militância negra e feminista, trabalhando pelo empoderamento das mulheres que fazem parte do movimento em relação aos direitos e acessos que lhes são negados, lembra.
Além de cantora, Preta é atriz – participou do longa-metragem Era o Hotel Cambridge, também de Eliane Caffé – e dirigiu Minha Carne ao lado da líder indígena Guarani da Aldeia do Jaraguá, em São Paulo, Sonia Barbosa (Ara Mirim), e de Tarsila Araújo, cineasta que trabalha com a inclusão das mulheres no audiovisual.
MInha Carne
A história de Erika Hilton, mulher trans negra, que saiu da prostituição e se tornou uma das nove integrantes da Bancada Ativista, que chega à Assembleia Legislativa de São Paulo com quase 150 mil votos, está em Minha Carne. Assim como as trajetórias de outras mulheres que conseguiram fugir de padrões sociais e de beleza.
“A mensagem é que toda mulher pode ser o que ela quiser”, destaca Preta. “O que queremos mostrar para as que estão por vir, que estão surgindo como liderança, é que elas saibam que estamos aqui e que podem ter referência negra no Brasil, sim. Que existem mulheres na luta que estão buscando dias melhores para elas, para que todas tenham sempre força para denunciar qualquer forma de racismo, machismo, agressão, opressão, feminicídio e que saibam que não estão sozinhas.”
A ressalva de que a obra é também uma mostra de que sororidade não é só uma palavra. “Para nós, ela é exercida na prática”, diz, explicando que tanto o clipe como o filme foram feitos na base da parceria, sem nenhum centavo. “Não tínhamos dinheiro. Toda a equipe doou seu tempo, seu material, seu amor e acreditaram nesse projeto.”
Contribuições recolhidas por um site de doações para financiar a obra serão repassadas igualitariamente a toda a equipe envolvida. Todo o processo de produção está no Instagram de Preta.
O lançamento do clipe será na Ocupação 9 de Julho (Rua Álvaro de Carvalho, 427, Bela Vista, região central de São Paulo), no dia 14 de março, quando se completa um ano da morte de Marielle Franco. “Escolhemos essa escolhemos essa data pois tem muita representatividade e queremos homenagear sua presença em nossas vidas.”
O filme será lançado no fim do ano. “Vamos fazer um show para arrecadar grana pois ainda faltam algumas cenas para serem gravadas”, diz Preta.

Fonte Rede Brasil Atual - RBA 

Jorge Coli: os livros de Monteiro Lobato eram mesmo racistas?

Ilustração mostra Monteiro Lobato com o Saci-Pererê e outros personagens do Sítio do Picapau Amarelo
Não se deve ter medo de livros. De nenhum livro. Muito menos dos livros infantis de Monteiro Lobato. As consciências puras de nosso tempo andam condenando seus escritos por racismo.
Por Jorge Coli, na Folha de S.Paulo
Creio, em primeiro lugar, que deveríamos separar o autor e a obra. A complexidade na arte é sempre maior do que no artista. Mas esta é uma outra história, muito comprida, que não cabe aqui. Quero, agora, trazer observações sobre o racismo nos livros infantis de Lobato.
Encasquetaram com Caçadas de Pedrinho, em que aparece a frase: “Tia Nastácia, esquecida dos seus numerosos reumatismos, trepou que nem uma macaca de carvão pelo mastro de São Pedro acima”. Algumas defesas bem-intencionadas dizem que é preciso “contextualizar na época”. Não acredito nessa solução.
Lobato inoculou pensamento crítico a toda uma geração, a dos que têm hoje entre 50 e 80 anos. Lembro-me de Benedito Nunes, cuja inteligência filosófica nos faz tanta falta, mostrando-me, comovido, sua coleção do Picapau Amarelo guardada em lugar de honra.
São livros que abalam todos os confortos intelectuais. Têm horror à autoridade e à obediência. No Sítio, ninguém manda nem obedece: “Emília, respeite os mais velhos! – ralhou dona Benta. – A senhora me perdoe, – disse a pestinha – mas, cá para mim, isso de respeito nada tem com a idade. Eu respeito uma abelha de um mês de idade que me diga coisinhas sensatas –mas se Matusalém vier para cima de mim com bobagens, pensa que não boto fogo na barba dele? Ora, se boto!”.
Esta é uma passagem de Histórias de Tia Nastácia. Lobato era fascinado pelas culturas afro-brasileiras, ao contrário dos modernistas que prolongaram o culto do indianismo romântico no século 20. Traz para o público infantil as histórias contadas por Tia Nastácia, que ele buscou em Sílvio Romero.
Graças ao Tio Barnabé, negro que mora entre o sítio e a floresta, faz os meninos serem conduzidos pelo Saci, um ser sincrético, mas fortemente carregado de forças africanas, no mundo tenebroso das lendas. Foi Tia Nastácia quem fez, fabricou, criou Emília. É Nastácia a grande vencedora do Minotauro. Nastácia que tem a última palavra no malfalado Caçadas de Pedrinho: “Negro também é gente, sinhá…”.
Nem todos lembram que o primeiro livro publicado por Lobato foi, em 1918, O Saci-Pererê: Resultado de um Inquérito, a partir de uma pesquisa promovida por ele, fascinado que era pelo personagem.
Esquecem-se de Negrinha, conto tremendo, de crueldade dolorosa, sobre uma pequena órfã negra de sete anos, pouco tempo depois do 13 de maio, um testemunho do abandono no qual foram deixados os ex-escravos: “O corpo de Negrinha era tatuado de sinais, cicatrizes, vergões. Batiam nele os da casa todos os dias, houvesse ou não houvesse motivo”.
Lobato era um iluminista e acreditava na racionalidade. Mas sabia que os homens são contraditórios. Por isso, no Sítio, os personagens são tão diferentes entre si. Odiava o angelismo, que deixa insossos muitos livros infantis e que transformou as adaptações na televisão – exceto as velhíssimas, na TV Tupi, por Júlio Gouveia – em bobagem conformista.
Lobato não evitava a crueldade. Um de seus livros mais assustadores é A Chave do Tamanho. Nele está a frase de Lobato que mais me marcou: “A humanidade forma um corpo só”. Sem hierarquias. Quando uma parte sofre, é o corpo inteiro que sofre.
Seus livros levam as crianças a descobrirem que o mundo nunca foi um mar de rosas. Emília é “sem coração”, como diz o Visconde, assinalando o caráter tirânico, ávido, cruel da boneca, capaz de surrupiar o que não é dela. Ela retruca: “Dizem todos que não tenho coração. É falso. Tenho, sim, um lindo coração – só que não é de banana. Coisinhas à toa não o impressionam; mas ele dói quando vê uma injustiça”. Os dois, Visconde e Emília, estão certos, porque ninguém é sem contradições.
Só quem não leu ou não compreendeu os livros infantis de Lobato pode julgá-los racistas. Não ensinam o moralismo sentimental. Antes, induzem à crítica, ao exame, à independência do pensamento individual e autônomo.
Dona Benta não tem autoridade por ser adulta – chega a virar uma tartaruga de óculos, em Reinações de Narizinho. Mas o que ela faz é instilar no leitor o conhecimento ativo, interrogador, inconformado, sedento. Nisto está o gênio insuperável de Lobato.
Suas obras caíram agora em domínio público. Boa nova. Que as crianças – sejam lá de que origem forem – se apaixonem por elas. Mais do que nunca, é de pensamento livre que precisamos.
* Jorge Coli, professor de história da arte na Unicamp, é autor de O Corpo da Liberdade

Canto Geral, de Pablo Neruda

A história da América Latina passa por essas páginas a partir da visão de mundo e da sensibilidade do poeta.
Por Jeosafá Fernandez*
“Devolva o Neruda que você me tomou e nunca leu”, diz a belíssima canção de Chico Buarque de Hollanda e Francis Hime.
Na internet é possível encontrar debates sobre o porquê de o livro de Neruda ter sido citado na disputa de separação de um casal; sobre a dor de quem pede, em tom magoado, o livro de volta; sobre a insinuação de que o livro não foi valorizado ou compreendido por quem o tomou emprestado etc. Porém, não seria desperdício indagar também qual o título do livro que o magoado amante pede de volta à amada de quem se separa.
A obra de Pablo Neruda, cuja relevância foi reconhecida com a premiação do Nobel de literatura em 1971, é extensa. De modo que só haveria um modo se saber exatamente a que título Chico Buarque e Francis Hime se referem.
Seria a Vinte Poemas de Amor e uma Canção Desesperada? Ou seria a Cem Sonetos de Amor? Ou seria ainda a Canto Geral? Qualquer que seja a obra, desde que a amada decida não restituir, o prejuízo será considerável.
Como o objeto desta resenha é o Canto Geral de Neruda, ela, a resenha, corporativistamente pode considerar, a título de hipótese, que o alvo da discórdia é mesmo este magnífico volume de poemas de amor pela América Latina e por seu povo.
Se a amada o tomou emprestado e não o leu mesmo – como lamenta a canção –, não sabe o que perdeu. Nessa condição, se vier a nunca restituí-lo, o agravo será ainda maior, pois sequer há a consciência da extensão do dano causado ao ex-namorado.
A canção termina antes que o dilema se resolva, quer entre os amantes, quer para os fãs dos dois músicos que, privados do título do livro citado em meio à discórdia, se veem forçados a tecer hipóteses sobre a obra de Neruda e sobre as imponderáveis razões do coração.
A tradução de Paulo Mendes Campos para este Canto Geral franqueia ao leitor um mergulho sem par na linguagem virtuosa desse poeta chileno que, nessa obra, aventura-se por tempos geológicos e históricos, em meio a uma geografia soberba em vegetação, em fauna, em minério e em sacrifícios:

“Todo o inverno, toda a batalha,
todos os ninhos do molhado ferro,
em tua firmeza atravessada de aragem,
em tua cidade silvestre se levantaram.

O cárcere renegado das pedras,
os fios submersos do espinho
fazem de tua aramada cabeleira
um pavilhão de sombras minerais.”
(“XIII. Araucária – Canto Geral do Chile”)
Em Canto Geral, o abundante vocabulário a descrever vida e chão, personagens e intenções, e a narração, a recompor fatos históricos, se embaraçam num exuberante entrelaçamento de raízes, troncos, galhos, folhas, planícies, montanhas, heróis, traidores…
O som e o ritmo dos versos embalam a audição e projetam na retina do leitor paisagens monumentais e cenas de contornos e volumes quase palpáveis, nas quais os dramas humanos se configuram e nas quais a água e o sangue jorram das cordilheiras e dos homens com igual generosidade.
A história da América Latina passa por essas páginas a partir da visão de mundo e da sensibilidade do poeta. Cotejar o que ele diz nesse Canto Geral com livros de história ou com conteúdos da internet é uma atividade instigante. Será que o poeta exagerou em algo?
FONTE: Neruda, Pablo. Canto Geral. Trad. Paulo Mendes Campos. 14 ed. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand Brasil, 2008.

 *Jeosafá Fernandez é Doutor em Letras pela USP e Pesquisador colaborador do Depto. de História da USP. Tem, entre seus mais de 50 títulos, O jovem Mandela, O jovem Malcolm X e o ciclo de romances paulistanos Era uma vez no meu bairro (Zonas Norte, Sul, Leste e Oeste).