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quarta-feira, 4 de julho de 2018

Professor Luis Felipe Miguel revela como foi o primeiro semestre do curso sobre o golpe



Para o cientista político, que começou com a disciplina na UnB, o movimento dos cursos contribui “para sacudir a letargia da universidade brasileira”
O professor Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília (UnB), pioneiro na ideia de montar um curso sobre o golpe de 2016, que tirou da presidência Dilma Rousseff e conduziu Michel Temer ao poder, postou no Facebook um balanço do primeiro semestre da disciplina. Acompanhe a íntegra do texto:
Chega ao final o semestre letivo da UnB e, com ele, o “famoso” curso sobre o golpe de 2016. Hora de fazer um balanço da experiência.
Aqui na UnB, depois das ameaças iniciais do então ocupante do MEC e da tensão gerada pela agitação da extrema-direita, a disciplina ocorreu sem sobressaltos. Na verdade, foi muito tranquila. Os estudantes bolsonarianos que haviam se matriculado nela nem sequer apareceram – creio que desistiram quando perceberam que não ia ter tumulto, mas debate e reflexão. Ainda assim, o começo do semestre foi marcante. Nunca imaginei que, em minha vida de professor, teria que dar aula sob esquema de segurança e temor de pancadaria. Creio que este é um dos efeitos mais lamentáveis da campanha fascista do “Escola Sem Partido”: transformar as salas de aula em espaço de hostilidade, em vez de construção conjunta de conhecimento e de discussão franca.
Mendonça Filho recuou de seus propósitos persecutórios, em parte pela péssima repercussão de sua desastrada iniciativa, em parte porque já havia feito a mise-en-scène para sua base radicalizada. Até onde sei, a UnB só recebeu um pedido de esclarecimento pro forma, do TCU, que foi acionado por um deputado retrógrado. “Até onde sei” porque a minha instituição assumiu toda a responsabilidade pela defesa jurídica da disciplina. Quero agradecer, uma vez mais, à reitora Márcia Abrahão e a seu vice, Enrique Huelva, pelo compromisso firme com a autonomia universitária.
Em outras universidades, porém, a situação foi mais tensa. Onde o Ministério Público está instrumentalizado pela extrema-direita e onde juízes ativistas altamente ideologizados atuam, houve tentativas sérias de censura e de bizarra interferência na universidade. O caso mais lamentável vem da Universidade Federal de São Carlos, em que a própria reitoria, controlada por um grupo reacionário, sustou a oferta de um curso sobre o golpe. Uma reitoria agindo contra a autonomia universitária – é de lascar.
A proliferação de cursos sobre o golpe indicou uma magnífica determinação da universidade brasileira para lutar pela preservação da sua autonomia, que é a condição básica para que possamos fazer bem nosso trabalho como docentes e pesquisadores e para que possamos devolver à sociedade, em forma de conhecimento e diálogo, aquilo que ela nos dá. Foi também, como tenho repetido, uma tocante demonstração de solidariedade que recebi de centenas de colegas, muitos dos quais sequer me conheciam, que se levantaram para dividir comigo o ônus das pressões e das perseguições. A todos, meu agradecimento mais sincero.
Graças a generosos convites, pude estar presente em vários dos cursos – e muitos outros convites eu infelizmente não pude aceitar. Somando a outros compromissos, do início de março para cá estive fora de Brasília por alguns dias em praticamente todas as semanas. Embora tenha sido sempre bem acolhido, encontrado pessoas queridas em cada cidade e participado de discussões proveitosas, confirmei que esta vida de globe-trotter não é para mim e jurei que, daqui para a frente, esse ritmo será diminuído.
O movimento dos cursos sobre o golpe é, a meu ver, amplamente positivo. Está contribuindo para sacudir a letargia da universidade brasileira. O saldo pessoal, para mim, da notoriedade indesejada que recebi, é mais ambíguo. Confesso que me diverti mais do que me zanguei com as absurdidades que, durante um punhado de dias, os jornalistas da direita despejaram sobre mim, sobre o curso, sobre a universidade. Meu favorito pessoal é o mentor do “Escola Sem Partido” dizendo que a disciplina sobre o golpe não era uma disciplina de Ciência Política porque não tinha nem Platão, nem Aristóteles na bibliografia.
A imprensa fez, como de costume, um papelão. Desde o pequeno site local que deflagrou o “escândalo” de um curso sobre o golpe “em uma universidade paga pelo governo” (sic) até os jornalões, que reforçaram a tese de que a educação tem que ser “neutra” e de que não se pode falar do golpe – e deram espaço nenhum para o contraditório. Por exemplo, quando os colegas da Unicamp escreveram para a Folha uma resposta a um texto feroz contra a universidade e o pensamento crítico, tiveram dificuldade até para arrancar a informação de que o jornal não iria publicá-lo.
Dentro da academia, foram pouquíssimos os que defenderam a censura ao curso. A posição mais comum, à direita, foi tentar desqualificar o programa e o professor, “anticientíficos” e “doutrinadores”, lamentar a presença de tais excrescências, mas reconhecer que, uma vez que eles existem, o direito de oferecer a matéria precisa ser garantido. Em alguns casos, colegas conservadores manifestaram suas divergências de forma ponderada, e suas defesas da liberdade de cátedra foram particularmente importantes. Das manifestações desonestas de colegas de direita, só uma me incomodou pessoalmente, vinda de um ex-comunista convertido ao fernandismo radical, que eu julgava que, apesar de seu reacionarismo galopante, ainda podia merecer respeito.
O pior, no entanto, é o movimento mais sutil de emparedar, a mim e a outros colegas mais intensamente envolvidos nos cursos pelo país afora, na posição de “militantes”, logo, desprovidos de respeitabilidade acadêmica. Trata-se de novo round do embate permanente contra a noção positivista de “neutralidade” nas ciências sociais. É uma manobra conveniente porque, ao nos desqualificar como interlocutores, permite que fujam do debate conosco. Mas a ciência que eu procuro fazer e que vi nos cursos sobre o golpe pelo Brasil afora não tem nada de “militante” (no sentido de movida por paixão partidária cega). Ela é, isto sim, engajada: assume sem rodeios seus valores ético-políticos, não nega que faz parte do mundo social que procura desvendar, recusa a ficção da neutralidade e, em seu lugar, coloca a honestidade de assumir o lugar de onde fala. É um engajamento que se combina com o rigor científico e do qual tem saído a maior e a melhor parte do conhecimento produzido nas ciências sociais.
O emparedamento almejado prejudica nossas posições no campo acadêmico e visa comprometer a continuidade de nosso próprio trabalho. Lembro que, nos corredores do último encontro da Associação Brasileira de Ciência Política, que ocorreu no momento em que o Senado aprovava o afastamento definitivo da presidente Dilma Rousseff, um “colega” particularmente desqualificado dizia o seguinte: “Esses aí que estão falando em ‘golpe’ vão mudar de discurso assim que seus financiamentos de pesquisa começarem a ser cortados”.
Parece que não há muito com o que nos ameaçar. Os financiamentos de pesquisa foram cortados em geral, pelas políticas de desmonte do investimento público pelo governo golpista, sem discriminar ninguém.
E, assim como sabemos que nenhum cientista social produziu conhecimento digno de nota aderindo ao golpe de 1964, hoje todos os pesquisadores mais respeitáveis se alinham ao entendimento de que em 2016 ocorreu uma ruptura ilegal da ordem constitucional – ainda que aplicando ênfases diferenciadas. Uma vez mais, a proliferação das disciplinas sobre o golpe, que reuniram, como já disse antes, um verdadeiro dream team das ciências humanas no Brasil, foi essencial para marcar esta situação.
Fonte: REVISTA FÓRUM

Internacional - América Central - Por que latino-americanos insistem em migrar para os EUA?

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Foto: Reuters/Latinstock
A realidade da violência deixa poucas escolhas além da emigração

por Anna-Catherine Brigida e Heather Gies, em San Salvador (El Salvador) 
Em El Salvador os jovens são especialmente vulneráveis às ameaças crime organizado e violência é a força motora da para a saída do país
Diante do centro de atendimento a migrantes em San Salvador, os olhos de Berenice Cruz, 19 anos, movem-se nervosamente antes que ela sussurre que fugiu de El Salvador “por causa do crime”. Quase toda a sua família no leste do país pertence a um bando criminoso, diz Cruz, mas ela não quer se envolver. O bando ameaçou matá-la, por isso ela tentou fazer a perigosa viagem até Reno, em Nevada (EUA), onde mora uma tia e ela teria proteção garantida. Não conseguiu.
“Se eu voltar para onde moro, eles vão me matar”, diz ela, pouco depois de retornar ao seu país natal, vinda de um centro de detenção em McAllen, no Texas, onde esteve detida depois de cruzar a fronteira. Cruz é um dos 11.748 salvadorenhos deportados dos Estados Unidos e do México desde o início deste ano. 
Os migrantes sofreram ataques incansáveis desde que Donald Trump começou sua campanha para presidente. A política das autoridades americanas de separar as crianças dos pais em nome de uma estratégia de imigração de “tolerância zero” provocou indignação na semana passada, de Washington a San Salvador.
Trump acabou forçado a recuar em um decreto que, segundo os críticos, ainda não vai longe o suficiente. Mas sua política continua a ignorar as difíceis realidades de milhares de migrantes que fogem da violência e da miséria no chamado Triângulo Norte – El Salvador, Guatemala e Honduras, países centro-americanos assolados pela corrupção, pelo crime organizado e a impunidade.
“Eles declaram (El Salvador) o país mais violento do mundo, mas depois dizem que não nos darão refúgio, asilo ou qualquer tipo de proteção por motivos de violência”, disse Aquiles Magaña, secretário do Conselho Nacional para Proteção e Desenvolvimento de Pessoas Migrantes, conhecido como Conmigrantes, criticando a “mudança drástica” de Trump nas políticas de asilo como hostil, racista e contraditória. 
O índice de assassinatos em El Salvador caiu no ano passado em comparação com 2015 e 2016, mas continuava alto, com mais de dez homicídios por dia, em média, em 2017. O país de 6 milhões de habitantes é um dos mais letais do mundo fora das zonas de guerra. As guerras por território entre bandos rivais conduzem à violência e perpetuam a desigualdade e a insegurança.
Esses bandos nasceram em Los Angeles e foram transportados para as ruas de El Salvador com as deportações maciças em meados dos anos 1990 de migrantes que fugiram da guerra civil no país, que durou 12 anos. Não é de surpreender que 9 em cada 10 famílias que têm crianças em El Salvador esperem migrar no futuro.
Iris Martínez, 40 anos, deixou El Salvador há duas semanas, com a intenção de escapar da intimidação dos bandos porque presenciou um assassinato dois anos atrás. “Eu sempre recebi ameaças”, diz ela depois de sair de um ônibus com 35 deportados detidos no México. Martínez pretende fazer a rota novamente, desta vez com documentos para solicitar asilo, e reunir-se a um de seus três filhos que já estão nos Estados Unidos.
Casos como o de Iris Martínez enfrentam ainda maior incerteza depois que o secretário da Justiça dos EUA, Jeff Sessions, ordenou, no início deste mês, que os juízes de imigração do país neguem asilo na maioria dos casos de violência doméstica e de gangues.
Em uma sexta-feira recente, 93 migrantes chegaram em El Salvador vindos dos EUA. Alguns tinham vivido lá por anos ou décadas. Outros foram apanhados imediatamente ao cruzar a fronteira. Em seu país, os deportados são recebidos com um sorriso dos funcionários públicos, um suco de laranja e um sanduíche, antes de ser entrevistados por autoridades e seguirem com todos os seus pertences em uma pequena sacola vermelha.
Mas a volta ao lar não é tão fácil. Há quase consenso entre os deportados no centro de que as políticas de Trump não impedirão que os migrantes sigam para o norte. “Processar quem pede asilo por cruzar a fronteira, deter famílias que buscam proteção e limitar os critérios para conceder asilo são atos cruéis e desumanos, e ignoram as condições que estão levando muitas mulheres, crianças e famílias centro-americanas a fugir de suas comunidades em busca de segurança”, disse Adriana Beltrán, do Escritório de Washington para a América Latina. 
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Segundo estatísticas do governo de 2016, quase 75% dos adultos deportados citaram fatores econômicos como motivo para deixar seu país, onde mais de um terço da população vive na pobreza. As razões para as crianças deportadas se dividiam quase igualmente entre motivos econômicos, insegurança e reunificação da família
Tessie Borden, porta-voz de uma organização sediada em Los Angeles, a Clero e Laicos Unidos pela Justiça Econômica, contestou as rígidas distinções que colocam os motivos econômicos para migração como menos válidos que as preocupações de segurança. “Esses fatores estão todos conectados”, disse ela. “O tipo de vida que essas pessoas levam não lhes deixa muitas opções, para começar.”
Josué, 18 anos, outro devolvido a El Salvador, foi para os EUA com sua mãe quando tinha 7 anos, em busca de “um futuro melhor”. Ele diz que pretende tentar a travessia da fronteira novamente assim que possível, esperando fazê-lo em tempo para o nascimento de seu segundo filho, em julho. Ele se diz mais preocupado por estar em El Salvador do que com as políticas de Donald Trump. “Este não é um lugar seguro”, afirma, mudando do espanhol para o inglês. “Ser jovem aqui é um crime.”
Os jovens são especialmente vulneráveis às ameaças e à violência dos bandos criminosos, que são as forças motoras de seu deslocamento em El Salvador, segundo um relatório da organização de direitos humanos Cristosal. “Muitas vítimas da violência não encontram proteção das autoridades”, disse Beltrán. “Na verdade, muitas temem a polícia tanto quanto os bandidos.”
Outro jovem, Enrique Valle, 29 anos, voltou de Los Angeles para El Salvador recentemente. Ele diz que seu país é lindo, mas “há lugares aonde não se pode ir, principalmente se for jovem”. O pai de Valle foi assassinado por bandidos há seis anos, quando não pagou a extorsão cobrada por sua padaria. A extorsão é generalizada em El Salvador, afetando nove em cada dez pequenas empresas, segundo o Conselho Nacional de Pequenas Empresas de El Salvador.
Enfrentando ameaças de gangues, Valle fugiu. Ele diz que em El Salvador não tem futuro – nem seu filho de 2 anos que deixou em Los Angeles. Passar mais que alguns dias com seu único irmão no bairro dominado por bandidos é perigoso demais, por isso Valle rumará para o norte em breve. “Não sei se vou conseguir cruzar novamente”, disse. “Mas vou tentar por meu filho e por minha mãe. Não dá para viver aqui do jeito que está.”
Fonte: CARTA CAPITAL

A hora e a vez de um feiticeiro no cinema

“Se tivesse a idade dos rapazes do cinema novo creio que não escreveria mais: faria cinema”. Essa frase dita por qualquer ser humano, portador ou não do dom da escrita, brasileiro ou estrangeiro, revela o quanto o cinema pode ser sedutor. Essa frase dita – como foi dita – por Guimarães Rosa, em confidência a Glauber Rocha, revela o quanto o cinema, e o poder da imagem que carrega, é uma tentação diabólica até para o maior de nossos feiticeiros imbuído do poder da palavra.
Por Evandro Souza*
Ilustração: Helena Enne Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem – Ilustração: Helena Enne Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem – Ilustração: Helena Enne
Felizmente, o “rapaz” Guimarães Rosa nunca esteve diante desse dilema e a câmera nunca foi uma alternativa à sua escrita. Se o Brasil perdeu a oportunidade de ter o seu John Ford, nunca saberemos, mas os textos do maior escritor em língua portuguesa do século 20 estão preservados pela generosidade do destino. Se o cinema realizado às sombras do Monument Valley proporcionou por meio da imaginação de um diretor o mito de criação da grande nação do norte no Velho Oeste, o sertão mítico de Guimarães Rosa é a vereda que nos leva com muito mais verdade, via literatura, até a fronteira entre o corpo e a alma brasileira.
Embora o “cineasta Guimarães Rosa” tenha sido apenas o devaneio de um mestre de uma arte milenar, a obra de Rosa não escapou à fome dessa nova forma de arte que devora desde seu nascimento suas irmãs mais velhas, como o teatro, a música, a pintura e, entre outras, a literatura.
O cinema brasileiro, que em princípio cogitou encontrar nos textos de Guimarães Rosa aspectos “infilmáveis”, logo tentaria superar essa timidez. Em 1954 um ainda jovem e desconhecido François Truffaut – que viria a ser um dos pais da nouvelle vague – no célebre artigo “Uma certa tendência do cinema francês”, ponderava se existia realmente em algum romance cenas infilmáveis e se cenas assim decretadas seriam infilmáveis para “todos”. No caso do universo literário roseano, ao menos para um autor, a saber, Roberto Santos, o “infilmável” não se impôs.
“A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, filme de 1965, baseado no conto homônimo e última novela da coletânea “Sagarana”, livro de estreia de Guimarães Rosa, além de figurar na galeria das maiores obras da cinematografia brasileira, talvez seja a única tentativa de traduzir a literatura de Rosa para a tela que logrou êxito. E diversas outras tentativas foram feitas. O próprio “Nhô Augusto” ganhou em 2011 um novo longa metragem sob o mesmo título. Produção premiada, pomposa, tecnicamente competente e medíocre, pode ser ignorada juntamente com as outras aproximações cinematográficas sem dor na consciência por parte de quem aprecia a obra de Guimarães Rosa e é cioso de seu tempo. É possível encontrar, sim, diversos documentários interessantes sobre Rosa e sua literatura. Mas, no âmbito ficcional, para além da obra de Roberto Santos, apenas o deserto, embora o cinema brasileiro que se auto-congratula possa não concordar.
Obviamente, o diálogo entre o sertão de Rosa e o sertão de Glauber não entra nessa solução ácida. Muita tinta já foi gasta para descrever o quanto “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964, é o mais próximo que o cinema chegou de Guimarães Rosa, sem fazer nenhuma tentativa de tradução textual direta. Mas o sertão revolucionário de Glauber, que quer virar mar, pertence a Glauber. E o sertão oriundo de um mar de longa-duração de Rosa, pertence a Rosa. O grande feito de Roberto Santos em seu filme de 1965 foi conseguir traduzir diretamente esse último do universo da palavra escrita para o da imagem e do som. E isso não é pouca coisa.
Como toda estória que vale a pena ser contada, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” é um conto universal. Sem perder a sua essência, a trama poderia se desenrolar entre samurais no Japão feudal e ser levada às telas por um Kurossawa. Poderia ser um western americano como “Rastros de Ódio” (1956) embora John Wayne não seja tão dramático quanto Leonardo Villar no papel de Augusto Matraga, ou ainda algo como a raiva contida e a busca de redenção de Clint Eastwood em “Os Imperdoáveis” (1992). Roberto Santos soube preservar esse valor universal do conto de Rosa sem cair na tentação de utilizar um tesouro literário para expressar o vazio da classe média urbana como não é raro em um cinema feito pela elite intelectual e dado a arroubos subjetivistas.
O filme de Santos, embora preserve essa capacidade de conto inteligível em qualquer lugar onde exista ser humano e, por consequência, disputa, violência, paixão e tragédia, não deixa de ter o seu brilho próprio como expressão cinematográfica à parte da fonte de genialidade originária. A música de Geraldo Vandré, por exemplo, que permeia o filme, causa um estranhamento e acrescenta camadas de interpretação que leva a resultado muito diverso do que um diretor tacanho faria ao descarregar modas de viola no que imaginaria ser um conto regionalista. Tão bom quanto a viola em uma canção sobre astronautas e galáxias, como se ouviu em “2001” – dos Mutantes e não de Kubrick – o violão de Vandré deixa claro que o filme não está alienado de seu tempo histórico. As estrofes do “Réquiem Para Matraga”, que abrem e fecham o filme, revelam um diretor atento ao desenrolar dos acontecimentos à sua volta ainda na metade da década de 1960.
A decupagem com liberdade de câmera, a montagem que dá um ritmo de trote lento à estória com algumas galopadas esparsas, a literalidade de alguns diálogos ora mais engessados, ora mais livres e menos textuais, o aspecto preto e branco com personagens pedidos nas sombras muitas vezes, marcam um estilo que pode causar estranhamento ao espectador jovem não iniciado em coisas velhas e boas. É “ferrugem em bom ferro” diria Joãozinho Bem-Bem. Ainda em 1965 ao ver apenas duas sequências completas do filme de Roberto Santos na I Semana do Cinema Brasileiro em Brasília, o grande crítico Paulo Emílio Salles Gomes disse ter se sentido diante do melhor já visto em cinema brasileiro. E não por acaso o filme foi o vencedor do festival onde figuraram obras como “Menino de Engenho” de Walter Lima Jr. e “São Paulo, Sociedade Anônima” de Luís Sergio Person.
O sucesso de Roberto Santos na empreitada onde tantos outros fracassaram antes e depois dele ao se aventurarem com suas câmeras no sertão roseano, se deve, muito provavelmente, à busca de um olhar a partir de dentro e não de fora. Um diretor que se porta como o sacerdote que entra no santuário com a humildade de um aprendiz afastando qualquer postura didática e professoral.
Esse respeito com o material que tinha em mãos foi mostrado por Roberto Santos uma vez mais em 1968 no curta-metragem “A João Guimarães Rosa”, produzido pelo Departamento de Cinema da USP, onde o diretor foi convidado por Rudá de Andrade a lecionar como forma de se preservar da repressão política que assolava o país. Agora, em um tom muito mais lírico do que narrativo como no filme de 1965 (embora no longa-metragem possam ser encontrados belos momentos de lirismo como a luta de Matraga para domesticar o burrinho Valente), o curta-metragem feito a partir de fotografias de still é Guimarães Rosa em poesia e imagem.
Se a vez de Augusto Matraga – ou de algum outro elemento da herança deixada por Guimarães Rosa à cultura universal – há de chegar outra vez ao cinema, é incerto. Talvez o consiga um diretor que tenha o espírito de repetir o feito de Roberto Santos nem que “seja à porrete”, sem a utilização de editais como bilhete premiado para a realização de cinema divorciado de público, ou sem as mãos mercadológicas que jamais poderiam captar a riqueza da obra de Rosa em um enlatado para ser exibido fraturado em quatro partes na TV aberta.
Roberto Santos foi um privilegiado. Em 1987 tentou mais uma vez a sorte. Dessa vez com Machado de Assis ao exibir seu filme “Quincas Borbas” no Festival de Gramado. Foi um fracasso retumbante. Ao voltar de Gramado, com esse insucesso na bagagem, Roberto Santos morreu de infarto no aeroporto de Guarulhos. A generosidade dos deuses do cinema e da literatura não chegam a tanto. Obter a graça do Feiticieiro e do Bruxo seria glória demais para um homem só.
*Evandro Souza é bacharel em História pela USP, aventureiro em expedições arqueológicas pelos sertões brasileiros e espectador de cinema

Primeiro palhaço negro


Era difícil encontrar uma pessoa no Rio de Janeiro entre o fim do século 19 e o início do 20 que não conhecesse o Circo Spinelli – e, principalmente, sua maior atração, Benjamin de Oliveira. O palhaço, acrobata, instrumentista, dramaturgo, produtor e ator era um dos artistas mais populares da capital do País. Foi o primeiro palhaço negro brasileiro. Há quem defenda que tenha sido o primeiro do mundo.
Nascido na mineira Pará de Minas em 1870, fugiu de casa aos 12 anos para seguir o Circo Sotero. No picadeiro, aprendeu as artes do trapézio e da acrobacia. Depois, migrou para outros circos e, aproveitando-se de que um dos palhaços havia ficado doente, tomou seu lugar.
Com o tempo, Benjamin passou a elaborar os próprios espetáculos. É considerado um dos precursores do circo-teatro no País. Escreveu peças como Vingança Operária, Matutos da Cidade e A Noiva do Sargento. Encenou até Shakespeare no picadeiro. Entre seus admiradores estavam o dramaturgo Artur de Azevedo e o presidente Floriano Peixoto.
Benjamin também gravou sete discos, deu espaço para Catulo da Paixão Cearense se apresentar e, em 1908, dirigiu o curta-metragem Os Guaranis, um dos primeiros filmes do cinema brasileiro.
“Foi o mais ousado exemplo de fusão cultural negro-americano-europeu jamais tentada em qualquer parte do mundo”, exalta o rigoroso pesquisador José Ramos Tinhorão sobre uma peça do artista. Benjamin fez suas palhaçadas até 1947, quando se aposentou dos picadeiros aos 77 anos.
Autor Brasil Cultura