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segunda-feira, 12 de março de 2018

Sem base de dados, Brasil reage mal aos casos de abuso sexual infantil

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"Não é possível afirmar se os casos de pedofilia cresceram ou diminuíram nos últimos anos no Brasil", atesta especialista

Entrevista - Herbert Rodrigues

Para pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, a subnotificação pode piorar no contexto do teto de gastos e corte nas políticas sociais.
teto para os gastos públicos imposto para os próximos 20 anos, uma das medidas aprovadas pelo governo Temer, deve prejudicar ainda mais as políticas de proteção integral das crianças e adolescentes. A análise é do sociólogo e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, Herbert Rodrigues, autor do livro "A pedofilia e suas narrativas".
“O congelamento das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário”, comenta o pesquisador que mostra preocupação, sobretudo, com o enfrentamento aos casos de abuso sexual infantil. "Com os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos as principais vítimas serão as crianças", afirma.O contexto, já fragilizado, preocupa o especialista em pontos específicos, como a subnotificação dos casos. “Além de o Brasil ter uma alta incidência de casos - por ano, há uma média de 50 mil casos de estupros e 70% das vítimas são crianças e adolescentes -, o País sofre com a não notificação ou subnotificação dos casos”, explica.
A situação ocorre pela falta de uma base unificada de dados, o que inviabiliza um diagnóstico preciso da situação atual das crianças e adolescentes e ações efetivas de prevenção aos casos de abuso sexual. Em entrevista a CartaCapital, o pesquisador fala sobre a falta de investimentos na área, os entraves para a criação de políticas protetivas específicas e a necessidade de priorizar o tema na agenda pública.
Carta Capital: Qual a situação do Brasil diante dos casos de abuso sexual contra crianças e adolescentes?
Herbert Rodrigues: A cada ano, um número inestimado de crianças e adolescentes são abusados no Brasil. No entanto, ninguém é capaz de dizer, com precisão, quantos eles são.

A situação do Brasil é bastante crítica por dois motivos: em primeiro lugar, o número de casos é muito alto. Há, em média, 50 mil estupros registrados por ano. Um levantamento do Ipea, feito com dados do Sinan, aponta que cerca de 70% das vítimas são crianças e adolescentes.
Em segundo, muitos casos não são notificados, ou são subnotificados. Quando envolve crianças, a subnotificação é ainda maior. Normalmente, os dados sobre a vitimização não-fatal de crianças e jovens são inexistentes.
Como no Brasil não há uma base unificada de dados, é praticamente impossível ter uma noção abrangente dos casos de abuso sexual que possibilite um diagnóstico preciso da situação atual das crianças e adolescentes. Acredito que uma boa base de dados estatísticos poderia auxiliar o Estado e a sociedade na elaboração de políticas públicas voltadas ao abuso sexual infantil, sobretudo de prevenção.
CCPor que o País não consegue unificar seus dados de casos de abuso sexual?
HR: Porque as estatísticas são feitas com base em dados coletados a partir do registro dos boletins de ocorrência policial, no Sistema de Informações de Agravo de Notificação do Ministério da Saúde (Sinan), nos fornecidos pela Secretaria de Direitos Humanos (SDH) da Presidência da República, via Disque 100; nos casos registrados pela justiça a partir dos julgamentos, nos divulgados pela mídia e, mais recentemente, no banco de dados criado pela 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo.

Isso ocorre pela ausência de coordenação e de articulação entre os setores do poder público e as entidades da sociedade civil preocupadas com essa questão. Não há investimento em tecnologia para consolidar a base de dados sobre os casos de abuso sexual infantil, gerando um verdadeiro caos no controle das denúncias.
CC: Quais são os impactos decorrentes disso?
HR: Não é possível, por exemplo, afirmar se os casos de pedofilia cresceram ou diminuíram nos últimos anos no Brasil.

Infelizmente, parte considerável da sociedade brasileira parece acolher certas respostas dadas pelo Estado do ponto de vista penal, mas é preciso olhar para a totalidade das ações de outra maneira e buscar formas de proteger as crianças antes que as agressões ocorram. Sem informações precisas e um fluxo racional e consolidado de dados, torna-se impossível elaborar políticas de prevenção, de atendimento e de combate aos abusos sexuais infantis.

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CC: Como devem ser elaboradas as políticas de prevenção?
HR: Não é possível pensar em políticas generalistas, como saúde, educação e segurança, que são essenciais, para lidar com crianças e adolescentes. É preciso, sobretudo, criar políticas específicas voltadas aos problemas enfrentados pelas crianças para garantir a segurança social e econômica das próximas gerações.

O enfrentamento aos casos de abuso sexual deveria ser tratado como uma dessas políticas específicas. E isso, infelizmente, não vai ocorrer nos próximos anos. Com o congelamento (contingenciamento) das despesas públicas e os cortes nos investimentos nas áreas sociais por 20 anos, as principais vítimas serão as crianças.
Esse tipo de decisão política deve provocar um retrocesso nos avanços conquistados pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e pelas convenções internacionais das quais o Brasil é signatário.

CC:  Qual a situação do Brasil se comparada a outros países?
HR: Segundo levantamentos realizados por organizações internacionais, como Save the Children e Nações Unidas, o Brasil ocupa uma posição intermediária em termos de violência sexual contra crianças. No entanto, os dados não são animadores.

Estar mais bem posicionado em relação aos países africanos e alguns países asiáticos e latino-americanos pobres não significa que as crianças brasileiras estejam protegidas de abuso sexual. Por causa do tamanho e da riqueza do país, é intolerável que o Brasil tenha o nível de violência sexual infantil que atualmente apresenta.
CC: Como você avalia a atuação das redes de proteção das crianças e adolescentes e da Justiça brasileira no acompanhamento dos casos?
HR: No livro A Pedofilia e suas narrativas, fruto da minha tese de doutorado em sociologia pela USP, afirmo que as políticas de proteção às crianças e aos adolescentes têm raízes históricas no Brasil.

A assistência à infância está ligada ao processo de institucionalização das crianças por parte do Estado brasileiro, cuja preocupação, desde o século XIX, girou em torno de crianças de famílias pobres. Durante décadas, as práticas de atendimento à infância foram relativamente as mesmas: encaminhar crianças abandonadas e delinquentes às instituições fechadas de internação.
Com o ECA, em 1990, o Estado reconhece, por meio de lei, seu papel na proteção integral à infância e a criança como sujeito de direitos. O estatuto instituiu uma série de dispositivos, visando protege-la integralmente. Entre eles, destaca-se o Conselho Tutelar como órgão executor de funções públicas responsáveis por zelar pelos direitos da criança e do adolescente em cada município, composto por pessoas representativas da sociedade civil da própria região. 
justiça brasileira (incluindo o Ministério Público) deveria ocupar um papel de protagonismo, aplicando leis e promovendo a fiscalização do funcionamento efetivo das políticas públicas descritas no ECA. 
No entanto, seu foco ainda é criminal, quando deveria haver um investimento no sistema de proteção social (em diversas áreas, como saúde, educação e Justiça) em desenvolver métodos de investigação para identificar e diagnosticar o problema, além de sugerir tratamentos às vítimas e também aos pedófilos antes que os abusos ocorram.
Portanto, cabe ao sistema de justiça, incluindo a polícia, investigar os casos, julgar e punir os agressores de acordo com a lei. Cabe ao sistema de saúde, principalmente aos médicos psiquiatras, realizar o diagnóstico correto dos casos e encaminhar o tratamento adequado para cada caso.
E aos dois sistemas em conjunto monitorar as ações dos indivíduos que apresentam esse tipo de transtorno, que tenha ou não cometido algum crime, para proteger as crianças de possíveis abusos.


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Para pesquisador, há muita ênfase no adulto abusador e pouco investimento nas crianças
CC: Como você avalia as políticas públicas brasileiras voltadas ao tema? São eficientes?
HR: Não há efetivamente políticas públicas específicas voltadas ao enfrentamento dos casos de violência sexual infantil no Brasil. Há casos isolados, frutos de políticas de governos nos três níveis de poder, municipal, estadual e federal. Mas não há um plano estratégico de longo prazo coordenado pelo Estado com envolvimento da sociedade social.

Por exemplo, se observarmos as ações da Polícia Federal e da 4ª Delegacia de Repressão à Pedofilia de São Paulo, o foco está na apreensão de material de pornografia infantil. Encontramos no Brasil ações policiais e legislativas de caráter paliativo que buscam combater o abuso sexual infantil por meio de apreensão de computadores de usuários de pornografia infantil. Isso é importante porque o material pornográfico é fruto de abuso sexual, mas não é o suficiente.
Não há políticas públicas estratégicas voltadas à prevenção e ao atendimento das crianças vítimas de abuso. Há muita ênfase no adulto abusador e pouco investimento nas crianças vítimas de abuso, que são as mais prejudicadas. É interessante observar que o abuso sexual infantil representa um tipo de crime que a sociedade brasileira abomina em abstrato, mas o tolera na realidade.
Aparentemente, tolera-se o abuso sexual infantil porque a falta de denúncia e o silêncio são as práticas mais adotadas. E, apesar de a sociedade condenar teoricamente o abuso sexual infantil, a resposta a cada caso depende muito de quem está sendo acusado e de quem foi abusado. Em muitas circunstâncias, é mais fácil negar o que aconteceu e culpar a própria vítima pelo abuso.


CC: Quais desafios precisam ser superados?
HR: Na legislação brasileira não existe, nominalmente, o crime de pedofilia, mas há um esforço por parte de alguns políticos e operadores do direito em qualificar a materialidade do ato, uma vez que fantasia não é crime. No livro A Pedofilia e suas narrativas, afirmo que o processo de criminalização da pedofilia no Brasil é um fenômeno recente, ainda em curso, que ocorreu no país na virada do século XX para o século XXI.

A instalação da CPI da Pedofilia no Senado em 2008 – e seus resultados – pode ser considerada a ocasião, digamos, de calcificação da categoria pedofilia e, consequentemente, do sujeito pedófilo como criminoso, ou pelo menos a tentativa de fazê-lo. A pedofilia, até então entendida como categoria médico-psiquiátrica, ou um tipo de conduta sexual desviante e moralmente reprovável, passa a ter tratamento jurídico-criminal amparado por arsenal de leis. É a partir desse momento crucial que o Estado se empenha em monopolizar a categoria pedofilia.
Podemos dizer que legislação, leis e aparatos legais não são problema no Brasil, que parece estar bem amparado juridicamente. Por esse motivo, acreditamos que o processo recente de criminalização da pedofilia tem outra natureza.
O Estado brasileiro claramente optou por privilegiar uma política de “caça aos pedófilos”, insistindo na prática de endurecimento das leis e no aumento das penas, em vez de garantir políticas públicas e ações integradas que visassem atender às vítimas de agressão sexual, melhorar as condições de vida das crianças e inibir a ação de possíveis agressores. Os maiores desafios estão em defender as crianças de qualquer forma de abuso. Mas isso não parece ser uma preocupação no país atualmente.
Fonte: CARTA CAPITAL

Cultura - Quadrinhos - As batalhas de Palmares

Angola Janga
por Jotabê Medeiros 
Mais extensa HQ já publicada no País, Angola Janga, de Marcelo D’Salete, é um grande épico gráfico.
Desde a Serra da Barriga às grutas do coração, como na canção de Gilberto Gil, o ilustrador, quadrinista e artista plástico paulistano Marcelo D’Salete, de 39 anos, tem examinado as circunstâncias históricas, políticas e sociais da vida do negro brasileiro. D’Salete usa, para isso, um veículo, ao menos no Brasil, pouco afeito a combates dessa natureza: as histórias em quadrinhos.
Mestre em História da Arte pela Universidade de São Paulo (USP), professor da Escola de Aplicação da USP, D’Salete estreou há dez anos com um álbum chamado Noite Luz, pela editora Via Lettera. Mas foi em 2014, com Cumbe (Editora Veneta), que ele despertou a atenção internacional. Eleita uma das melhores HQs daquele ano no Brasil, indicada ao prêmio HQ Mix (o mais longevo e crível do gênero) a obra foi publicada depois em Portugal, França, Áustria, Estados Unidos e Itália.
Este ano, no entanto, com o lançamento de Angola Janga, um catatau de 400 páginas sobre o Quilombo dos Palmares, Marcelo D’Salete entra definitivamente para a história das HQs nacionais. Primeiro, porque se trata do mais extenso álbum em um único volume já publicado no País. Angola Janga, na língua banto quimbundo, quer dizer “pequena Angola”.
Era como os negros do século XVI se referiram ao conjunto de mocambos que ficou célebre como Palmares, na região da Serra da Barriga, em Alagoas. Segundo, porque Angola Janga, fruto de uma pesquisa de 11 anos, é um vigoroso romance construído nos interstícios da História, com os personagens de um século de existência de Palmares ganhando contornos shakespearianos, dramatúrgicos, carnais.
Examinando documentos (cartas de governadores, militares, clérigos, senhores de engenho ou escritores) sobre o período, D’Salete deu contornos ficcionais e também humanos às biografias dos protagonistas da saga. Mais importante: ele não os poupou dos vícios e das contradições.
Quilombo dos Palmares foi criado por escravos fugidos de propriedades rurais e engenhos no século XVII e durou mais de um século no Nordeste. Chegou a ter cerca de 18 mil habitantes, numa época em que a capital de Pernambuco, Recife, contava 20 mil. Resistiu a mais de 100 anos de batalhas contra soldados portugueses e holandeses e sanguinários bandeirantes paulistas.
Canudos, na Bahia, mais célebre na historiografia, tinha 15 mil sertanejos à volta de Antonio Conselheiro. Definindo como “formidável” a saga de resistência de Palmares por mais de um século, D’Salete diz que considera importante fazer essa história, ainda restrita a um círculo de pesquisadores, historiadores e ativistas da militância negra, ser conhecida de um público maior. “Até a Abolição, Palmares era tratado como uma história de criminosos. Era disseminada sempre a partir do medo, de algo que devia ser evitado. Ganhou outra perspectiva graças à ação de jornalistas negros”, diz o quadrinista.
Mesmo durante o abolicionismo, as discussões procuravam evitar que o tema Palmares chegasse aos escravizados, como forma de evitar um sentimento revolucionário. E, apesar da destruição violenta de Palmares, em 1694, com a derrubada do maior dos seus mocambos, Macaco, é sempre preciso lembrar que os quilombos, como prática e estratégia, existiram em todo o Brasil, de São Paulo a Minas, da Bahia a Pernambuco.
Angola Janga, de arte preciosista, realça os mitos dos personagens centrais de Palmares, como Ganga Zumba, Ganga Zona e Zumbi, mas a ideia do livro é ir além das lideranças. Assim, como em Os Sertões, de Euclides da Cunha, a geografia e a descrição do homem comum são também alçadas à qualidade de protagonistas. Os palmaristas cultivavam cana, como os donos de engenho, além de feijão, milho, batata.
Marcelo D’Salete
O quadrinista Marcelo D’Salete: “Para entender o Brasil, é preciso entender a história do negro no Brasil” (Divulgação)
Trocavam mantimentos com os proprietários rurais que combatiam. A infância de Zumbi, parte nebulosa da história e tratada de passagem apenas em alguns estudos, como o do historiador Décio Freitas (autor de Palmares, a Guerra dos Escravos), materializa-se na história em quadrinhos. Zumbi, um bebê chamado Francisco, cujos pais foram mortos na destruição de um mocambo e os algozes levaram e deixaram aos cuidados de um padre.
Adolescente, rebelou-se e fugiu, tornando-se um dos maiores mitos da história, um líder nato. Seu braço direito, António Soares, predestinado a ser também um traidor do porte de Joaquim Silvério dos Reis, ganha também estofo de personagem literário. Todos os capítulos abrem com trechos de documentos, cartas e trechos de publicações que enriquecem a narrativa.
Os termos da proposta do acordo de paz da Coroa portuguesa ao líder de Palmares, Ganga Zumba, aceita por este último (e rejeitada por Zumbi), é um desses excertos. Caçado e escapando milagrosamente de diversos ataques, Zumbi vira lenda. Quando, finalmente, é morto, em 20 de novembro de 1695, o decapitam para exibir sua cabeça em praça pública e desmentir sua imortalidade.
“Os trechos de documentos não funcionam como explicação. Eles dialogam com o capítulo, o leitor tem de fazer a sua correlação”, afirma o desenhista. “Há fatos que têm documentos fartos e outros não. A ficção comparece quando eu me ponho a tentar imaginar as razões para determinado personagem ter agido daquele jeito.”
Angola Janga não evita a controvérsia histórica. Palmares também tinha escravidão? “A gente tem de pensar que é algo do século XVII. Os conceitos têm de ser examinados cuidadosamente, tem de saber olhar naquele tempo. Claro que não pode ver o mocambo simplesmente como o lugar da liberdade, tem de saber refletir”, diz o autor.
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“A origem dos negros ali era primordialmente banto, cuja organização social se dava a partir de lideranças que conheciam, os reinados. Eram reis, mas tinham conselhos dos mais velhos. Mas, certamente, não é algo próximo da democracia como a gente entende hoje. E a liberdade não era a que conhecemos após a Revolução Francesa”, pondera D’Salete.
Os palmaristas atacavam engenhos e faziam cativos que levavam para o quilombo. “Mas eram pessoas que se organizavam de forma autônoma para gestar sua própria forma de governo. E não há registro de alguém que tenha voltado para a escravidão das fazendas e dos engenhos. Não dá para dizer que era a mesma coisa. Não podemos nem mesmo usar o termo escravidão em relação a eles. Palmares era um local muito bélico, em guerra, uma condição de alerta constante”, diz o quadrinista.
Cumbe
Os gibis Cumbe (foto) e Encruzilhada abriram o mercado internacional ao autor (Imagem: Divulgação)
Na ficção dos quadrinhos de D’Salete, há uma tensão e uma estetização da violência que alcança dimensões épicas. A chegada do bandeirante Domingos Jorge Velho, com sua lógica animalesca, para combater os escravos, joga o conflito num abismo ético. Os articulistas faziam sua parte para circunscrever o ambiente político. O padre Antonio Vieira alertava para o perigo de se fazer acordo com os palmaristas.
Zumbi cresce como líder, numa construção que se assemelha ao mito de Virgulino Ferreira, o Lampião. Marcelo D’Salete considera que a chegada de Angola Janga coincide com um momento em que os quadrinhos brasileiros estão conquistando um espaço de afirmação.
“As HQs estão contando histórias de maior fôlego, artistas como Marcelo Quintanilha, Rafael Coutinho, André Diniz. São obras sobre o nosso País, sobre a nossa realidade, trabalhos que estão despertando interesse fora do Brasil.” Identificado com o ativismo, ele refuta a ideia de que seu enfoque seja principalmente a história do negro na vida brasileira.
“Meu foco é a história do Brasil como um todo. Mas, para entender o Brasil, você precisa entender a história do negro no Brasil”, afirma. Influenciado inicialmente pelo hip-hop de RZO, Racionais MC’s, pelo samba de Geraldo Filme, pela literatura de Luís Fulano de Tal (autor de A Noite dos Cristais), e mais recentemente pelo rap de Emicida e James Banto, o artista define assim seu foco: “Eu me interesso pela forma de pensar a cidade e as relações humanas a partir da periferia. Isso já existia em alguns sambas, mas o rap é mais incisivo. Por isso foi tão importante pra mim”.
D’Salete viu o desfile da escola de samba Paraíso do Tuiuti. É sempre cauteloso com as palavras. “No Carnaval, não é novidade. A escravidão apareceu muitas vezes. Mas o interessante é que (a Tuiuti) relacionou com o presente, como um troço tão forte ainda definindo as relações sociais hoje”, analisa. “Nesse sentido, foi interessante, mostrou como a escravidão traz sequelas abertas para grande parte da população.”
Fonte: CARTA CAPITAL

Aleijadinho: aperfeiçoando o imperfeito


Por Jotabê Medeiros
O escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, foi considerado, por gente como o historiador de arte Germain Bazin e o escritor Dominique Fernandez, ambos franceses, como um artista do porte de Michelangelo e Gian Lorenzo Bernini. Sua obra, estruturada basicamente em torno de esculturas devocionais e produzida entre meados do século XVIII e início do século XIX, é baliza do barroco nacional.
Mas o interesse por Aleijadinho é cíclico. Na época das comemorações dos 500 anos do Descobrimento, em abril do ano 2000, sua obra viveu um ápice no movimento de museus e colecionadores e as esculturas tornaram-se a pièce de résistance de uma turnê internacional, ocupando nichos centrais em instituições como o Petit Palais de Paris e o Guggenheim Museum de Nova York.
Em 2014, o bicentenário de sua morte recebeu uma atenção modesta. E, recentemente, uma escultura de Nossa Senhora das Dores, levada a leilão na casa Christie’s de Nova York, foi vendida por preço 16% abaixo da estimativa.
Em 9 de março, abre-se no Museu de Arte de São Paulo (Masp), na Avenida Paulista, a mostra Imagens do Aleijadinho, mais uma generosa oportunidade para avaliar a fama de prodigiosidade do gênio do artista. São cerca de 50 obras, 38 delas esculturas – algumas que não eram vistas desde o fim dos anos 1970, quando houve no Museu de Arte Moderna do Rio uma importante exposição com a participação do arquiteto Lucio Costa.
Havia 11 anos que não se via uma mostra desse porte. Igrejas de Caeté e Raposos, em Minas Gerais, emprestaram imagens. Quatro peças vêm do Museu da Inconfidência. Colecionadores de Minas, São Paulo e Rio cederam obras. A exposição conta com uma importante iconografia correlata: mapas, gravuras, fotografias, pinturas e esculturas de viajantes e outros artistas.
O entorno abriga mapas da Capitania de Minas Gerais e suas comarcas; gravuras de viajantes do início do século XIX (que retratam a rotina e a paisagem nas minas de ouro); fotografias que documentaram a produção do escultor; e pinturas que fazem referência à geografia da arte de Aleijadinho (de Guignard, Tarsila do Amaral, Henrique Bernardelli, Aloísio Magalhães e Juan Araujo, entre outros).
Toda mostra de Aleijadinho suscita debate por conta da atribuição das obras – apenas duas esculturas do mineiro, de toda sua produção conhecida, possuem atribuição documental. O restante é fruto de estudos estilísticos e da tradição. “Qualquer seleção de obras sempre vai ter polêmica, não existe um consenso nem entre especialistas”, diz o curador da mostra, Rodrigo Moura. “Mas hoje já há catálogos mais fornidos, rigorosos, que ajudam a balizar a pesquisa.”
A questão de como o mito do Aleijadinho se solidificou é recorrente. Para assentar esse mito, uma produção análoga à obra do artista mineiro ganhou as mentes e os corações, como as fotografias do francês Marcel Gautherot e do argentino Horacio Coppola (1906-2012). Antigo aluno da Bauhaus alemã, Coppola deparou-se com a obra do Aleijadinho em 1945, durante uma viagem a Minas (esteve em Sabará, Congonhas do Campo e Ouro Preto).
Os ensaios de Coppola resultaram num único livro de fotografias sobre o artista brasileiro, amparado por poemas de Lorenzo Varela. Mas suas imagens tornaram-se referenciais. “Eu acho que ele (Coppola) soube interpretar o caráter da estrutura do Aleijadinho; o caráter teatral, patético, das imagens, o senso do monumental, do dramático. E também o caráter ornamental, não naturalista, mais expressionista, que modifica a sensação do espaço”, disse o italiano Luciano Migliaccio, professor da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
Nascido em Ouro Preto por volta de 1730 (onde morreria, em 1814), filho ilegítimo do mestre de obras e carpinteiro português Manuel Francisco Lisboa com a escrava Isabel, o Aleijadinho (o apelido veio de uma doença que causou deformidades em seu corpo) foi aríete de uma estratégia de nacionalismo do governo de Getúlio Vargas, a partir de 1930.
A intelectualidade brasileira começou a resgatá-lo ainda antes, durante o modernismo. “Na Europa, um artista como o Aleijadinho teria dado motivo a toda uma biblioteca”, lamentou o poeta Manuel Bandeira, nos anos 1920. A causa de Bandeira, abraçada por Mário de Andrade, repôs o Aleijadinho no centro do debate nacional.
“O Brasil deu nele o seu maior engenho artístico, eu creio”, escreveu Mário. “Era, de todos, o único de que se poderá dizer nacional, pela originalidade das suas soluções. Era já um produto da terra, e do homem vivendo nela, e era um inconsciente de outras existências melhores de além-mar: um aclimatado, na extensão psicológica do termo.”
“Mas, engenho já nacional, era o maior boato falso da nacionalidade, ao mesmo tempo que caracterizava toda a falsificação da nossa entidade civilizada, feita não de desenvolvimento interno, natural, que vai do centro pra periferia e se torna excêntrica por expansão, mas de importações acomodatícias e irregulares, artificiais, vindas do exterior. De fato, Antônio Francisco Lisboa profetizava para a nacionalidade um gênio plástico que os Almeida Juniores posteriores, tão raros!, são insuficientes para confirmar.” Em sua visão já canibalística, Aleijadinho fazia do defeito trunfo e do desequilíbrio, qualidade.
O argumento central de sua valorização está na consistência da produção legada. O conjunto escultórico que compõe o Santuário do Bom Jesus de Matosinhos, em Congonhas do Campo (MG), por exemplo, não conhece equivalentes desde a América do Norte até o extremo sul da Patagônia.
Entre 1796 a 1805, Aleijadinho deixou em Congonhas 66 imagens lavradas em cedro, seis relicários e 12 profetas em pedra-sabão. Oswald de Andrade afirmou: “No anfiteatro das montanhas, os profetas do Aleijadinho monumentalizam a paisagem”. É uma vasta produção de natureza múltipla: suas obras se espalham por Sabará, São João del Rei e Ouro Preto, na qual a Igreja de São Francisco de Assis é a joia do turismo – 500 mil pessoas passam pela cidade todos os anos.
Segundo artigo do escritor Silviano Santiago, a lenda do Aleijadinho virou bandeira nacional a partir de sua “descoberta” por Rodrigo Bretas, bisavô do mineiro Rodrigo Melo Franco de Andrade, o criador do Sphan (hoje Iphan). Bretas escreveu uma protobiografia do Aleijadinho que amparou os primeiros estudos sobre o artista, apoiado em duas fontes: texto escrito em 1790 por Joaquim José da Silva, um vereador de Mariana, e o depoimento que lhe concedeu Joana, que fora casada com o filho natural de Aleijadinho.
Além de organizar a mostra, o Masp publica um catálogo com reprodução das obras expostas, imagens de obras arquitetônicas monumentais de Aleijadinho e textos de Carlos Eduardo Riccioppo, Angelo Oswaldo de Araujo Santos, Fabio Magalhães, Ricardo Giannetti e do curador Rodrigo Moura, que analisam diferentes aspectos da produção do artista.
Além de estudos inéditos, serão republicados textos de Mariano Carneiro da Cunha (sobre a presença africana na obra do artista); Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, especialista do Iphan (sobre o conjunto das esculturas dos Passos de Congonhas); e o visionário ensaio de Mário de Andrade de 1928.
Imagens do Aleijadinho|
Abertura: 9 de março, às 20 horas. De 10 de março a 10 de junho, das 10 às 18 horas. Primeiro andar do Masp (Avenida Paulista, 1.578).
30 reais (grátis às terças-feiras e para menores de 10 anos).

Fonte: Carta Capital