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terça-feira, 19 de dezembro de 2017

Na cultura do silêncio, as massas são mudas

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Venício revisita Paulo Freire para escapar da "vontade imobilizadora"
Conversa Afiada tem o prazer de republicar da Carta Maior artigo do professor Venício A. de Lima, que, depois de longo inverno, retoma a discussão da cultura do silêncio em tempos de redes sociais:

Sobre a cultura do silêncio *


Dizer a palavra não é um ato verdadeiro se isso não está ao mesmo tempo associado ao direito de auto expressão e de expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, finalmente, participar do processo histórico da sociedade. Na cultura do silêncio as massas são ‘mudas’, isto é, elas são proibidas de criativamente tomar parte na transformação da sociedade e, portanto, proibidas de ser.

Paulo Freire, Ação Cultural para a Liberdade, 1970[1].

A revolução digital das últimas décadas trouxe, de maneira generalizada, imensas possibilidades para novas formas de sociabilidade e de expressão pública. No final de 2017, pesquisa da Fundação Getúlio Vargas estima que o número de “smartphones” em uso – permitindo, portanto, conexão às redes sociais virtuais - já é igual à população brasileira (Capelas, 2017). Apesar disso, um número cada vez maior de vozes – excluídas ou marginalizadas – luta por acesso e por ser ouvidas no debate público[2].

Navegar em redes sociais virtuais como Facebook, Twitter ou Instagram representa sim enorme possibilidade de interagir com um número significativo de pessoas, para além do círculo imediato e restrito das relações pessoais. Todavia, isso não garante que se tenha voz e que essa voz seja ouvida no debate público, vale dizer, não significa a universalização da liberdade de expressão, nem o reconhecimento do direito à comunicação ou, menos ainda, sua democratização.

Em análise sobre as jornadas de junho de 2013, observei que:

Apesar de “conectados” pelas redes sociais – e, portanto, de não se informarem, não se divertirem e não se expressarem (prioritariamente) através da velha mídia –, os jovens que detonaram as manifestações dependem dela para alcançar visibilidade pública, isto é, para serem incluídos no espaço formador da opinião pública. Esse aparente paradoxo decorre do fato de que a velha mídia, sobretudo a televisão, [ainda] controla e detém o monopólio de “tornar as coisas públicas”. Além de dar visibilidade, ela é indispensável para “realimentar” o processo e permitir sua própria continuidade. Cartazes dispersos nas manifestações revelaram que os jovens manifestantes se consideram “sem voz pública”, isto é, sem canais para expressar e ter a voz ouvida. Ou melhor, a voz deles não se expressa nem é ouvida publicamente. Vale dizer, as TICs (sobretudo as redes sociais virtuais acessadas via telefonia móvel) não garantem a inclusão dos jovens – e de vários outros segmentos da população brasileira – no debate público cujo monopólio é exercido pela velha mídia (Lima, 2013, pp. 89-90). 
Quatro anos depois, verifica-se que não houve alteração significativa nesse quadro, inclusive porquê “grande parte do conteúdo que circula nas mídias sociais virtuais vem dos grandes meios de comunicação” (Santos, 2017)[3]

Cultura do silêncio
Essa constatação inicial é necessária para que se introduza o tema deste breve ensaio: a cultura do silêncio, conceito construído por Paulo Freire (1921-1997), educador brasileiro cujo pensamento e obra, aliás, têm sido contestados e combatidos publicamente por grupos de direita desde as manifestações de rua que apoiaram o golpe parlamentar de 2016[4].

O conceito de cultura do silêncio emerge na obra de Freire como resultado da busca permanente pelas razões históricas que têm levado enormes contingentes de homens e mulheres – inicialmente na sociedade brasileira, depois na latino-americana e, ao cabo, até mesmo no mundo chamado de “desenvolvido” – a nascer, viver e, sobretudo, permanecer na condição de oprimidos, emudecidos, sem ter sua voz ouvida e excluídos de decisões que dizem respeito à construção de regras determinantes de suas próprias vidas. 

Embora nunca tenha escrito um texto específico sobre o que vem a ser cultura do silêncio[5], Freire considerava a superação dela, através da ação cultural para a liberdade – que possibilita a tomada de consciência de homens e mulheres como sujeitos de seu próprio destino, capazes de criar cultura e transformar o mundo – condição indispensável para a plena realização humana.

Elaborado tendo como referência imediata os tempos da guerra fria no final dos 60 e início dos 70 do século passado e rompendo o engessamento das definições restritas ao campo da educação de adultos, o pensamento de Freire foi sendo atualizado até sua morte repentina em 1997. Vinte anos depois, continua iluminando a compreensão da sociedade brasileira, tanto do ponto de vista histórico, como também do enfretamento dos enormes desafios colocados pela nova ordem neoliberal.

Nessa perspectiva, este texto pretende reconstruir o percurso de elaboração do conceito de cultura do silencio ao longo da obra de Freire, recuperando não só seu contexto intelectual como seus componentes fundamentais. Pretende-se também indicar algumas das múltiplas formas de silenciamento que sobrevivem entre nós perpetuando a cultura do silêncio e, por fim, problematizar as possibilidades de reverter políticas de silenciamento no contexto do neoliberalismo.

A.1 Vieira: a fonte de Southey e Berlinck
Onde Freire encontrou inspiração para elaborar o conceito de cultura do silêncio? A resposta a esta pergunta nos leva, inicialmente, a um historiador inglês do século XVIII.

O poeta, ensaísta e historiador Robert Southey (1774-1843), nascido em Bristol, na Inglaterra, nunca esteve no Brasil, mas valeu-se de preciosa biblioteca organizada por seu tio, pastor anglicano da comunidade inglesa em Lisboa, e escreveu a primeira história publicada do nosso país que abrange o período colonial do “descobrimento” até a transferência da corte portuguesa em 1808. A História do Brasil, originalmente publicada em inglês, em três volumes (1810, 1817 e 1819), teve sua primeira edição em português em 1862 e continua sendo um importante documento sobre os primeiros três séculos de construção da sociedade brasileira[6].

Em boa parte do volume I de sua História (2010), Southey trata do período da invasão holandesa no nordeste brasileiro e da longa e sofrida guerra para expulsão dos comandados do Conde Mauricio de Nassau. Ao final do extenso capítulo XVII, relata a chegada à Bahia do Marques de Monte Alvão, indicado vice-rei em 1640, ano em que a dinastia dos Bragança retoma da Espanha o controle de Portugal à qual estava unido desde 1580.

Para descrever a situação em que se encontrava a colônia neste período, Southey recorre ao pregador jesuíta Padre Antonio Vieira (1608-1697), que saúda o vice-rei com um de seus famosos sermões, o da Visitação de Nossa Senhora, proferido no dia 2 de julho de 1640[7].

O púlpito era talvez a única tribuna livre existente naquele período e Vieira aproveita-se sabiamente da festa do dia no calendário litúrgico da Igreja Católica para “pintar” ao vice-rei um quadro sombrio da Terra de Santa Cruz[8]

O relato da Visitação de Nossa Senhora, logo após receber a “anunciação” de que seria mãe de Jesus, à sua prima Isabel, também grávida de seis meses e que dará à luz João Batista, está no capítulo 1 do Evangelho de Lucas. Vieira [1959] cita diretamente da Vulgata Latina, parte do versículo 44 – Ut facta est salutationis tuae in auribus meis, exultavit in gaudio infans[9] – e prossegue: 

Comecemos por esta última palavra. Bem sabem os que sabem a língua latina, que esta palavra, infans, infante[10], quer dizer o que não fala. Neste estado estava o menino Batista, quando a Senhora o visitou, e neste esteve o Brasil muitos anos, que foi, a meu ver, a maior ocasião de seus males. […] O pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se lhe a fala: muitas vezes se quis queixar justamente, muitas vezes quis pedir o remédio de seus males, mas sempre lhe afogou as palavras na garganta, ou o respeito, ou a violência; e se alguma vez chegou algum gemido aos ouvidos de quem o devera remediar, chegaram também as vozes do poder, e venceram os clamores da razão [p. 330]. 
Para Vieira, portanto, o maior dos males do enfermo Brasil na primeira metade do século XVII era ter sido mantido no mesmo estado dos infans, infantes, isto é, sem fala, sem voz: “o pior acidente que teve o Brasil em sua enfermidade foi o tolher-se lhe a fala”. Além disso, afirma Vieira, nas muitas vezes em que o Brasil tentara manifestar-se através dos “clamores da razão”, havia sido vencido pela violência e pelo poder[11].

Um século e meio depois de Southey, em livro pouco conhecido, Berlinck[12] (1948) descreve o que considera “fatores adversos” na formação brasileira e recorre igualmente ao sermão da Visitação de Nossa Senhora (através da História de Southey). Para ele, Vieira “achava, apesar de estar no século XVII, que estas terras já deveriam conter representantes do povo para expressar as aspirações dos habitantes, e influir na marcha dos negócios públicos. Vontade de falar, de se queixar, havia, mas o regime de opressão que já se iniciara, impedia que a opinião pública se fizesse ouvir” (p. 89). 

Para Berlinck, a “opressão política” é um “mal endêmico” no Brasil. Afirma ele:

A opressão política começou logo depois do governo de Mem de Sá [1558-1572]; atravessou o período da dominação espanhola e firmou-se definitivamente no reinado bragantino. A escola que se formou e perdurou por séculos, prosseguiu no Brasil Império, e tem refulgido na república em inúmeros atos de governos constitucionais ou não. Não há tradição colonial que tenha resistido tanto à ação corrosiva do tempo e ao progresso da humanidade quanto esta (p. 86).

Além disso, Berlinck compartilha de posição que viria a ser consensual entre os principais intérpretes de nossa história, isto é, a de que o Brasil era “um país sem povo”. Nesse sentido, escreve: “não se formara, como só depois da abolição da escravatura se formaria, uma classe que se poderia chamar de ‘povo’. Eram, ou senhores ou escravos” (p. 92).

A.2 Do mutismo à cultura do silêncio
Na tese “Educação e Atualidade Brasileira” que escreveu para o concurso da cadeira de História e Filosofia da Educação na Escola de Belas Artes de Pernambuco, em 1959, Freire antecipa muitas das observações que vão aparecer revistas e atualizadas, oito anos depois, em seu primeiro livro que traz o sugestivo título de “Educação como Prática da Liberdade

Em sua tese, Freire parte (capítulo II) de uma reflexão sobre a “inexperiência democrática” brasileira explicada pela interpretação [presente em Berlinck] de que o Brasil era “um país sem povo”.  Para sustentar seu argumento, recorre a vários autores clássicos brasileiros como Caio Prado Junior, Gilberto Freyre, Nelson Werneck Sodré, Fernando Azevedo e Oliveira Vianna. Valendo-se de uma citação deste último, Freire conclui:

Nas circunstâncias de nossa colonização e de nosso povoamento (...) tudo nos leva a um fechamento extremamente individualista. “Cada família é uma república”, afirma Vieira (p. 69).
Vale lembrar que essa citação de Vieira, recorrente em diferentes autores, foi escrita em 1662/1663 depois da expulsão dos jesuítas do Estado do Maranhão no contexto de uma longa resposta às acusações feitas a eles pelo procurador Jorge de Sampaio Carvalho e dirigida a D. Afonso VI. Vieira explica as causas da opressão existente no Estado do Maranhão e, entre elas, o “pouco governo com que se vive naquelas partes”. Cito o longo parágrafo:

A 3ª. causa é o estilo ou pouco governo com que se vive naquelas partes, porque, exceta a cidade de São Luis do Maranhão, onde de poucos tempos para cá se corta carne algumas vezes, em todo o Estado não há açougue, nem ribeira, nem horta, nem tenda onde se vendam as coisas usuais para o comer ordinário, nem ainda um arrátel de açúcar, com se fazer na terra. E sendo que no Pará todos os caminhos são por água, não há em toda a cidade um barco ou canoa de aluguer para nenhuma passagem, de que tudo se segue, e vem a ser estilo de viver ordinário, que para um homem ter o pão da terra, há de ter roça, e para comer carne há de ter caçador, e para comer peixe, pescador, e para vestir roupa lavada, lavadeira, e para ir à missa, ou a qualquer parte, canoa e remeiros. E isto é o que precisamente têm os moradores mais pobres, tendo os de mais cabedal costureiras, fiandeiras, rendeiras, teares e outros instrumentos e ofícios de mais fábrica, com que cada família vem a ser uma república; e os que não podem alcançar a tanto número de escravos, ou passam miseravelmente, ou, vendo-se no espelho dos demais, lhes parece que é miserável a sua vida (Vieira, 1662/2016; p. 244).
Freire se utiliza também do trabalho de isebianos históricos como Guerreiro Ramos, responsável pelo departamento de Sociologia do ISEB, que em seu “Condições Sociais do Poder Nacional” (1957), afirma:

O que sociologicamente é relevante é assinalar que, durante o período de dominação dos fazendeiros, o Brasil foi um país sem povo. Mesmo a observadores desarmados de categorias sociológicas foi fácil fazer essa observação. Já na fase colonial, o padre Antonio Vieira dizia: ‘cada família é uma república’. E Simão de Vasconcelos confirmava: ‘nenhum homem nesta terra é republico’. O francês Louis Couty escrevia em 1882 que ‘o Brasil não tem povo’. Observação que Silvio Romero fez sua em 1907. Outro estudioso seguro, Alberto Torres, declarava, em 1914, que no Brasil ‘a sociedade não chegou a constituir-se’. Não se pode duvidar que são perfeitamente exatas essas verificações (p. 14-15).
No contexto deste “país sem povo”, Freire (1959) vai também recorrer, através de várias citações do livro de Berlinck, ao sermão da Visitação de Nossa Senhora de Vieira [nota 1, p. 82], e, pela primeira vez, fala no “mutismo brasileiro[13] que é definido em nota específica:

Entendemos por mutismo brasileiro a posição meramente expectante do nosso homem diante do processo histórico nacional. Posição expectante que não se alterava em essência e só acidentalmente, com movimentos de turbulência, a constante, mais uma vez era o mutismo, o alheamento à vida pública. (...) [p.83-84].
Alguns anos mais tarde, no “Educação como Prática da Liberdade” (1967), antes mesmo de retomar o tema da “inexperiência democrática”, Freire, registra a “emergência” do povo na história do Brasil e afirma:

Se na imersão [o povo] era puramente espectador do processo [histórico], na emersão descruza os braços e renuncia à expectação e exige a ingerência. Já não se satisfaz em assistir. Quer participar. A sua participação (...) ameaça as elites detentoras de privilégios. Agrupam-se então para defendê-los (...). E, em nome da liberdade ‘ameaçada’, repelem a participação do povo. Defendem uma democracia sui generis em que o povo é um enfermo a quem se aplicam remédios. E sua enfermidade está precisamente em ter voz e participação. Toda vez que tente expressar-se livremente e pretenda participar é sinal de que continua enfermo, necessitando, assim, de mais ‘remédio’. A saúde, para esta estranha democracia, está no silêncio do povo, na sua quietude (p. 55).
Nesta passagem de Freire, o povo que estava imerso (ausente) da história, emerge. E a influência do jesuíta seiscentista se manifesta claramente, tanto na ideia de “enfermidade” quanto na ausência de voz, no silêncio do povo, como características “estranhas” de democracia.

O segundo capítulo do “Educação como Prática da Liberdade”, é inteiramente dedicado à discussão da “inexperiência democrática”. Freire enfatiza a ausência de uma vida comunitária na experiência colonial brasileira. Apoiando-se em Oliveira Vianna [1949], compara a situação do Brasil com a das comunidades agrárias europeias (espanholas), nas quais, por meio da participação no poder local, o povo adquiriu uma vasta experiência política.  Ele sustenta que “o Brasil nunca experimentou aquele senso de comunidade, de participação na solução de problemas comuns [...] senso que se ‘instala’ na consciência do povo e se transforma em sabedoria democrática” [p. 70-71].

Após analisar as consequências da herança colonial e da ausência de autogoverno no Brasil, Freire conclui seu argumento fazendo um conjunto de perguntas sobre os “fatores adversos” de nossa colonização. Questiona ele: 

Onde buscarmos as condições de que tivesse emergido uma consciência popular democrática, permeável e crítica, sobre a qual se tivesse podido fundar autenticamente o mecanismo do estado democrático [...]? Na ausência de circunstâncias para o diálogo em que surgimos, em que crescemos?” (p. 79-80, passim).

Ao particularizar “a ausência de circunstâncias para o diálogo em que surgimos, em que crescemos”, Freire retoma o tema do mutismo. Retorna, então, à passagem do sermão da Visitação de Nossa Senhora de Vieira – já citado na tese de 1959 – e prossegue afirmando que o mutismo é característico da sociedade a que se negam a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhes oferecem “comunicados”.  Insiste que essas sociedades se tornam preponderantemente “mudas” e chama a atenção para o fato de que o mutismo “não significa ausência de resposta, mas sim uma resposta que carece de criticidade.” Logo depois, em 1968, Freire utiliza pela primeira vez a expressão cultura do silêncio referindo-se não só ao Brasil, mas a América Latina como um todo. 

A.3 Os frutos da experiência chilena
O trabalho de Freire junto ao Instituto de Capacitación y Investigación de la Reforma Agrária(ICIRA) chileno, na década de 60, colocou-o em estreito contato com os “campesinos”, em cujo ambiente cultural encontrou fortes semelhanças com aquele dos camponeses do Nordeste brasileiro. Ele teve a oportunidade de vivenciar diretamente as consequências tanto da colonização portuguesa como da espanhola na América Latina. É nesta época que Freire escreve sua obra maior, a Pedagogia do Oprimido.

Na Pedagogia do Oprimido, para além da “inexperiência democrática” de “um país sem povo”, Freire reelabora aquilo que havia nomeado de “posição meramente expectante”, dealheamento à vida pública” por parte dos oprimidos e identifica o fatalismo como uma das causas desse comportamento apático, terreno ideal para a consolidação da cultura do silêncio. Diz Freire:

Este fatalismo, alongado em docilidade, é fruto de uma situação histórica e sociológica e não um traço essencial da forma de ser do povo. Quase sempre este fatalismo está referido ao poder do destino ou da sina ou do fado – potencias irremovíveis – ou a uma destorcida visão de Deus. Dentro do mundo mágico ou místico em que se encontra a consciência oprimida, sobretudo camponesa, quase imersa na natureza, encontra no sofrimento, produto da exploração em que está, a vontade de Deus, como se Ele fosse o fazedor desta ‘desordem organizada’ (pp.52-53).

Na sequência, Freire se vale dos textos clássicos de Franz Fanon e Albert Memmi para explicar a dualidade existencial dos oprimidos que “hospedam” em si mesmos o opressor. Por outro lado, na sua própria experiência de vida, ele se deparou com uma Igreja Católica conservadora, que reagia de forma desmesurada ao “comunismo” da revolução Cubana e teve enorme responsabilidade na construção do que ele chama “uma visão destorcida de Deus”. Essa visão foi determinante para a perpetuação das condições nas quais florescia e se consolidava a cultura do silêncio.  

É somente nos anos 50 que começa a ocorrer a virada progressista de setores da Igreja Católica no Brasil, com o trabalho de leigos como Alceu de Amoroso Lima, de bispos como Dom Helder Câmara, além da criação dos movimentos de Ação Católica. Freire, ele próprio, foi um dos pensadores da Teologia da Libertação que surge na América Latina depois do Concílio Vaticano II e da Conferência de Medellín, celebrando a opção preferencial pelos pobres[14].

Ainda em 1968, no Informe de Actividades do ICIRA, Freire retoma e amplia os horizontes conceituais do mutismo – agora, cultura do silêncio – para toda a América Latina e coloca: 

Estamos convencidos – hoje, mais do que nunca – que aquilo que chamamos de cultura do silêncio, introjetada como “inconsciente coletivo” pelos camponeses, não pode ser transformada mecânica ou automaticamente pela mudança infra estrutural operada através do processo de reforma agrária. Esta cultura do silêncio, tão característica de nosso passado colonial, nutre-se e deita suas raízes no solo favorável da estrutura de propriedade da terra na América Latina. Histórica e culturalmente, esta cultura do silêncio assumiu a forma de uma “consciência camponesa”, ou na definição de Hegel, uma “consciência servil” (pp. 227-228). [15] 
No contexto latino americano é possível melhor compreender o significado mais profundo da cultura do silêncio.  

A.4 Uma nova dimensão desde os Estados Unidos
No segundo semestre de 1969, Freire recebe convite da Universidade de Harvard e se transfere para os Estados Unidos. Em contato com a realidade de um “país desenvolvido”, ele acrescenta ao conceito de cultura do silêncio uma nova dimensão, aquela que se refere ao reconhecimento da existência de oprimidos e de áreas de silêncio também nas periferias urbanas do “Primeiro Mundo”. 

Diz ele: “(apesar de nutrir-se e deitar suas raízes no solo favorável da estrutura de propriedade da terra na América Latina) isto não significa que uma tal análise, pelo menos em parte, não seja aplicável a outras áreas do Terceiro Mundo bem como àquelas das sociedades metropolitanas, que se identificam com o Terceiro Mundo, enquanto ‘áreas de silêncio’.” (Freire, 1970/1976, p.70). Na verdade, “o conceito de ‘Terceiro Mundo’ é ideológico e político, não geográfico. O chamado ‘Primeiro Mundo’ tem, dentro de si e em contradição consigo, o seu ‘Terceiro Mundo’, como este tem, dentro de si, o seu ‘Primeiro Mundo’, representado pela ideologia da dominação e no poder das classes dominantes” [Freire 1971/1976, p. 127].

No ensaio “Ação Cultural para a Liberdade”, escrito nos Estados Unidos, (original 1970; 1976), Freire oferece uma síntese do argumento:

Só é possível compreender a cultura do silêncio se a tomarmos como uma totalidade que é, ela própria, parte de um todo maior. Neste todo maior devemos reconhecer também a cultura ou culturas que determinam a voz da cultura do silêncio. [...] A compreensão da cultura do silêncio pressupõe uma análise da dependência enquanto fenômeno relacional que acarreta diversas formas de ser, de pensar, de expressão, tanto da cultura do silêncio como da cultura que “tem voz” [...]. A sociedade dependente é por definição uma sociedade silenciosa. Sua voz não é autêntica, mas apenas um eco da voz da metrópole – em todos os aspectos, a metrópole fala, a sociedade dependente ouve. O silêncio da sociedade-objeto face à sociedade metropolitana se reproduz nas relações desenvolvidas no interior da primeira. Suas elites, silenciosas frente à metrópole, silenciam, por sua vez, o seu próprio povo. Apenas, quando o povo da sociedade dependente rompe as amarras da cultura do silêncio e conquista seu direito de falar – quer dizer, apenas quando mudanças estruturais radicais transformam a sociedade dependente – é que esta sociedade como um todo pode deixar de ser silenciosa face à sociedade metropolitana (Freire 1970, 32-33)[16].  
Após este longo percurso[17] podemos afirmar que o conceito de cultura do silêncio tem sua origem numa observação de Vieira no século XVII, se constrói a partir da análise de clássicos brasileiros sobre a nossa herança colonial e se consolida no quadro teórico da “teoria da dependência”, em voga no início da segunda metade do século passado. Referindo-se inicialmente à sociedade brasileira, foi posteriormente ampliado para abranger não somente outros países da América Latina, mas todas as sociedades do Terceiro Mundo e os oprimidos em geral. Nesse sentido, Freire sustenta que os séculos de colonização portuguesa e espanhola na América Latina resultaram numa estrutura de dominação à qual corresponde uma totalidade ou um conjunto de representações e comportamentos. Esse conjunto ou “formas de ser, pensar e expressar” é tanto um reflexo como uma consequência da estrutura de dominação. A cultura do silêncio, por fim, caracteriza a sociedade a que se nega a comunicação e o diálogo e, em seu lugar, se lhe oferece “comunicados”, vale dizer, é o ambiente do tolhimento da voz e da ausência de comunicação, da incomunicabilidade.

Políticas de silenciamento[18]
Quais seriam as formas de sobrevivência da cultura do silêncio vale dizer, quais são as múltiplas formas de silenciamento na contemporaneidade? Diferentemente dos ambientes onde Freire identificou o camponês oprimido, sobretudo, o Nordeste brasileiro e a área rural de atuação do ICIRA no Chile, e das condições originais para o surgimento da cultura do silêncio nas décadas de 50 e 60 do século passado – inexperiência democrática (“um país sem povo”) e fatalismo – vive-se hoje em sociedade predominantemente urbana, nominalmente democrática e, sobretudo, depositam-se amplas esperanças no potencial inclusivo e “democratizante” da revolução digital, sobretudo, nas redes sociais virtuais. 

Há de se questionar se as condições existentes no século XXI impedem a sobrevivência de áreas de silêncio, de ausência de voz pública ou, ao contrário, em que medida atualizam e reproduzem a estrutura de dominação que sempre excluiu os oprimidos de uma sociedade escravocrata que carrega até hoje as marcas profundas dessa realidade histórica. 

Não estariam os oprimidos históricos – povos originários, negros, mulheres e as classes trabalhadoras – silenciados hoje tanto por políticas de silenciamento específicas, quanto pelo discurso público hegemônico que permanece classista, patriarcal e racista?

Escrevendo sobre a oligarquia brasileira, em perspectiva histórica, Fábio Konder Comparato afirmou recentemente que “o grande ausente desse regime oligárquico é e sempre foi o povo. Debalde o procurarmos nos principais fatos de nossa História. Ele permanece sempre privado de palavra” (Comparato, 2017, p. 19).

Na verdade, desde que meios tecnológicos – jornais, rádio, televisão, internet – passaram a ser mediadores incontornáveis da voz que se expressa e se faz ouvir no debate público, começaram também a existir políticas – explícitas ou não – relativas ao seu funcionamento, que se somaram às características históricas de formação da sociedade brasileira e funcionam como políticas de silenciamento excludentes, possibilitando a perpetuação da cultura do silêncio

Abaixo dois exemplos contemporâneos das múltiplas formas de silenciamento. 

B.1 O “efeito silenciador do discurso”
Introduzido pelo jurista norte americano Owen Fiss em seu conhecido livro “A ironia da liberdade de expressão – Estado, regulação e diversidade na esfera pública”, publicado no Brasil em 2005, o conceito de “efeito silenciador do discurso” faz parte de um argumento maior, contrário à posição dos liberais clássicos, de que o Estado é um inimigo natural da liberdade (esp. capítulo 1). Fiss afirma:

O Estado pode ser uma fonte de liberdade, por exemplo, quando promove a robustez do debate público em circunstâncias nas quais poderes fora do Estado estão inibindo o discurso. Ele pode ter que alocar recursos públicos – distribuir megafones – para aqueles cujas vozes não seriam escutadas na praça pública de outra maneira. Ele pode até mesmo ter que silenciar as vozes de alguns para ouvir as vozes dos outros. Algumas vezes não há outra forma (p. 30).
Os discursos de incitação ao ódio, à pornografia e os gastos ilimitados nas campanhas eleitorais dos Estados Unidos, são usados por Fiss como exemplo do “efeito silenciador do discurso”. As vítimas do ódio têm sua autoestima destroçada; as mulheres se transformam em objetos sexuais e os “menos prósperos” ficam em desvantagem na arena política. 

Neste exemplos, “o efeito silenciador vem do próprio discurso”, isto é, “a agência que ameaça o discurso não é o Estado”. Cabe, portanto, ao Estado promover e garantir o debate aberto e integral e assegurar “que o público ouça a todos que deveria”, ou ainda, garanta a democracia exigindo “que o discurso dos poderosos não soterre ou comprometa o discurso dos menos poderosos”.

Especificamente no caso da liberdade de expressão, existem situações em que o “remédio” liberal clássico de mais discurso, em oposição à regulação do Estado, simplesmente não funciona, afirma Fiss. Aqueles que supostamente poderiam responder ao discurso dominante não têm acesso às formas de fazê-lo (p. 47-48). 

O exemplo emblemático dessa última situação é o acesso ao debate público em sociedades (como a brasileira), onde “as formas de resposta ao discurso dominante” permanecem, em boa parte, sob o controle de uns poucos grandes grupos empresariais da mídia tradicional.

B.2 Radiodifusão como silenciamento
Desde que o Estado brasileiro, no início da década de 30 de século passado, optou por transferir à inciativa privada a exploração do serviço público de radiodifusão, foi se construindo no Brasil uma política de silenciamento que, salvo raríssimas exceções, favoreceu a manifestação pública das vozes dominantes e a exclusão das vozes dos oprimidos históricos da sociedade brasileira: povos originários, negros, mulheres e classes trabalhadoras (cf. Lima, 2015a, cap.6). 

Esse fato poderá ser comprovado não só pela análise da legislação que consolidou o marco regulatório do setor, como também pela recuperação das inciativas de legislação que favoreceriam a inclusão de vozes no debate público e que nunca lograram aprovação no Congresso Nacional ou mesmo de normas e princípios que, mesmo tendo sido transformados em lei, não foram regulamentados e/ou não são cumpridos.

O histórico descaso brasileiro com a comunicação pública, que vem desde as derrotas dos projetos de Roquete Pinto (Bojunga, 2017), tanto para o rádio quanto para a televisão, até o atual desmonte da Empresa Brasil de Comunicação (EBC)[19], são também indicadores robustos da política de radiodifusão como uma política de silenciamento.

Observações finais
Paulo Freire contrapôs a cultura do silêncio ao “conceito antropológico de cultura” e encontrou na práxis da ação cultural para liberdade a síntese dialética capaz de superar a condição de opressão e, portanto, da ausência de voz dos oprimidos (Cf. Lima, 2015b, esp. cap. III). 

Nos novos tempos neoliberais a questão fundamental a ser feita é se existe alguma perspectiva de democratização da comunicação, vale dizer, de reverter as políticas de silenciamento – explícitas e/ou implícitas – , dentro da “nova razão do mundo”? (Lima, 2016).

É significativo observar que no fim da vida, diante da avassaladora progressão do neoliberalismo, Freire tenha recuperado o conceito de fatalismo e se referido a ele como uma das características do discurso neoliberal. Disse ele no seu último livro (Freire, 1997):
A ideologia fatalista, imobilizante, que anima o discurso neoliberal anda solta no mundo. Com ares de pós-modernidade, insiste em convencer-nos de que nada podemos contra a realidade social que, de histórica e cultural, passa a ser ou a virar “quase natural”. Frases como “a realidade é assim mesmo, que podemos fazer?” ou “o desemprego no mundo é uma fatalidade do fim do século” expressam bem o fatalismo desta ideologia e sua indiscutível vontade imobilizadora” (pp.21-22). 

Escapar dessa “vontade imobilizadora” apontada por Freire, talvez seja o principal desafio dos nossos dias. Sem acreditar que outro mundo é possível não há como vencer os enormes obstáculos que impedem que todas e todos tenham “o direito de auto expressão e de expressão do mundo, de criar e recriar, de decidir e escolher e, finalmente, participar do processo histórico da sociedade”.
(Clique aqui para acessar as referências bibliográficas)
Fonte: CONVERSA AFIADA

Recrutas, zumbis e nazistas: como o game Call of Duty WWII ajuda a entender a 2ª Guerra Mundial. Por Zambarda

Por 
Pedro Zambarda de Araujo

Jogos baseados em Segunda Guerra Mundial não são novos no mercado de entretenimento eletrônico. Desde o filme “O Resgate do Soldado Ryan”, de Spielberg em 1998, a temática do maior conflito mundial em solo europeu entrou com tudo no universo dos videogames, sobretudo nas plataformas PlayStation e PC.
Quase 20 anos depois, “Call of Duty (CoD) WWII” da Sledgehammer Games com a Activision chegou no dia 3 de novembro apostando que menos é mais. O modo história do game aborda a Primeira Divisão de Infantaria do front ocidental norte-americano durante a Segunda Guerra Mundial.
Seu papel é sobreviver ao Dia D contra os nazistas e avançar na França e na Alemanha até o fim do conflito em 1945, nos eventos da chamada “Operação Overlord”. Toda essa história já foi contada em games anteriores da mesma série.
O principal chamariz de WWII é justamente trabalhar bem com poucos elementos.
Campanha curta e com alta produção
Você controla o personagem Ronald “Red” Daniels no desembarque das tropas americanas na região da Normandia (Dia D) e vê a relação dele com todos os soldados em combate. Com gráficos desenvolvidos em conjunto pela desenvolvedora (Sledgehammer) e pela publicadora (Activision), o game WWII traz o realismo do desespero dos campos de guerra.
O jogador não consegue saber exatamente a quantidade de vida do soldado, mas pode pedir medicações e agir em equipe com os outros recrutas durante a campanha. Quando um parceiro é ferido pelos nazistas, você pode salvar sua vida carregando-o e atirando somente com sua pistola.
Quando você leva tiros, é capaz de ouvir o suspiro de dor do seu personagem ou o grito de agonia quando ele é atingido por um lança-chamas. Esteticamente, o game utiliza todos os recursos técnicos das plataformas PlayStation 4, Xbox One e PC Windows.
As armas são inspiradas diretamente nos modelos de época, muitos com cartuchos laterais, bem como os tanques que imitam bem os modelos Panzer da Alemanha nazista. Mas a campanha não oscila muito além de tomar pontos do cenário, resgatar itens e matar inimigos.
Há um modo zumbi para quem curte a galhofa de transformar soldados nazistas em mortos-vivos. O game também possui um documentário com veteranos de guerra contando suas histórias num formato parecido com a série “Band of Brothers” (2001), também do cineasta Steven Spielberg.
No entanto, mesmo com tanta história em detalhes, a campanha para um jogador soa incrivelmente curta.
A cereja do bolo é o modo multijogador
Sem história e nos diferentes modos de combate, o modo multijogador online chama atenção pela simplicidade e pelo jeito viciante. Você pode configurar a aparência do seu soldado, mudando inclusive a etnia dele para a pele negra ou transformando ele numa oficial feminina. A ideia em CoD é que você se identifique com seu personagem, o que é um grande acerto dos desenvolvedores para pessoas que normalmente não são representadas nos jogos.
Você vai perder horas morrendo até entender qual estratégia precisa ter para vencer as partidas, seja no mata-mata ou nas disputas em equipes. A seleção do seu equipamento é vital no processo.
Se o jogador carrega rifles de alta precisão com telescópio, o ideal é usar o cenário para se camuflar e matar adversários à distância. Submetralhadoras e escopetas são para os personagens que se aproximam nas trincheiras. E, muitas vezes, trocar da arma pesada para a pistola garante maiores pontuações nos embates.
“Call of Duty WWII” é o típico game pipocão de tiro para distrair no videogame e ao mesmo tempo aprender sobre história. Ele falha ao não mostrar o front da União Soviética ou do Japão, países presentes em CoDs mais antigos ou no concorrente Battlefield. No final de semana de estreia, o game bateu meio milhão de dólares em vendas.
No entanto, colocando apenas norte-americanos contra alemães nazistas, o jogo é cativante de uma maneira simples.
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Fonte: DCM

Contos africanos:Os dois reis de Gondar


Os dois reis de Gondar
(Etiópia)
Era um dia como os de outrora… e um pobre camponês,tão pobre que tinha apenas a pele asobre os ossos e três galinhas que ciscavam lguns grãos deteff que encontravam pela terra poeirenta, estava sentado na entrada da sua velha cabana como todo fim detarde. De repente, viu chegar um caçador montado a cavalo. O caçador se aproximou, desmontou, cumprimentou-o e disse - Eu me perdi pela montanha e estou procurando ode Gondar.

— Gondar? Fica a dois dias daqui — respondeu o camponês. — O sol já está se pondo e seria mais sensato se você passasse a noite aqui e partisse de manhã cedo.
O camponês pegou uma das suas três galinhas, matou-a,cozinhou-a no fogão a lenha e preparou um bomjantar, que ofereceu ao caçador. Depois de comerem os
dois juntos sem falar muito, o camponês ofereceu sua cama ao caçador e foi dormir no chão ao lado do fogo.
No dia seguinte bem cedo, quando o caçador acordou,
o camponês explicou-lhe como teria que fazer para chegar
a Gondar:
— Você tem que se enfiar no bosque até encontrar um rio, e deve atravessá-lo com seu cavalo com muito cuidado para não passar pela parte mais funda. Depois tem que seguir por um caminho à beira de um precipício até chegar a uma estrada mais larga…
O caçador, que ouvia com atenção, disse:
— Acho que vou me perder de novo. Não conheço esta região… Você me acompanharia até Gondar? Poderia montar no cavalo, na minha garupa.
— Está certo — disse o camponês —, mas com uma
condição. Quando a gente chegar, gostaria de conhecer o
rei, eu nunca o vi.

— Você irá vê-lo, prometo.
O camponês fechou a porta da sua cabana, montou na garupa do caçador e começaram o trajeto. Passaram horas e horas atravessando montanhas e bosques, e mais uma noite
inteira. Quando iam por caminhos sem sombra, o camponês abria seu grande guarda-chuva


preto, e os dois se protegiam do sol. E quando por fim viram a cidade de Gondar
no horizonte, o camponês perguntou ao caçador:
— E como é que se reconhece um rei?
— Não se preocupe, é muito fácil: quando todo mundo faz a mesma coisa, o rei é aquele que faz outra, diferente.
Observe bem as pessoas à sua volta e você o reconhecerá. Pouco depois, os dois homens chegaram à cidade e o caçador tomou o caminho do palácio. Havia um monte
de gente diante da porta, falando e contando histórias, até que, ao verem os dois homens a cavalo, se afastaram da porta e se ajoelharam à sua passagem. O camponês
não entendia nada. Todos estavam ajoelhados, exceto ele e o caçador, que iam a cavalo.
— Onde será que está o rei? — perguntou o camponês.
— Não o estou vendo!

— Agora vamos entrar no palácio e você o verá, garanto! E os dois homens entraram a cavalo dentro do palácio. O camponês estava inquieto. De longe via uma fila de pessoas e de guardas também a cavalo que os esperavam na entrada. Quando passaram na frente deles, os guardas desmontaram e somente os dois continuaram em cima do cavalo. O camponês começou a ficar nervoso:
— Você me falou que quando todo mundo faz a mesma
coisa… Mas onde está o rei?
— Paciência! Você já vai reconhecê-lo! É só lembrar que, quando todos fazem a mesma coisa, o rei faz outra.
Os dois homens desmontaram do cavalo e entraram numa sala imensa do palácio. Todos os nobres, os cortesãos e os conselheiros reais tiraram o chapéu ao vê-los.
Todos estavam sem chapéu, exceto o caçador e o camponês, que tampouco entendia para que servia andar de chapéu dentro de um palácio. O camponês chegou perto do caçador e murmurou:
— Não o estou vendo!
— Não seja impaciente, você vai acabar reconhecendo-o! Venha sentar comigo.
E os dois homens se instalaram num grande sofá muito confortável. Todo mundo ficou em


pé à sua volta. O camponês estava cada vez mais inquieto. Observou bem
tudo o que via, aproximou-se do caçador e perguntou:
— Quem é o rei? Você ou eu?
O caçador começou a rir e disse:
— Eu sou o rei, mas você também é um rei, porque sabe acolher um estrangeiro!
E o caçador e o camponês ficaram amigos por muitos e muitos anos...

Um afro abraço.
Claudia Vitalino.

fonte:https://nuvemdehistorias.wordpress.com/

Museu Paranaense promove o lançamento de cinco livros de história do Paraná

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Hoje, dia 19 de dezembro o Museu Paranaense (MP) promove o lançamento de cinco livros das coleções Teses do Museu Paranaense e Histórias do Paraná. O evento começa às 17h no auditório Loureiro Fernandes. A entrada é gratuita.
O diretor do Museu Paranaense, Renato Carneiro Jr. explica que o museu tem como missão a preservação, divulgação da história, da cultura e do patrimônio do Paraná. “A publicação de livros aumenta bastante a possibilidade de que mais pessoas visualizem elementos da nossa história e conheçam a fundo alguns desses temas. Para o museu também é muito importante permanecer no cenário científico nacional e internacional com publicações deste nível, tanto da coleção Teses do Museu Paranaense quanto da nova coleção Histórias do Paraná, em convênio com o Departamento de História da Universidade Federal do Paraná”.
Da coleção Teses do Museu Paranaense será lançado o livro “Vulnerabilidade, resiliência e cultura: comunidades quilombolas no Paraná e o Varzeão”, de Jurandir Souza, sobre as comunidades de descendentes negros no Paraná. No livro é retratada a história e as condições atuais da comunidade Varzeão, localizada no município de Dr. Ulysses, interior do Estado.
Nova coleção
Organizada pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) junto ao Museu Paranaense, a nova coleção Histórias do Paraná lança quatro títulos. “O Macabeu: imigração e identidade judaica no Paraná”, de Michel Ehrlich, traz uma discussão sobre os judeus no Brasil, especificamente na cidade de Curitiba. O livro procura traçar alguns dos mais importantes antecedentes para a construção da identidade moderna judaica, e descreve a chegada, adaptação e integração dos judeus no Brasil.

Na publicação “Entre sapatos e livros: a trajetória de um sapateiro na militância comunista em Paranaguá/PR – 1935 a 1964”, Thiago Possiede conta a história do sapateiro Antonio Rocha que, por meio de seus livros, atravessou continentes e travou lutas políticas. Seus hábitos de leitura ficaram tão famosos que se tornou orientador dos estudantes da cidade, auxiliando-os a fazer trabalhos acadêmicos.
No livro “Política entre razão e sentimentos: a militância dos comunistas no Paraná 1945-1947”, Cláudia Monteiro procura demonstrar as motivações compartilhadas pelos membros do Partido Comunista em seus dois anos de existência legal, tecendo uma trama muito original sobre os sentimentos de pertença a um grupo que se autodefine como responsável por uma grande causa, a revolução.
Hitler não morreu e está na América Latina, segundo o autor Marcos Meinerz no livro “Imaginário da formação do IV Reich: América Latina após a 2ª Guerra Mundial”. De acordo com Meinerz, o líder nazista e seus subordinados estariam conspirando para formar o IV Reich. A reorganização do partido nacional socialista no continente receberia a ajuda de imigrantes alemães existentes, inclusive, na pacata cidade de Marechal Cândido Rondon, no interior do Paraná.
Todas as publicações estarão disponíveis para download gratuito no site www.museuparanaense.pr.gov.br após o lançamento.
Serviço
Lançamento de livros das coleções “Teses do Museu Paranaense” e “Histórias do Paraná”
Dia 19 de dezembro de 2017 às 17h
Auditório Loureiro Fernandes
Entrada Gratuita

Museu Paranaense
Rua Kellers, 289, São Francisco. Curitiba/PR
Terça a sexta-feira das 9h às 18h
Sábado, domingo e feriado das 10h às 16h.
www.museuparanaense.pr.gov.br
(41) 3304-3300
Fonte: SEEC

segunda-feira, 18 de dezembro de 2017

Contos africanos:O Violiono do Macaco



A fome e a necessidade de satisfazê-la forçou o macaco a abandonar a sua terra e procurar outro lugar entre estranhos para o tão necessário trabalho. Bulbos, feijões da terra, escorpiões, insetos, e estavam completamente extintas em sua própria terra. Mas, felizmente, ele recebeu, por enquanto, abrigo com um tio-avô dele, Orangotango, que morava em outra parte do país.

Quando ele tinha trabalhado durante certo tempo ele quis voltar para casa e, como recompensa seu tio deu-lhe um violino e um arco e flecha e lhe disse que com o arco e flecha, ele poderia acertar e matar qualquer coisa que ele desejasse, e com o violino ele poderia obrigar qualquer coisa a dançar.

O primeiro que ele encontrou em seu retorno para a sua terra foi o irmão lobo. Este velho companheiro disse-lhe todas as novidades e também que ele estava desde cedo tentado perseguir um cervo, mas tudo em vão.

Então macaco disse para ele todas as maravilhas do arco e flecha que ele carregava nas costas e lhe garantiu que se avistasse o cervo, ele iria acertá-lo para ele. Quando o lobo mostrou-lhe o veado, macaco estava pronto e derrubou o cervo.

Eles fizeram uma boa refeição juntos, mas em vez do lobo ser grato, o ciúme se apoderou dele e ele pediu para o arco e flecha. Quando o macaco recusou-se a lhe dar, ele usou sua força para ameaçá-lo, e assim, quando passaram pelo jacal o lobo disse que macaco tinha roubado o seu arco e flecha. O chacal tendo ouvido falar do arco e flecha, declarou-se incompetente para resolver o caso sozinho, e ele propôs que eles levassem a questão para o Tribunal do Leão, Tigre, e os outros animais. Nesse meio tempo, ele declarou que iria ficar tomando conta do que tinha sido a causa de sua discussão, de modo que seria mais seguro, como ele disse. Mas o chacal imediatamente tirou da tudo o que era comestível, e isso gerou um longo período de matança, antes que o macaco e o lobo concordassem em levar o caso para o tribunal.

As evidências do macaco era frágeis, e para piorar, o testemunho de chacal foi contra ele.

Ele pensou que desta forma seria mais fácil obter o arco e flecha para si mesmo.
E assim a sentença foi contra macaco. O roubo foi encarado como um grande crime: ele


seria enforcado.

O violino ainda estava ao seu lado, e ele recebeu como um último desejo do tribunal o direito de tocar uma música nele.

Ele era um mestre dos truques de sua época, e além disso, tinha o maravilhoso poder de sua rabeca encantada. Assim, quando ele emitiu a primeira nota do “Canto do Galo” no violino, o tribunal começou logo a mostrar uma vivacidade incomum e espontânea, e antes de terminar a primeira estrofe da valsa da velha canção toda a corte estava dançando como um redemoinho.

Mais e mais, mais rápido e mais rápido, tocou a melodia do “Canto do Galo” no violino encantado, até que alguns dos bailarinos, exaustos, caíram, embora ainda mantendo seus pés em movimento. Mas o macaco, músico como ele era, ouvi e não vui nada do que tinha acontecido à sua volta. Com a cabeça colocada carinhosamente contra o instrumento, e seus olhos meio fechados, ele tocou, mantendo a cadência com o seu pé.
O lobo foi o primeiro a gritar em tom suplicante, sem fôlego, “Por favor, pare, primo macaco! Pelo amor de Deus, por favor, pare!”
Mas o macaco nem conseguiu sequer ouvi-lo. Mais e mais a valsa “Canto do Galo” parecia irresistível.
Depois de um tempo o leão mostrou sinais de fadiga e, quando ele rodava mais uma vez com a leoa, ele rosnou quando passou do macaco, “Todo o meu reino é vosso, macaco, se você parar com essa música!”
“Eu não quero isso”, respondeu macaco “, mas retire a sentença e devolva o arco e flecha, e você, lobo, reconheça que você o roubou de mim!”

“Eu reconheço, reconheço!” gritou o lobo, e o leão no mesmo instante, chorou anulando a punição.

O macaco ainda deixou-os girando mais uma vez ao som da valsa, e depois recolheu seu


arco e flecha, e sentou-se no alto da árvore de espinhos mais próxima.

A corte e outros animais estavam com tanto medo que ele pudesse começar de novo que apressadamente correram para outras partes do mundo.

Um afro abraço.
Claudia Vitalino.

Fonte:http://www.sacred-texts.com/afr/saft/sft05.htm

A poesia que comove

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Alexandre Simões Pilati*
A voz da lira, a voz da lírica é algo que se concretiza, definitivamente, na leitura; é também algo além dos sons, das palavras, das imagens do poema. A voz lírica é o que encontramos de vivo e real nos textos, é o que humaniza a construção literária.
Em certas poéticas, firmadas em princípios humanistas seguros, o prazer dessa descoberta é ainda maior. Este é o caso da coletânea Pé de ferro & outros poemas (Anita Garibaldi, 2017), de Adalberto Monteiro. A voz lírica de Adalberto Monteiro comove o leitor por sua honestidade, sua singeleza exigente, a disposição comunicativa e seu compromisso com o registro poéticos dos acontecimentos os mais diversos. Nesse sentido, a voz lírica desses poemas de Pé de ferro se assemelha à de um cantador de cordel, àquela dos repentistas e dos compositores populares. Entretanto, tal voz jamais resvala para o pitoresco ou para a estilização de um tom que não é o do poeta urbano, culto, comprometido com as lutas de seu tempo e consciente de seu lugar na luta de classes. A voz lírica de Adalberto Monteiro adere à vida, à matéria simples, humilhada, radiante e complexa da existência de todo dia. E o mais importante: realiza-se como voz real do mundo, sem qualquer mistificação.
O sujeito lírico de Pé de ferro & outros poemas, esse cantador urbano, olha para as coisas do cotidiano e as desvenda com a calma tranquila que apenas se constata nos sábios. Dele emana uma sabedoria serena no trato das mais variadas matérias, seja a memória, o amor, o erotismo, os fatos políticos, a cidade São Paulo, a miséria, a esperança ou a fome. Vale ressaltar, entretanto, que a sabedoria que preenche os versos de Adalberto Monteiro não é aquela de quem, petulante, acha que sabe tudo. É aquela de quem deseja saber, que sabe interrogar e que acredita que a arte é uma das mais profundas maneiras de se interpretar as relações humanas.
Talvez seja desse desejo de entender a dinâmica da vida que nasça a tendência essencial da poética de Pé de ferro & outros poemas: o olhar estruturado em função de crônica do cotidiano, em que o modo textual da descrição atravessada pela interpretação subjetiva converte-se em dominante da estrutura. Como um fino cronista de nosso tempo, Adalberto Monteiro jamais dissociará em seus versos o sentimento íntimo do olhar social, politicamente empenhado, atento a cada acontecimento que seja capaz de traduzir dinâmicas fundamentais do presente ou da História pretérita.
Para estar à altura de tal tarefa, a linguagem precisa encantar-se no comezinho. Em Pé de ferro & outros poemas, a linguagem poética precisa encontrar-se com o trivial e, portanto, precisa ser simples sem ser banal. É uma linguagem clara, pedestre, mas jamais vulgar. Sendo cotidiana, essa linguagem nunca é ordinária, uma vez que é mimese e veículo daquela sabedoria em torno da qual a voz lírica de Adalberto Monteiro se constrói, através da beleza que tem a sinceridade de alguém que, vencendo as hesitações típicas da personalidade do tímido, do retraído ou do deslocado, é capaz de se expor, de se revelar, integramente, honestamente, sinceramente.
Uma das formas utilizadas mais eficazes para requintar a expressão poética em Pé de ferro & outros poemas encontra-se na utilização de elementos naturais para traduzir estados de alma, situações sociais, movimentos da memória e as inusitadas arquiteturas do político. A natureza é um grande manancial de sentidos, onde Adalberto Monteiro recolhe forças de significado capazes de intensificar a expressão necessária a cada tema. É através da natureza, perceberá o leitor mais atento, que se constrói a quase totalidade das metáforas, das imagens, das figuras de linguagem de Pé de ferro & outros poemas. Com essa delicada força que vem da natureza e encanta a forma poética, Adalberto Monteiro enfrenta os mais difíceis assuntos, empresta dignidade e salva do esquecimento os que sofrem, os que ficaram para trás no tempo, aqueles sobre os quais a sociedade ou a intimidade não quer deixar sempre falar, relegando-os a último plano ou recalcando-os.
Fundamentalmente a poesia de Adalberto Monteiro, através desses princípios aqui aludidos apenas em linhas gerais, constrói uma voz que deseja comunicar e por isso comove, em sentido amplo. Comove porque nos incita à ação, comove porque impressiona, comove porque provoca a dureza da nossa alma, tão desacostumada a dar a atenção devida à beleza da vida. Ao nível do canto, ao nível do chão, essa poesia tem o grande mérito de ser expressão consciente de uma concepção de poesia que está traduzida em um dos textos de Pé de ferro & outros poemas: “O que será um livro de poemas senão o estuário no qual desembocam as alegrias e desgraças do mundo?” O autor sabe, como poucos, estar à altura de seu conceito de poesia, dando voz ao que nos salva e nos humilha; exprimindo poeticamente o que nos oprime e o que nos redime.
Alexandre Simões Pilati é poeta e professor de literatura da Universidade Brasília (UNB).

Os livros encaixotados em Palmeira dos Índios e o legado de Graciliano

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Palmeira dos Índios virou notícia nacional, com a divulgação, pela Controladoria Geral da União (CGU), de que mais de 13 mil livros estão encaixotados há alguns anos na Secretaria Municipal de Educação e Esportes. A cidade do interior alagoano, na primeira metade do século passado, também chamou a atenção nacional: seu então prefeito, Graciliano Ramos, havia inaugurado uma nova forma de administração, favorecendo a população desassistida de alimento e ensino.
Por Carlos Pompe*

Segundo a CGU, o fato causou um prejuízo de quase R$ 1 milhão para o programa Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). São livros para alunos, para professores, para família; cartilhas sobre drogas e sobre bulyng. O material é sobra do que foi distribuído nas 24 escolas municipais. São mais de 13 mil livros – mais do que o dobro do que o necessário para o município. O prefeito Julio Cezar (PSB) entrou com ação contra o ex-gestor, James Ribeiro (PSDB), devido ao excesso do pedido de compra.
Nessa mesma cidade, em 1926, Graciliano Ramos (34 anos), autor de Vidas Secas, São Bernardo e tantos outros clássicos da literatura brasileira, foi nomeado presidente da Junta Escolar. Fazia inspeções de surpresa. Numa das visitas, flagrou uma escola sem aula e as professoras conversando na diretoria. Ao tomar conhecimento dos motivos, mandou comprar sapatos e tecidos para a confecção de uniformes para os alunos. Escreveu em relatório às autoridades estaduais: “As escolas estão pessimamente instaladas. Cada aluno leva a sua cadeira, cada professora, a sua banca”. No final do ano seguinte, foi candidato único a prefeito e eleito. A verba nos cofres municipais mal dava para cobrir a folha de pagamento dos servidores. Cobrou os impostos com rigor e cancelou as isenções fiscais.
Administrou as finanças da Prefeitura anotando pessoalmente a finalidade do gasto, a quantia paga e o nome do beneficiado. Fez aprovar, no Conselho Municipal (Câmara de Vereadores), o Código de Posturas, regulamentando direitos e deveres dos cidadãos e do poder público. “Eis alguns: animais não poderiam andar soltos nas ruas; os comerciantes eram impedidos de açambarcar mercadorias de primeira necessidade em época de carestia; os farmacêuticos, proibidos de vender determinados remédios sem receita médica; os hoteleiros, obrigados a ter em ordem o livro de hóspedes e a afixar a tabela de preços em locais visíveis; o comércio não poderia funcionar além das 21 horas nem abrir aos feriados e fins de semana; açougueiros não poderiam vender carne de rês doente e teriam de passar a recolher impostos”, relata Dênis de Moraes na biografia O velho Graça.
Nos dois relatórios de prestações de contas que enviou, em janeiro de 1929 e de 1930, ao governador de Alagoas, Álvaro Paes, relatou: “Fiz apenas isto: extingui favores largamente concedidos a pessoas que não precisavam deles e pus termo à extorsões que afligiam os matutos de pequeno valor, ordinariamente raspados, escorchados, esbrugados pelos exatores”.
Ironizou as agruras do “pobre povo sofredor” (seriam os “coxinhas” de hoje?) nestes termos: “É uma interessante classe de contribuintes, módica em número, mas bastante forte. Pertencem a ela negociantes, proprietários, industriais, agiotas que esfolam o próximo com juros de judeu. Bem comido, bem bebido, o pobre povo sofredor quer escolas, quer luz, quer estradas, quer higiene. É exigente e resmungão. Como ninguém ignora que se não obtém de graça as coisas exigidas, cada um dos membros desta respeitável classe acha que os impostos devem ser pagos pelos outros”.
Quanto à instrução, registrou: “Instituíram-se escolas em três aldeias. Serra da Mandioca, Anum e Canafístula. O Conselho mandou subvencionar uma sociedade aqui fundada por operários, sociedade que se dedica à educação de adultos. Presumo que esses estabelecimentos são de eficiência contestável. As aspirantes a professoras revelaram, com admirável unanimidade, uma lastimosa ignorância. Escolhidas algumas delas, as escolas entraram a funcionar regularmente, como as outras. Não creio que os alunos aprendam ali grande coisa. Obterão, contudo, a habilidade precisa para ler jornais e almanaques, discutir política e decorar sonetos, passatempos acessíveis a quase todos os roceiros”.
Em março de 1930, o governador convidou-o a assumir a direção da Imprensa Oficial do Estado, em Maceió. Para atender ao pedido, renunciou em 10 de abril. Escreveu à esposa, Heloísa de Medeiros Ramos: “Para os cargos de administração municipal escolhem de preferência os imbecis e os gatunos. Eu, que não sou gatuno, que tenho na cabeça uns parafusos de menos, mas não sou imbecil, não dou para o ofício e qualquer dia renuncio”.
Na nova função, reestruturou a Imprensa Oficial e foi nomeado, em seguida, para a direção da Instrução Pública (atual Secretaria de Estado da Educação de Alagoas). Tempos bicudos. De uma população em idade escolar de 124.890 indivíduos no Estado, apenas 1.356 alunos concluíram o curso primário, naquele em 1931, e 36, o secundário. Faltavam merenda, uniforme e instalações físicas adequadas nas 47 escolas municipais e nas 327 estaduais.
Em três anos de trabalho, Graciliano reformou parte dessas escolas e iniciou a construção de novas sedes em Maceió e no interior. Chegou a triplicar o material escolar, ampliar o acesso à merenda e garantir a entrega de uniformes para as crianças. Aumentou as vagas instituindo regime de turnos e diminuiu evasão dos alunos. Até uma biblioteca foi inaugurada no grupo Diégues Júnior.
Equiparou o salário das professoras da zona rural com o da capital, instituiu concurso público obrigatório para as educadoras do ensino primário possibilitou a algumas crianças negras o ingresso na escola. “Cometi um erro”, comentou a respeito, “encontrei 20 mil crianças nas escolas e em três anos coloquei nelas 50 mil, o que produziu celeuma. E o pior é que se matricularam nos grupos da capital muitos negrinhos. Não sei bem se pratiquei outras iniquidades. É possível.”
Foi arrancado da Instrução Pública para ir para o cárcere: foi preso em sua casa e levado, de navio, para o Rio de Janeiro imputado de ser comunista pela ditadura do Estado Novo de Getúlio Vargas (acusação falsa – só se filiou ao Partido Comunista em 18 de agosto de 1945). Nunca foi processado e nem condenado. Dessa experiência resultou a obra prima Memórias do Cárcere. Não voltou a morar em Alagoas.
Depois de liberto, trabalhou como inspetor federal de ensino. Fiscalizou colégios em subúrbios do Rio de Janeiro. Respondeu, quando perguntado como se sentia como funcionário público: “Não escolhi ser. Mas fiz o que achei que me cabia”.
Como diz uma canção de Milton Nascimento e Fernando Brant, ” o que foi feito é preciso conhecer para melhor prosseguir”.
 *Carlos Pompe é jornalista

Pagu, a atualidade de sua luta após 55 anos

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Por Alessandra Monterastelli *
Ela morreu em Santos, em 12 de dezembro de 1962, vencida pelo câncer. Em 1910, nascia: São João da Boa Vista, interior de São Paulo. Ao longo de 52 anos de vida, Pagu deixou uma herança e tanto, não só pelos seus feitos no campo da escrita, da arte e da militância pelo Partido Comunista, mas também pela sua trajetória pessoal.
Começou a escrever com 15 anos, como colaboradora de um jornal de bairro em São Paulo. Celebrada como musa do movimento modernista, adere ao movimento antropofágico aos 19 anos. Conviveu com figuras como Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade (com quem se casa e tem o seu primeiro filho) e Mario de Andrade (seu professor no Conservatório Dramático e Musical de São Paulo). Como jornalista escrevia sobre tudo um pouco com facilidade, publicando seus textos em diversos jornais; opinava de maneira pontual sobre política, o proletário e a sociedade. Escreveu sobre a temática LGBT, até hoje alvo de ataques por parte de conservadores: “Há meninas que nasceram errado, mas que não querem se conformar em seguir à lei da natureza. Querem continuar meninas”.
Foi correspondente de vários jornais, viajou para os Estados Unidos, Japão e União Soviética, entre outros países da Ásia e da Europa. Na França, tem contato com o escritor André Breton e outros surrealistas; entrevistou Sigmund Freud e assistiu à coroação de Pu-Yi, o último imperador chinês, e com ele conseguiu sementes de soja, que foram enviadas ao Brasil e introduzidas na economia agrícola brasileira. Em 1930 viaja para Buenos Aires para encontrar Luís Carlos Prestes, líder comunista que vivia no exilio, e acaba conhecendo o escritor Jorge Luis Borges (encontraria Prestes apenas mais tarde, em Montevidéu, no Uruguai).
Dona de caráter irreverente, não tinha medo em ser. Feminista, se dizia uma “mulher de ferro, com zonas erógenas e aparelho digestivo, isso no Brasil de 1930; a defesa da mulher pobre e a crítica ao papel conservador feminino na sociedade permearam sua vida e todas as suas obras.
Em 1931 lançava duras críticas à burguesia paulistana na coluna “A mulher do Povo”, seção batizada como contraponto ao título do jornal criado e dirigido por ela e Oswald de Andrade, O Homem do Povo. Aliás, Pagu tornou-se nesse momento também uma grande expoente dos quadrinhos, área até hoje majoritariamente masculina. Inspirada especialmente nas obras de Tarsila do Amaral (chegou, inclusive, a ilustrar a Revista de Antropofagia), fez ilustrações e tiras para cada uma das 8 publicações do Homem do Povo; entre elas, Malakabeça, Fanika e Kabelluda contam a história de um casal rico que não teve filhos e começa a morar com a sobrinha pobre, a Kabelluda, que protagoniza cenas de subversão e contestação dos valores morais da sociedade do início do século XX – criticas, aliás, que servem facilmente à sociedade atual. Como conclui Roberta AR, zienira e escritora na cena de quadrinhos independentes, as tiras de Pagu “mostram bem a veia política da autora, que não era de meias palavras”. Por fim, seu nome batizou o primeiro selo de quadrinhos feito somente por mulheres.
Malakabeça, Fanika e Kbelluda. 
Pagu entrou para o Partido Comunista em 1931, junto de Oswald, e foi morar em uma vila operária, onde trabalhou como tecelã e metalúrgica. Participou da organização de uma greve de estivadores em Santos e, na ocasião, como conta o jornalista Fernando do Valle em seu artigo “Viva Pagu”, o estivador Herculano de Souza foi morto pela polícia durante a homenagem aos operários anarquistas Sacco e Vanzetti, injustamente acusados de homicídio nos Estados Unidos e executados na cadeira elétrica. Herculano caiu nos braços de Pagu, que pediu a todos que cantassem a Internacional. Ela foi presa pela polícia de Getúlio Vargas, tornando-se a primeira mulher presa no Brasil por motivações políticas. Em 1935, após participar do Levante Comunista, foi detida, torturada e condenada a dois anos de prisão. Três anos mais tarde foi novamente condenada e, ao todo, foi presa 23 vezes, chegando, inclusive, a ser presa como militante comunista estrangeira quando estava na França, militando pelo partido comunista francês. Logo após a sua filiação, foi morar em uma vila operária.

Mais tarde fez suas críticas ao Partido, mas nunca deixou o idealismo de lado, sempre defendeu um socialismo pacífico e libertário e nunca deixou de lutar. O jornal que tinha com Oswald foi tomado por estudantes da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e proibido pela polícia. Em 1933, Pagu lançou seu primeiro romance, “Parque Industrial”, focado em uma narrativa urbana sobre a vida das operárias da cidade de São Paulo, e assinou a obra sob o pseudônimo de Mara Lobo. Segundo a antropológa Mariza Corrêa, o texto tem forte estilo cinematográfico e “poderia ser lido hoje como se fosse o roteiro de um vídeo”. A narrativa denuncia a suposta “moral” que exigia castidade das mulheres ao passo em que estimulava a liberdade sexual dos homens, que muitas vezes enganam e abusam das mulheres.
Ilustração: Kiddo Art, via As Mina na História 
Em 1935, se separa de Oswald de Andrade, em uma época em que o divórcio ainda era motivo de tabu e julgamentos. Mais tarde se casa com o jornalista Geraldo Ferraz e lhe dedica diversas cartas de amor.
Nos anos 40 e 50 continua sua produção jornalística, escrevendo crônicas, artigos, poemas e críticas literárias no jornal “A Tribuna” de Santos. Divulgou autores marcados pelo inconformismo e de vanguarda como Alfred Jarry, Fernando Arrabal e Samuel Beckett. Também foi pioneira na tradução de autores como Artaud e Apollinaire.
Mas, como relembra a jornalista Camila Alam, as memórias pessoais de Pagu também ganharam muita visibilidade. Na sua autobiografia, intitulada “Paixão Pagu”, a escritora revela intimidades e confissões. Nas passagens são relatadas algumas prisões, doenças e casos amorosos. “Uma personalidade fugaz e intensa, que, ao longo de seus 52 anos, revelou-se coerente, objetiva, idealista e apaixonada” finaliza Camila Alam.
“Luminosa agente subversiva de nossa modernidade”: foi assim que o poeta concretista Augusto de Campos descreveu Pagu na abertura da nova edição de “Pagu: vida-obra”, em que ele conta da contribuição da escritora também para a poesia concreta, com a publicação de diversos poemas. Em entrevista para O Globo em 2014, quando questionado do título referido à escritora de “primeira mulher nova no Brasil”, ele explica: “Por todo o seu passado revolucionário (…)nenhuma assumiu até o fim ideias tão radicais e renovadoras, nenhuma correu os riscos e sofreu o que sofreu por elas, nenhuma defendeu com tanto ardor a arte de vanguarda, nenhuma se pode comparar, em termos de atuação ética e estética, como ela”.
Pagu marcou presença: nunca deixou o espírito revolucionário adormecer, nem na arte, nem na política. Jamais se deixaria calar ou censurar por nenhum conservador ou moralista. Diante de suas enormes contribuições, vale o questionamento: como seria sua reação diante do atual momento vivido pelo Brasil?