Na USP, as cotas raciais foram aprovadas no último dia 4, em reunião do Conselho Universitário |
Professora do Departamento de Sociologia da USP afirma que as ações afirmativas também possuem um viés meritocrático.
Professora do Departamento de Sociologia da Faculdade Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH/USP), Márcia Lima é uma das 120 negras que lecionam entre os 6 mil docentes da Universidade de São Paulo. Defensora incondicional da cotas raciais, Lima não considera esta política pública uma revolução. “Temos sempre que pontuar que essa é uma política liberal, pois isso é o princípio de uma sociedade de classes, de uma sociedade individualista e capitalista.”
Signatária do abaixo-assinado que reuniu cerca de 300 professores da USP a favor davotação de cotas raciais no Conselho Universitário da instituição, Lima afirma que, além da necessidade de inclusão das minorias, é preciso reconhecer a inexistência de uma elite negra no País, algo necessário para as próximas gerações terem mais acesso a oportunidades.
Em entrevista a CartaCapital, a socióloga explica a necessidade da adoção da política e por qual motivo ela produz impactos para além dos muros das universidades.
CartaCapital: Qual percurso histórico é importante recuperar quando falamos sobre políticas de cotas raciais?
Márcia Lima: A decisão que iniciou o debate foi quando a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) se tornou a primeiras universidade pública a adotar política de cotas. Nesse momento o movimento social dentro e fora da universidade começou a se organizar para que outras universidades seguissem o processo.
Mas o fato que antecede foi a Conferência de Durban, em 2001, quando o Brasil foi signatário do tratado que o compromete com o combate à discriminação e à xenofobia. Desta conferência, é importante destacar duas coisas: houve um preparo do Brasil para participar da conferência e que essas discussões começaram no governo do Fernando Henrique Cardoso. Em 1996, ele lançou um documento intitulado “Construindo a verdadeira democracia racial no Brasil”, onde ele criou o programa nacional de ações afirmativas.
Com certeza a forma como o ex-presidente Lula instituiu as ações afirmativas em seu governo pela criação da Secretaria de Igualdade Racial, pela ideia de igualdade racial, foi um fator que realmente talvez outro presidente teria feito de outra forma. Mas nenhum presidente que assumisse naquele momento poderia se isentar de enfrentar essa questão.
CC: O discurso daqueles que são contra as cotas raciais é frequentemente baseado na meritocracia. Isso prejudica o debate?
ML: O que as pessoas chamam de mérito? Ninguém em sã consciência vai dizer que é contra a meritocracia. Quando você nega o valor da meritocracia você diz que não importa o empenho, a dedicação. Mas as políticas de cotas não se opõem a isso na medida em que sociedades muito desiguais não possuem parâmetros para medir a meritocracia. Se você tem muita desigualdade de oportunidades, o resultado que cada um desses indivíduos alcança não é unicamente em função de seus próprios méritos.
E outro aspecto é que a política de cotas tem seu lado meritocrático. Primeiro porque as pessoas vão competir para entrar na universidade, a reserva de vagas não elimina a competição. O terceiro aspecto em relação ao mérito é colocar o vestibular, no caso a Fuvest, como um balizador de mérito inquestionável. O vestibular é uma forma de seleção.
Os comentários negativos dizem coisas como não querer ser atendido por um médico que foi cotista, por um advogado cotista. A Fuvest não diploma ninguém, quem diploma é a Universidade de São Paulo. Esse aluno vai ingressar por um sistema de cotas mas vai passar pelas mesmas avaliações que qualquer aluno. Não existe um sistema diferenciado, um conteúdo diferenciado. Se dá ao processo seletivo um peso muito excessivo, e isso é um problema.
CC: Esses argumentos se sofisticaram ao longo do tempo?
Você apelar pro princípio de igualdade numa sociedade que gera tanta desigualdade gera contrassenso. Não tem como corrigir desigualdades tão profundas se você não atenuar especificamente nos grupos mais atingidos. Tem que melhorar a educação básica, tem que existir igualdade de direitos, mas enquanto a sociedade não produz direitos iguais ela tem que corrigir as formas de acesso à oportunidade.
CC: Outro ponto frequentemente levantado é a possibilidade de fraude na autodeclaração feita pelo candidato para se adequar ao perfil de preto, pardo ou indígena. Isso prejudica a política?
ML: A gente tem fraude em todos os programas, existe essa possibilidade. A exemplo do seguro desemprego. Ou seja, isso é residual na política, em todas as políticas que você tem. Existem grandes fraudadores nacionais da previdência, por aí a fora. Não é uma coisa que não dá pra controlar e não se deve controlar. Eu defendo radicalmente a autoclassificação. O indivíduo tem que se autodeclarar, e a partir do momento que tem essa postura, ele lida também com as consequências da sua classificação.
CC: A USP foi uma das últimas a adotar a política de cotas no seu processo seletivo. Como você enxerga a demora da maior universidade do País a tomar essa decisão?
ML: Existe uma confusão muito grande na ideia de uma universidade de elite com uma universidade de elite econômica, de hegemonia branca e massivamente branca. A ideia de formar uma universidade de elite é de uma universidade de qualidade, que forma os principais pesquisadores, as principais mentes do país. Forma pessoas que formarão outras pessoas. A ideia de uma universidade de elite é de um ensino de ponta, com recursos, com condições de fazer diferenças na produção de conhecimento. Uma universidade de elite não é uma universidade racialmente hegemônica.
Então, é assustador que a USP não tenha se preocupado de fato em entender o quão importante é formar uma elite que conviva com a diferença, com trajetórias diferentes, pessoas diferentes, origens sociais e econômicas diferentes. É uma resistência que passa por uma concepção equivocada do que é ser uma universidade de elite.
CC: Um novo perfil de estudantes vai começar a entrar na USP. A universidade terá que se adequar a esse novo perfil?
ML: Isso é uma agenda para não repetirmos erros históricos. Espero que universidade esteja aberta para criar um espaço de acolhimento. Mas tem-se a ideia que os alunos que vão competir para entrar na USP pelas cotas não sabem falar, não sabem ler, não sabem escrever.
Eles já chegaram em algum lugar para poder estar ali. Sobreviveram dentro do sistema educacional brasileiro, o que não é pouca coisa. Eles vão acompanhar e se não acompanhar vão receber a nota de quem não acompanhou.
Mas é fato que a USP precisa pensar em políticas de permanência. A proposta de uma uma universidade mais inclusiva não termina no vestibular, começa nele. Ou seja, ela não está preparada mas terá que aprender como as outras aprenderam.
Fonte: Carta Capital
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