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quarta-feira, 13 de setembro de 2017

“Meu corpo não é público” – cultura do estupro, constrangimento e violência – Por Lorena Alves

Eu não acredito no sistema e nem em quem acredita nele. Os 3,80 da passagem do ônibus não incluem o meu, nem o seu, nem o corpo de Cíntia Souza. Cíntia, 23 anos, foi violentada na terça-feira (29/08) em transporte público, na Avenida Paulista (SP). Homem que ejaculou no pescoço da vítima foi liberado.
Era terça-feira 29 de agosto quando Diego Novais, 27 anos, ejaculou no pescoço de Cíntia Souza, dentro de ônibus na Avenida Paulista. Há testemunhas, Diego é preso em flagrante pelo motorista até que a polícia chegue. O juiz José Eugênio do Amaral Neto não acusa o agressor pelo crime de estupro, e sim importunação ofensiva ao pudor, infração de menor potencial ofensivo. Diego está respondendo em liberdade por esse caso. O Ministério Público Estadual (MP –SP), responsável pela acusação, decidiu pelo relaxamento do flagrante. Há decisões intoleráveis nessa história.

Muitas pessoas não têm conhecimento do significado do termo “estupro”, mas entre essas muitas pessoas está o juiz Eugênio, que tomou uma decisão misógina em meio a um judiciário misógino. E é sobre isso que desejo acrescentar ao debate: quando o assunto é violência contra mulher, essa decisão, entre muitas outras, é tomada com base em um judiciário despreparado para tratar de casos como esse e um legislativo com respostas ineficazes. O juiz não considerou que houve estupro, caso contrário, o homem não seria mantido em liberdade.

O modus operandi de Diego Novais costuma ser o mesmo, se aproxima de mulheres em transporte público e mostra ou encosta o pênis na vítima. O nome disso não é doença, e não ocorre só em São Paulo. É cultura do estupro. Mas o que é isso? Nosso comportamento é condicionado pela cultura em que vivemos. A palavra “cultura” no termo “cultura do estupro” enfatiza a ideia de que comportamentos que silenciam ou relativizam a violência sexual contra a mulher NÃO podem ser interpretados como naturais. O termo “cultura do estupro” tem sido usado desde os anos 1970, na segunda onda feminista. Percebemos que estamos há passos largos de mudarmos essa estrutura quando juízes como Eugênio desclassificam vítimas como Cíntia.
Até quando vítimas de violência sexual serão desacreditadas? Não deveríamos precisar enfatizar tantas vezes o que já está provado. Essa cultura está nos livros, filmes, novelas, séries, jornais… Enquanto romantizarem o agressor, continuaremos gritando o óbvio: “machismo mata, feminismo liberta”. Enquanto houver patriarcado lutaremos pelo fim desse sistema que reforça a cultura de banalização e normalização da violência contra a mulher. Casos de estupros às mulheres ocorrem nas mais diversas situações: dentro de casa, da universidade, da escola, nas ruas, em bairros de todas as classes sociais. Agora, vamos ler a afirmação de Souza Neto, em sua decisão, citando o que diz o artigo 213(*) do Código Penal sobre o crime de estupro: “Entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça”. Houve constrangimento? Sim. Violência? Sim. Foi estupro. (isso, ponto). Houve um contato físico com o corpo da vítima, que não consentiu em participar daquele ato.
(*) “Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso” (Art. 213 da Lei Nº 12.015/2009).
Estupro não tem e não pode ter justificativa. Eles acontecem independentemente das roupas que as mulheres usam, ou do modo em que se comportam. Estupro não tem roupa, idade, data ou local. Vejamos alguns dados do IPEA (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada):
- O estupro é um dos crimes menos reportados às autoridades. A partir da pesquisa do IPEA, a nota técnica “Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados da Saúde” diz que no mínimo 527 mil pessoas são estupradas por ano no Brasil, destes casos, apenas 10% dos casos são registrados pela polícia.
- 15% dos estupros são coletivos. Pense que os casos que você conhece/leu/falou, estão longe de serem isolados.
- Em 2014, foram registrados 47.646 casos de estupros no Brasil. (*)
- A cada 11 minutos no Brasil uma mulher é estuprada (*)
(*) Os números são do 9º Anuário Brasileiro da Segurança Pública, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Não estou aqui para falar especificamente sobre Eugênio, nem sobre a prisão de Diego, estou aqui para falar: o que esse tipo de Justiça brasileira está garantindo? Nada. O fato do juiz desse caso ter falado textualmente que a “surpresa da ejaculação na moça não é violência”, é esse um dos maiores problemas… O não reconhecimento.
E o que afasta as vítimas dos órgãos oficiais? O medo de ouvir que é culpada, a impunidade, ter a vida, ou a de seus parentes, ameaçada pelo estuprador, e claro, a normalização desse crime. Faltam no Estado, entre muitas coisas, estrutura física para atender as denúncias, melhoramento dos horários de funcionamento da Delegacia da Mulher, além de pessoas preparadas para tratar de crimes como o estupro e demais violências sexuais. Você se questiona sobre medidas jurídicas em casos de violência contra a mulher? Eu sim. Desclassificação da vítima. Supremacismo masculino. Juízes [homens, homens, homens] de internet e juízes que não entendem o básico para responder por crimes de estupro. Ejacular no pescoço de alguém é crime e não uma contravenção penal.
O discurso importa, e ele não existe sem contexto. Um homem, por mais que se solidarize com Cíntia, nunca vai entender a dor que ela sentiu quando foi feita de “depósito de esperma” por Diego. Ela foi claramente CONSTRANGIDA, e VIOLENTADA. O que o Juiz José Eugênio sabe sobre violência contra as mulheres? A lei oculta casos de estupro, o agressor sai impune, e é assim que a cultura do estupro segue perseguindo incontáveis mulheres em um país de juízes como Eugênio, agressores como Diego Novais, e vítimas como Cíntia Souza.
Em 2015, o Datafolha revelou que é no transporte público que as mulheres estão mais vulneráveis a abusos sexuais e assédio. Aos homens especialistas de Facebook que defenderam a atitude do juiz, parem e pensem um pouquinho: é natural Cíntia ter sido feita de “depósito de esperma” por Diego? É natural ele (e não só ele) ter um histórico tão grande de abusos sexuais em transporte público? Quando se trata de violência contra a mulher, denúncia não é sinônimo de justiça no Brasil. É triste ver um caso como esse, e não se surpreender com a atitude do juiz, nem do agressor, nem dos especialistas de Internet. A cada dia, nós mulheres, percebemos a importância de ser “nós por nós”. Não devemos nos calar enquanto o supremacismo masculino tomar decisões sobre nossos corpos, e sermos questionadas do incabível, “por que não fechou as pernas?”, “por que usou uma roupa tão curta?” “por que saiu tão tarde?”, basta!
Diego Novais tem outros 16 registros oficiais de abuso sexual ou estupro praticados no transporte público desde 2011. Não conseguimos imaginar uma mulher ejaculando no pescoço de um homem no transporte. Não conseguimos imaginar um homem com medo de uma mulher tocar no seu pênis e bunda, dentre as mais diversas situações, seja no transporte ou não. Diego Novais não é doente. Ele perpetua a cultura do estupro em que as mulheres são submetidas diariamente. O discurso é um dos canais da violência simbólica, a culpa é das estruturas prévias de dominação. Publicitários estão colaborando com a cultura do estupro ao lançarem campanhas de cerveja excluindo o público feminino, colocando a mulher como objeto de intensificação do consumo de bebidas alcoólicas exclusivamente por homens. A indústria pornográfica que limita como deve ser o sexo, como deve ser o corpo da mulher, está colaborando IRRESPONSAVELMENTE com o estupro ou como chamam de “transa enquanto ela dorme”, homem, você está estuprando sua parceira seguindo a linha de estupro filmado, que você, seu tio e irmão consomem.
A violência doméstica também não é levada a sério, é vista como exagero da mulher, que “não aguenta ouvir”, que estava “irritando demais”, que toda aquela gritaria faz parte de só mais “uma briga de marido e mulher em que não se mete a colher”. Muitos dos homens que acharam um absurdo a atitude de Diego, de 27 anos, são pessoas abusivas com suas parceiras no “relacionamento aberto” em que vivem, olha o corpo da mulher na rua (ou em qualquer lugar) como se fosse carne a ser comida… Essa pessoa também posta que nossos corpos devem ser livres. Falsa liberdade! É livre para usar aquele short mais curto perto dele, é livre pra beber com ele, é livre pra falar sobre sexo com ele. O moço que se indignou também chama de “brincadeira” a ofensa à colega de trabalho. Muitos dos juízes [homens, homens, homens] de internet fazem parte do clube dos “desconstruídos babacas”. Não confio no sistema que julgou o caso de Diego Novais, mas também não confio em homens que se dizem identificar com o ocorrido.
A violência sexual persegue os passos das mulheres. A insegurança é um sentimento recorrente, o medo de andar pelas ruas escuras é recorrente, e as claras também. A sombra nos assusta, ainda mais quando apressamos o passo porque pensamos ter um homem nos seguindo… Começam aparecer imagens horríveis em nossas mentes. Quantas vezes eu não senti ou senti pela outra menina o desconforto de usar shorts e ser assediada. Está ultrapassado falar que assovio não é elogio? Não. Está ultrapassado falar que não nos sentimos confortáveis com olhares sob nossos corpos como se fossem carnes prontas a serem comida? Não. Ultrapassado é o machismo.
“O ônibus é público. Nosso corpo NÃO”. Frase usada pelo Mad Women, grupos de criadoras mulheres (aqui), na campanha contra os abusadores em transporte público, foi coincidentemente lançada no dia do caso de Cíntia Souza. #MeuCorpoNãoÉPúblico, foi a hashtag criada, além uma série de pôsteres feitos colaborativamente. “O intuito é colar os posteres dentro do ônibus e nos pontos. Você mesma pode baixar as artes em alta qualidade e imprimir numa gráfica ou mesmo na sua casa. O importante é espalhar essa indignação e mostrar que estamos, mais do que nunca, unidas contra nosso silenciamento”, diz Nina Grando no site Ovelha Mag
A vida das mulheres é perpassada por dores como de Cíntia Souza, como de alunas assediadas por seus professores, ou das vozes que nem relatos podem ser lidos porque já foram mortas antes mesmo de aprender a escrever. Vamos relembrar? Estupro não tem idade. Crianças também são estupradas. Diego, e muitos estupradores andam pelas ruas brasileiras impunes, enquanto Cíntia, e as 527 mil vítimas de tentativas ou caso de estupros consumados no país andam pelas ruas brasileiras se sentindo constrangidas pelo assédio, desrespeito, violência, estupro, ou simplesmente medo. Não me espanta tamanha desconfiança na Justiça que desconhece o que é um estupro. Repito, eu não confio no sistema, e nem em quem acredita nele. Ainda acham que machismo não mata?
Se me cabe um “p.s”, recomendo a coluna publicada em vídeo e texto (aqui) da professora de Direito Penal Maíra Zapater, no site de notícias jurídicas Justificando. (Leitura necessária para quem quer entender que tipo de raciocínio o juiz pode ter usado).

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