Impossibilitados de criticar os governos no poder, porque são seus aliados, grupos de direita optaram recentemente por mudar a pauta do debate, da “política” para a “cultura”. As aspas em “política” e “cultura” se justificam porque estes grupos nunca debatem o tema em si, mas o usam de trampolim para atacar adversários e aumentar o número de seus seguidores. Leia mais na coluna de Tomaz Amorim
Por Tomaz Amorim*
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Qualquer um que siga a movimentação política dos últimos quatro anos no Brasil entende que não há “debate sobre arte” em andamento, mas simplesmente uma troca de pautas. Sem PT no governo ou grande movimento social organizado para culpabilizar pelo péssimo estado político e econômico do país, grupos de extrema direita precisam inventar e requentar pautas para não desaparecerem do feed de notícias de seus leitores. Impossibilitados de criticar os governos no poder, porque são seus aliados, optaram recentemente por mudar a pauta do debate, da “política” para a “cultura”. As aspas em “política” e “cultura” se justificam porque estes grupos nunca debatem o tema em si, mas o usam de trampolim para atacar adversários e aumentar o número de seus seguidores. Se não fosse assim, o debate sério sobre “pedofilia”, por exemplo, estaria focado na casa familiar, lugar em que a maior parte dos abusos acontece, ou nas igrejas, ou nas beiras de estrada, ou nos hotéis de turismo sexual, e não em um espaço público, visível a todos e controlado por câmeras como são os museus que estão sendo atacados neste momento. Se estivessem interessados em debater cultura nos museus, eles participariam de seus conselhos, da luta por mais financiamento público para a diversidade cultural e dos esforços por sua democratização. Nem um, nem outro. Seus esforços se reduzem ao fechamento dos museus e aniquilação dos “adversários”.
Quando se coloca publicamente uma falsa polêmica como esta, que flutua tão inconsistentemente – uma hora é contra a “zoofilia”, em outra é “defesa das crianças contra pedofilia”, em outra é crítica sobre “o que é ou não arte”, em outras é uso apropriado de recursos da “lei Rouanet” – aqueles interessados no debate sério têm de fazer uma escolha estratégica: ou escolhem não cair no falso debate, evitando assim promover seus promotores e legitimar seus falsos pressupostos, na esperança de que, com o tempo, a própria contradição se dissipará; ou, assumindo que a falácia sem resposta está produzindo riscos graves e reais, escolhem intervir, buscando desmistificar a retórica em prol de uma posição legítima, com fundamentação factual e histórica, aproveitando a oportunidade para levantar questões relevantes sobre o “assunto”. As notícias de funcionários de museus agredidos, artistas perseguidos e abaixo-assinados pedindo o fechamento de museus apontam para a segunda conjuntura e o que aqui se faz é uma tentativa rápida de expor pressupostos e apontar uma solução a longo prazo para o que há de verdadeiro nesta crise.
É interessante notar, inclusive como sintoma estético-político da época, como os argumentos de ataque e defesa dos museus ironicamente têm vindo invertidos das posições mais históricas no espectro político. A direita “liberal” pede um controle do conteúdo das obras que leve em consideração seu interesse social, no melhor estilo da censura estatal. A esquerda “comunitária”, por sua vez, defende sua liberdade individual de fruição e de exposição dos seus filhos ao que acharem mais apropriado, no estilo liberdade do consumidor. A relação histórica com a população também se inverte: a direita reivindica o lado “popular” do debate, se colocando como voz das massas indignadas, em um clamor abertamente populista. A esquerda, por outro lado, parte em defesa das instituições e da tradição artística ameaçadas por um bando de “desinformados”, em uma postura difícil de não soar como elitista.
A luta política conhece nos exemplos comuns e tenebrosos do começo do século XX o ataque à autonomia intelectual e artística como primeiros sinais da ascensão de governos totalitários, à esquerda e à direita. A universidade pública e os museus costumam ser os primeiros espaços de resistência a serem fechados ou “normalizados”. No Brasil, não foi e não é diferente. A diferença daqui é que o chamado pela resistência, pela defesa destas instituições se choca com o elitismo estrutural – reproduzido e produzido nestas instituições – e pela consequente falta de relação da maior parte da população com elas. A maior parte da população, ao contrário do que a direita faz parecer, não está contra os museus. A maior parte da população não se importa com os museus, porque os museus e as universidades públicas não fazem parte das sua vida, do seu imaginário, não lhe dá nada diretamente (ou pelo menos é assim que ela pensa), mesmo que ela os financie. Como esperar, então, de alguém que nunca foi ao museu (como é o caso de dois terços dos brasileiros), que ele vá visitá-lo pela primeira vez para defender sua existência? A principal estratégia de defesa dessas instituições tão importantes para a democracia passa por sua democratização radical.
Apesar do esforço louvável de certas iniciativas, como a gratuidade em certos dias da semana, visita guiada para professores e alunos de escola pública e exposições com “apelo popular”, os museus têm poucas condições de sanar em suas portas de entrada a tragédia cultural produzida nas portas de saída das escolas brasileiras. Com isso não se desculpa, claro, o caráter colonial, classista, branco e patriarcal da história destas instituições e que estrutura o mercado da arte no Brasil e no mundo ainda hoje, por mais que esporádicos artistas e curadores bem intencionados se posicionem ativamente contra isso. Iniciativas como o Museu Afro Brasil, o caráter pedagógico da exposição permanente do Museu da Língua Portuguesa, as exposições populares do MIS e, mais recentemente, a exposição das Guerrilla Girls no MASP, para ficar apenas na cidade de São Paulo, são exemplos deste contramovimento. Com isto, não se defende, evidentemente, uma arte exclusivamente aplicada ao público, mas se leva em consideração esta importante relação, que nenhum museu do mundo pode ignorar, abrindo possibilidades para que o esporádico visitante se torne mais habitual e, com o tempo, mais capacitado para fruição de obras talvez mais experimentais, vanguardistas, etc. Se das galerias privadas, da quais não se pode exigir função social alguma que não seja comercial (ainda que haja exceções), não se pode esperar este cuidado na formação do público, dos museus públicos, sim, inclusive como raison d’être, como motivo da sua própria existência. Nestes tempos de ataque, vale a pena lembrar do material: quem funda o museu e para quem ele é fundado. Esta lembrança se concretiza no movimento duplo de criticar a ausência e celebrar seus bons programas que, é importante ressaltar em momentos como este, existem e têm se ampliado nos últimos anos. Não é por isso que eles estão sendo atacados (ou, numa leitura mais otimista, talvez seja justamente por isso).
Foto: Obra da exposição “Queermuseu”, em Porto Alegre (RS), que foi fechada recentemente depois de protestos de grupos de direita
*Tomaz Amorim Izabel, 29, tem graduação e mestrado em Estudos Literários pela Unicamp e é doutorando na mesma área na USP. É militante da UNEAfro Brasil. Além de crítica cultural, também escreve poesia [tomazizabel.blogspot.com] e coedita o blog Ponto Virgulina de traduções literárias. Publicou traduções para o português de Franz Kafka e Walt Whitman.
Fonte: Revista Fórum
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