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O antropólogo Antonio Risério e a ex-consulesa da França, Alexandra Loras, por vias distintas, responsabilizam negras e negros pelo racismo, ao associar as bandeiras e reivindicações do movimento negro a posições autoritárias que dizem combater. E, não por acaso, os dois ganham destaque na mídia hegemônica.
Por Dennis de Oliveira*, do Quilombo
Dois fatos impactaram o movimento negro nestes dias. Um foi o artigo publicado pelo prof. Antonio Risério, no caderno Ilustríssima, da Folha de S. Paulo, em que ele faz críticas a determinado setor do movimento negro que considera a miscigenação como genocídio, estendendo esta crítica a todo o movimento. Outro foi a entrevista concedida pela ex-consulesa da França, Alexandra Loras, em que ela considera que as críticas que militantes do movimento negro fizeram a sua exposição em que pessoas famosas brancas têm seus rostos pintados de preto são oriundas de uma “síndrome de capitão do mato”.
O que une estas duas personalidades tão distintas é o fato de nenhuma delas ter proximidade com o movimento negro e o avaliam a partir de impressões pessoais, transformando incômodos particulares seus em categorias de análise. No caso do artigo de Risério, dá para ir mais além: ele foi publicado em um jornal que não costuma cobrir as ações do movimento negro, em especial a já tradicional Marcha da Consciência Negra de 20 de novembro.
Do ponto de vista jornalístico, isto tem um impacto de construção de significados muito particular: o leitor da Folha de S. Paulo, desavisado, vai entender que a Marcha da Consciência Negra é uma mobilização de negros que são contra a miscigenação e, portanto, nas palavras de Risério, reconstroem o racialismo direitista do início do século XX. Uma associação que não só causa repúdio, mas que justifica o fato do jornal Folha de S. Paulo não dar a devida importância a um movimento como este. Por isto, o artigo de Risério tem que ser lido dentro desta perspectiva – ele foi publicado não como uma forma de estimular o debate sobre este assunto (o que é relevante), mas sim de construir uma determinada imagem negativa de um movimento que seria o álibi para o seu desprezo pelos veículos midiáticos.
A descontextualização presente no artigo de Risério atinge, inclusive, um dos grandes intelectuais negros, Abdias Nascimento, cuja obra reconhecida do Teatro Experimental do Negro e as suas contribuições importantíssimas para a história da dramaturgia brasileira é simplesmente reduzida a uma “crise de identidade” do mesmo pelo fato dele também criticar a mestiçagem e ser ele um mestiço (ou chamado de “mulato” no início do artigo).
O tal suicídio do branco que Risério defende também como outro elemento da miscigenação não se observa nos dados que insistem em desmentir esta tese de uma democratização racial via a mestiçagem: homens brancos continuam no topo da pirâmide social e as mulheres negras na base. E talvez a Polícia Militar não esteja plenamente informada deste “suicídio branco” de que fala Risério, pois continua assassinando jovens negros, fato reconhecido pela Anistia Internacional (que tem brancos na sua direção). Gilberto Freyre foi mais sofisticado que Risério, pois não negava a existência das hierarquias sociais e raciais, e fundamentava esta ideia de que as relações privadas e “afetivas” (?) entre brancos e negras constituíam um espaço particular de equilíbrio de antagonismos em um país que não tinha constituído instituições de mediação política, segundo ele. Aliás, o quadro “Um jantar brasileiro“, de Debret (1827), mostra bem o que é este espaço de equilíbrio de antagonismos de Freyre que Risério, de forma extremamente simplória, tenta recuperar no seu artigo.
Loras: síndrome de capitão do mato
Mas o interessante é que, ao mesmo tempo em que a Folha de S. Paulo publicou o artigo de Risério, o blog “Mulheres Positivas”, do portal Estadão (do jornal O Estado de S. Paulo), entrevistou a ex-consulesa da França, Alexandra Loras. Na entrevista, a ex-consulesa rebateu as críticas que recebeu de militantes do movimento negro por conta da sua exposição intitulada “Porquoi pás?” em que imagens de celebridades brancas tem seus rostos pintados de preto. Os militantes do movimento negro criticaram a exposição pelo fato dela remeter à tática do blackface e também porque não atende a uma das reivindicações do movimento que é dar visibilidade a pessoas negras.
A resposta de Loras foi dura: disse que os militantes têm “síndrome de capitão do mato”, que têm “inveja” de uma mulher negra na elite e quer que todas voltem à senzala, num raciocínio simplista que limita os espaços sociais possíveis entre casa grande e senzala e ignora o quilombo como possibilidade de superação das relações de hierarquização racial. Loras ignora que para existir uma Casa Grande tem que haver uma senzala, sendo, portanto, impossível que todos os negros e todas as negras estejam na Casa Grande – haverá sempre uma senzala. O que o movimento aspira é a destruição da Casa Grande e da Senzala (e a construção do quilombo) e não habitar a Casa Grande – coisa que, aí sim, os capitães do mato podiam fazer no período da escravidão. Nesta lógica, quem está com síndrome de capitão do mato é ela, Loras, e não os militantes do movimento negro.
É sintomático que quando ela aborda o racismo na França nesta entrevista, ela sequer menciona as políticas agressivas do Estado francês nos países africanos. O ex-presidente Sarkozy, por exemplo, é apontado como um dos principais responsáveis pela atual situação da Líbia em que pessoas negras estão sendo vendidas como escravizados.
O lugar de fala de Loras não é de uma mulher negra mas sim de uma integrante do staff do Estado francês. O de Risério é de um inconformado como protagonismo de negras e negros na construção de agendas. E isto é que garante os espaços na mídia hegemônica destas duas pessoas. Com o avanço da agenda antirracista, os meios de comunicação hegemônicos buscam apropriar-se desta agenda esvaziando as perspectivas que sinalizam para uma crítica sistêmica ao racismo. Reduzido meramente a críticas comportamentais, a narrativa é direcionar às próprias vítimas do racismo, mulheres negras e homens negros. E, assim, por vias distintas, Risério e Loras chegam a ideias semelhantes: militantes negras e negros têm síndromes de capitão do mato, são invejosos, são tão direitistas como os eugenistas do início do século XX, têm crises de identidade… Em outras palavras, a culpa do racismo é nossa mesmo. Eles se apresentam como pessoas que querem ajudar. Que bondade!
*Dennis de Oliveira é professor da Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP)
Fotos: Divulgação e YouTube
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