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quarta-feira, 23 de maio de 2018

O maestro que venceu o racismo e hoje brilha em Viena


por admin | 22 de Maio de 2018 | Cases
Uma entrevista com Luiz de Godoy, paulistano de 29 anos que driblou inúmeras dificuldades e virou exemplo na música erudita
O paulistano Luiz de Godoy teve uma infância cercada de música. Aos cinco anos, já acompanhava os ensaios de coro infantil do irmão e, antes de ter o próprio piano, estudava no que ficava no porão de sua escola estadual. A determinação, aliada ao talento e ao fascínio pela música, levou Godoy a uma das mais importantes capitais da música erudita: Viena, na Áustria. Hoje, está à frente de um dos principais corais do mundo, os Meninos Cantores de Viena.
Em entrevista ao culturagerafuturo.com, o músico e regente de 29 anos fala sobre a sua vida em Viena e sobre conquistas profissionais. Também lamenta o racismo que sofreu na universidade e defende que a cultura gera futuro, renda e empregos.
Como foi a sua infância?
Nasci em Mogi das Cruzes, a 50 km de São Paulo. Tive uma infância cercada pela música. Acompanhava meu irmão mais velho nos ensaios do coro infantil do qual ele fazia parte e acabei ingressando no grupo já aos cinco anos. Logo quis aprender a tocar piano e tive de esperar alguns anos até poder adquirir o instrumento. Antes disso, estudava no instrumento que ficava no porão da escola estadual que eu frequentava. A música me fascinava tanto que muito cedo despertou em mim a vontade de compartilha-la, de possibilitar a mais gente ter contato com aquele mundo encantado. Como minha família é bastante grande, minha mãe e meu irmão organizaram um coral da família, que eu já regia na pré-adolescência em apresentações em igrejas, asilos e hospitais.

Além da sua família, quem mais foi fundamental no início da sua carreira?
Depois das experiências com coral e da minha formação musical básica, passei a estudar em São Paulo nas escolas públicas de música do município e do estado. Acabei ficando por dez anos na Escola Municipal de Música (EMMSP), o que mudou a minha vida definitivamente. Lá, fui aceito aos 12 anos na classe de piano do professor Renato Figueiredo, um educador musical exímio, que fez minhas perspectivas se multiplicarem de maneira indizível. Como ele sempre foi muito ativo na vida musical de São Paulo, nós o acompanhávamos e íamos aprendendo de maneira bastante direta os detalhes intrínsecos à profissão de músico. Isto foi muito importante, porque, na nossa profissão, em qualquer parte do mundo, o passo entre o amador e o profissional é muito grande e a linha que o define, tênue. Chegando na Europa anos depois, esta característica foi o que me permitiu me instalar no mercado imediatamente, sendo respeitado e requisitado como meus colegas nascidos no berço da tradição musical erudita.

Há quanto tempo está em Viena? O que mais gosta na cidade?
Vim pra Viena pela primeira vez em 2010 para dar um curso de música coral brasileira na Universidade de Viena. Voltei pra cá após terminar meu mestrado em piano e iniciei o mestrado em regência coral e orquestral em 2013. Viena tem óperas a 3 euros quase todas as noites, tem flores lindas nos canteiros e as pessoas colocam vasos do lado de fora das janelas sem medo de alguém roubar. O transporte público te leva a qualquer lugar da cidade de quase 2 milhões de habitantes em, no máximo, 45 minutos e custa 1 euro por dia. Se for estudante ou idoso, menos ainda. Os conceitos de bem-estar social e igualdade fazem parte da vida de todos e fundamentam o governo do país (apesar de uma recente ascensão de ideias contrárias) desde a monarquia. O que mais gosto daqui é a sensação de bem estar, de segurança e dos valores e prioridades (com exceções) da sociedade.

Como surgiu a oportunidade de estar à frente de um dos principais corais do mundo: os Meninos Cantores de Viena? Como se sente no posto?
Participei de um processo regular de escolha para o cargo e fui nomeado após três meses de testes, junto a outros 30 candidatos de diversas partes do mundo. Esta nomeação me honrou muito e tem me possibilitado trabalhar constantemente nas mais importantes salas de concerto do planeta. Mais do que isso, o trabalho diário com crianças extremamente talentosas e interessadas, que também vêm de diversos países, me enriquece cotidianamente. Tenho aprendido bastante e vivenciado experiências pedagógicas e artísticas excepcionais.

O que mais encanta em poder trabalhar com música?
Tenho a impressão de que eu trabalho com música por precisar estar em contato com essa arte a maior parte do tempo possível. Isso explica a jornada tripla, com os Meninos Cantores de Viena, a Wiener Konzerthaus e a Ópera Estatal de Viena. Mozart dizia querer tudo o que é “verdadeiro, belo e bom”. Música é isso. O que há de mais verdadeiro do que os nossos sentimentos? Fazer música profissionalmente é compartilhar com o outro a possibilidade de entrar em contato com esta forma de expressão humana tão íntima, tão direta, sobretudo quando se trata do canto. O que mais me encanta na música é o ser humano. É a percepção da música e como ela nos afeta, é a função da música, central nas nossas vidas.

Você acredita que a cultura pode mudar a realidade das pessoas, que ela pode ser geradora de futuro, de renda e de empregos?
Tenho certeza disso. Numa realidade menos árida, mais confortável do que a que temos no Brasil, vejo isso acontecer naturalmente. Na Áustria, 11% da população canta em coro. Apenas este exemplo já demonstra o tamanho do mercado que há para pianistas, regentes, profissionais de palco, promotores culturais etc. Como disse, trata-se de uma situação mais ideal para que a cultura tome o espaço que ela pode ter. Quando se está seguro, socialmente protegido e confortável, mais gente percebe a cultura como algo essencial. Se nossa prioridade é a subsistência, a manutenção do emprego, não se atrasar por causa do trânsito, fica mais difícil pensar em ir a um concerto no final do dia como algo natural e prioritário. Um dos coros no qual eu trabalho como regente, a Wiener Singakademie, celebra em 2018 seus 160 anos de existência e sempre foi integrado por cantores amadores, que vão ensaiar depois do trabalho. Mas eles também “se dão ao luxo” (porque isso tem de ser luxo?) de faltar ao trabalho quando têm um ensaio com a Filarmônica de Berlim, por exemplo, no meio da tarde. Um coro amador de pessoas que fazem aula de canto como hobby e cantam em nível profissional, com as melhores orquestras do mundo. Tenho certeza de que a música é uma necessidade para estas pessoas. No Brasil, urge que mais e mais gente tome contato com cultura de alto nível (o que não significa exclusivamente cultura erudita), para que, quem sabe, a cultura suba no hall de prioridades das pessoas. Talvez assim seja mais fácil de mudar, ou pelo menos amenizar, embelezar, a nossa realidade muitas vezes tão restritiva.

Que conselhos daria para os jovens brasileiros que sonham em trabalhar com música?
Estudem bastante, o mais que puderem enquanto jovens, mas sobretudo de forma consciente! Não são as horas de estudo que contam, mas a qualidade envolvida. Busquem instrução profissional qualificada, professores que revelem um universo novo a cada aula. Não se contentem com pouco. Ouçam muita música, estejam próximos de bons profissionais, observando-os, busquem oportunidades nos lugares mais inusitados. Se no Brasil não há ópera a R$ 3, encontrem um músico na porta dos fundos do teatro e peçam para entrar junto, num ensaio, por exemplo. Há muitas maneiras práticas de adquirir experiência e, apesar de possivelmente ser mais fácil quando se tem dinheiro ou influência, não é impossível para ninguém atingir, por mais tortuosos que sejam os caminhos, aquilo que se sonha.

Muitas reportagens falam que você sofreu racismo na faculdade, na USP. É verdade? Como foi esse episódio?
Há um gosto muito amargo dentro de mim quando me perguntam sobre racismo no Brasil, porque isso sempre abre as portas para o discurso-acusação da vitimização. A alcunha daquele que se auto-vitimiza vira algo maior do que toda a existência do indivíduo, do que tudo o que ela fez na vida. No Brasil, se a gente toca no assunto, as pessoas nos vinculam a um coitado, pensam que estamos tentando tomar um atalho para algum sucesso ou nos justificando por um insucesso. O que me aconteceu na USP não é exceção, é algo que muita gente vive, considerem-se as centenas de mensagens que recebi em reação às reportagens citadas, nas quais jovens estudantes dizem se identificar com a minha história. Não se trata de uma situação específica, trata-se de um conjunto de ações, como disse, um mecanismo estrutural de nossa sociedade que funciona muitas vezes de maneira até inconsciente, imagino. Como as universidades públicas são ainda muito elitistas e a representatividade do negro no meio da música erudita é, historicamente, baixa, percebi só depois de um bom tempo que a maior parte das experiências negativas que vivi na faculdade se baseavam na imagem que tinham de mim. Uma imagem deturpada, provavelmente, pela aparência física, pelo histórico periférico, por ser diferente dos outros. O que posso fazer para ter uma imagem positiva enquanto estudante? Me dedicar, tirar boas notas, respeitar colegas e professores. Era o que eu me esforçava em fazer e, mesmo assim, com uma média ponderada de 9,3, tive de ouvir que não me esforçava o suficiente, que não tinha como me ver como um pianista. Quando de um convite externo para me apresentar, em vez de ser estimulado, ouvi que aquilo não era pra mim. Isso culminou com a recusa de um professor em me dar aulas, algo que, sem uma razão concreta e legítima, é incabível dentro de uma universidade pública. O gosto amargo a que me referi vem da dificuldade de diálogo, da insistente negação da nossa história de um país que aboliu a escravidão anteontem. Por isso acho importante, apesar do preço a se pagar, falar de racismo. Mas também quero contribuir a partir da minha própria atuação artística, de forma a ocupar espaços historicamente restritos e, assim, atuar para a expansão da representatividade do negro. Quero que crianças negras me vejam regendo e assimilem a possibilidade de também liderarem um grupo. Quero trabalhar com crianças, não só em Singapura ou na Dinamarca, mas também no Brasil. Crianças de quaisquer origens, como as que estão sob minha direção em Viena e que vêm de dezesseis nacionalidades diferentes. Há muito mais do que preto ou branco no mundo e cada indivíduo tem de ser respeitado no que sente e na sua percepção de si mesmo. O outro não tem o direito de nos dizer como temos que nos sentir, se sofremos ou não sofremos algo.

“O que mais me encanta na música é o ser humano. É a percepção da música e como ela nos afeta, é a função da música, central nas nossas vidas”, afirma Luiz de Godoy.
(Crédito da foto: Fernanda Nigro)
Fonte: http://culturagerafuturo.com

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