Do ponto de vista de quem acha que, em todo ator representando um personagem real no teatro, a semelhança com o representado agrega credibilidade, podem ter alguma razão os que rejeitam Fabiana Cozza personificando Dona Ivone Lara. E também quando veem, na situação, desserviço a uma causa, como a da representatividade dos afrodescendentes na sociedade brasileira. Mas essa compreensão e esse julgamento precisam ser relativizados.
Por Nei Lopes*
O caso é que a classificação etnorracial das pessoas no Brasil ainda hoje dá margem a desencontros e divergências. Nos Estados Unidos, por exemplo, as antigas divisões de quadroons (pessoas com suposto 1/4 de sangue negro) e octoroons (1/8) etc. deram lugar às expressões afro-american ou african-american, que identificam os descendentes de africanos, em qualquer grau de mestiçagem. Em nosso país, até a década de 1980, os contingentes formadores da nação brasileira foram de um modo geral oficialmente classificados em atenção à aparência fenotípica, e não à origem.
Na atualidade, o poder público, por intermédio do IBGE, vem usando para os afrodescendentes (termo de criação e aceitação recentes) as categorias “preto” e “pardo”; e os movimentos em prol da cidadania e da inclusão elegeram o adjetivo “negro” para contemplar a união desses dois segmentos. Particularmente, vejo e entendo a junção de “pretos e pardos” dentro da rubrica “negro” como algo altamente favorável. Para mim, só ela permite quantificar o mais próximo da verdade quantos somos; e daí pôr em prática as medidas tendentes à sonhada inclusão. Assim, cheguei à seguinte definição, que tenho usado em meus escritos: para mim, no contexto da Diáspora, negro é todo descendente de um indivíduo negro-africano, com qualquer grau de mestiçagem, desde que essa origem possa ser identificada historicamente; e, no caso de pessoas vivas, desde que seja reconhecida pelo indivíduo objeto dessa qualificação. A partir daí é que podemos identificar como negros e negras personalidades e personagens não necessariamente pretos, como André Rebouças, Luiz Gama, Lima Barreto, no passado; e, no presente, a bela Camila Pitanga e a inditosa Marielle Franco, para ficar só nesses exemplos.
Então, chegamos a Fabiana Cozza, artista afrodescendente pelo lado paterno, que, com sua fina sensibilidade, tem vivenciado essa experiência de modo altamente civilizado. Assim em seus poemas, publicados em 2017 no volume Álbum duplo, ela reverencia sua ancestralidade real e espiritual, entrelaçando referências afro-brasileiras e afro-cubanas definidoras. Da mesma forma que já fizera no CD Partir, de 2014.
Em relação a sua personificação de Dona Ivone Lara no teatro, ouso dizer que não sei, ainda, de cantora brasileira mais capacitada para tal. Não só pela absoluta identificação artística com a personagem, quanto, de certa forma, pelo chamado physique du rôle — a aparência física apropriada para o papel.
Mas a pretendida correção política dos tempos atuais entendeu, com alguma dose de razão, que não era bem assim. Pena! Perdeu o teatro, perdeu a música, e, lamentavelmente, ganharam aqueles que, hoje cada vez mais, fazem cair por terra todos os avanços sociais em favor do povo brasileiro que, em meu entender, foram conquistados da década de 1980 até aqui.
Como escreveu a respeito desse rumoroso caso o violonista Cláudio Jorge, meu grande amigo e parceiro, em magnífica reflexão disponível na internet: já vivemos uma revolução no Brasil e “não há revolução sem feridas abertas”. No caso de nossa querida Fabiana, essas feridas já estão doendo.
*Nei Lopes é compositor, escritor, estudioso das culturas africanas e autor do Dicionário de História da África
Revista Época
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