Reprodução: Mídia Social
Um ambiente de confusão e desinformação ronda a área cultural ante o penoso mundo de incógnitas de Jair Bolsonaro
por Jotabê Medeiros
O Ministério da Cultura é responsável por um legado de 80 anos na proteção do patrimônio histórico e cultural do Brasil (cerca de 1,2 mil bens tombados), além de 30 museus, da regulação dos direitos autorais, das políticas de fomento às atividades artísticas, do cinema e do audiovisual, do livro e da literatura e do acompanhamento e assistência a ações de preservação cultural no processo de regulação fundiária, entre outras atividades.
Para isso, conta com seis secretarias distintas e sete entidades vinculadas, entre elas o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), o Instituto Brasileiro de Museus (Ibram), a Agência Nacional do Cinema (Ancine), a Fundação Casa de Rui Barbosa, a Fundação Palmares, a Fundação Nacional de Artes (Funarte) e a Fundação Biblioteca Nacional.
Daqui a um mês, a partir da entronização do governo Bolsonaro, o Ministério da Cultura deverá ser rebaixado de status. Passará, segundo o novo governo, a ocupar o lugar de uma secretaria abrigada sob o guarda-chuva do Ministério da Educação, junto com o Esporte.
Bolsonaro segue determinação emanada de um documento da Frente Parlamentar Evangélica (também conhecida como Bancada Evangélica, composta por 84 deputados), divulgado no dia 24 de outubro, que dá os contornos da sua estrutura ministerial. A bancada é base do governo eleito.
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Tal recuo institucional só aconteceu pela última vez há 28 anos, quando o governo Collor rebaixou o MinC (o governo Temer também tentou esse desvio, mas levou apenas nove dias para recuar). A pasta da Cultura era fundida à da Educação até 1985, quando veio o período considerado de “redemocratização do País” e o então presidente José Sarney criou o MinC.
Caso se confirme sua extinção, o Brasil se torna um dos poucos países da América do Sul que não tem ministério (Argentina, Chile, Paraguai, Colômbia, Venezuela, Peru, Bolívia: todos têm).
O ambiente de confusão e desinformação ronda a área cultural neste fim de ano.
Um dos filhos do presidente eleito já falou em extinguir também a Lei Rouanet, mas não houve confirmação da equipe do governo eleito. Mais de mil projetos terão sido aprovados até o final deste ano para buscar captação em 2019, entre eles as instituições museológicas e os grupos orquestrais mais celebrados do País, como o Museu do Amanhã (captação de 43 milhões de reais), o Instituto Inhotim, o Masp, a Bienal de São Paulo (todos aprovaram captação de 28 milhões de reais) e a Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo (31 milhões de reais).
A contrariedade de um governo em relação a uma lei (que, por sinal, é muito usada em sua base eleitoral, de Silvio Santos ao dono da Havan, Luciano Hang) não a torna muito estimulante para investidores.
Especialistas em leis de incentivo, no entanto, avaliam que a renúncia fiscal vai permanecer. Por um motivo muito simples: o governo eleito vai querer beneficiar os empresários que destinaram dinheiro para sua eleição e já utilizam o mecanismo. Mas os editais de cultura serão devastados, porque sua finalidade é ampliar o acesso, democratizar e propiciar atividades que são marcadas pela liberdade de expressão e de manifestação.
Suscita preocupação não o que Bolsonaro pode fazer no setor, mas o que ele pode desfazer. Uma gestão inepta poderia aprofundar um desmonte que já está consolidado, como os marcos regulatórios do direito autoral e a política nacional de museus.
Até fevereiro, o Senado deverá finalizar o debate em torno da Medida Provisória nº 850 (que extingue o Instituto Brasileiro de Museus, Ibram, e cria no seu lugar a Agência Brasileira de Museus, a Abram, com dotação orçamentária oriunda do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas, Sebrae, integrante do Sistema S).
A Abram é um casuísmo criado pelo governo Temer para mostrar algum empenho em resolver a situação dos museus brasileiros após o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro.
O atual titular do Ministério da Cultura, Sergio Sá Leitão (que assume, em janeiro, a Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo, a convite do governador eleito João Doria Jr.), demonstra ter mudado de ideia a respeito da MP nº 850 ‒ passou a se mostrar favorável a não mais extinguir o Ibram, mas ainda assim quer criar a Abram.
Na semana passada, já investido de sua nova posição em outro governo de perfil autocrático, Sá Leitão reuniu-se com Ronaldo Bianchi em São Paulo para tratar da Abram, sua mirabolante “herança”. Bianchi foi superintendente do Museu de Arte Moderna de São Paulo, vice-presidente do Itaú Cultural e gerente do Memorial da América Latina, além de secretário-adjunto de Cultura de São Paulo.
Manter duas estruturas de função paralela, segundo prega Leitão, além de contrariar a proposta original do já finado governo Temer, também não deve encontrar guarida no governo Bolsonaro. Na verdade, é bem difícil saber o que pode ser objeto de análise da nova ordem: em cinco anos de diatribes de militante nas redes sociais, o apoplético ministro da Educação indicado pelo presidente, Ricardo Vélez Rodríguez, parece que só lia os editoriais do Estadão.Demonstra afinidade zero com o assunto cultura, e menos ainda com esportes, mas é ele que vai apitar no novo campo.
“Tudo que havíamos conquistado nos últimos anos, através de políticas públicas, programas e projetos que significam a responsabilização do Estado e sua contribuição com o desenvolvimento do País, será total ou parcialmente perdido com a extinção do MinC”, diz Juca Ferreira, que foi ministro de Estado da Cultura duas vezes.
Ferreira crê que, durante o período, apenas os estados e municípios do Nordeste terão condições de desenvolver políticas culturais saudáveis para atravessar um futuro sombrio. Eventos de grande autonomia, como os festivais de música Maloca Dragão, no Ceará (público de 450 mil pessoas) e Se Rasgum, no Pará (mais de trinta artistas por edição e cem eventos paralelos) afirmam uma saúde cultural extraordinária.
O que mais poderá sobreviver nesse ambiente de desarticulação nacional? Talvez aquilo que esteja mais protegido da demagogia e do populismo. A Agência Nacional de Cinema (Ancine) pode ser esse enclave. Mais profissional estrutura montada pela cultura em décadas, o tripé financiamento-fomento-gestão da Ancine parece ter se tornado à prova de antirrepublicanismo.
Mantida fundamentalmente pela arrecadação de um tributo (a Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica Nacional, Condecine, que alimenta o Fundo Setorial do Audiovisual), cujo resultado é revertido para o próprio estímulo à produção, a Ancine parece vacinada contra a estupidez governamental e o dirigismo.
Nem na pífia era Temer conseguiram torná-la irrelevante. Pelo contrário: os valores disponibilizados pelo Fundo Setorial do Audiovisual para o setor (filmes, docs, séries, animação, etc.), tanto pela Ancine quanto pela Secretaria do Audiovisual (SAV), somaram 960,2 milhões de reais em 2018 (até 26 de novembro). Isso só de fomento direto. Falta contabilizar ainda o fomento indireto, que são as permissões para a captação no setor privado.
Por conta dessa constância e a capacidade de planejamento da Ancine, o cinema brasileiro se firmou como indústria nos últimos anos de forma inquestionável. Três produções nacionais da chamada era da pós-retomada, encabeçadas por Nada a Perder e Os Dez Mandamentos, tiveram bilheterias assombrosas, mais de 10 milhões de espectadores.
Ficaram à frente de Tropa de Elite 2, lançado em 2010 (e que tornou o cineasta José Padilha num milionário diretor hollywoodiano), o primeiro filme a desbancar a liderança mantida por anos de Dona Flor e Seus Dois Maridos, de 1976, um dos marcos do período denominado de “conquista do mercado”.
De 1970 a setembro de 2018, 510 filmes brasileiros ultrapassaram os 500 mil espectadores, um feito não tão extraordinário em face do cinema anglofalante ‒ só neste ano 33 películas estrangeiras, como Megatubarão ou O Predador, ultrapassaram esse patamar.
Mas há uma constância e uma conquista progressiva de público que projeta o cinema brasileiro como um dos grandes mercados da atualidade. Os motivos mais evidentes de que a política de cinema vai sobreviver são dois: é uma área superavitária, que gera mais recursos do que consome, e emprega milhares de pessoas.
O projeto conservador da extrema-direita, momentaneamente vencedor, aponta a cultura como inimiga, mas é como eleger o próprio povo como adversário. A cultura é um elemento interdisciplinar, comum a todas as atividades humanas, é o que distingue uma Nação.
Na França do século passado, por exemplo, de André Malraux a Jack Lang, o País se ocupou em afirmar sua singularidade perante o mundo. A cultura funciona como um antídoto contra o avanço da filosofia do lucro a qualquer custo e do vale-tudo social. E segue sempre funcionando, mesmo a contragosto do poder.
Fonte: CARTA CAPITAL
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