De março de 2017 até dezembro de 2018, 18 eventos de rua foram alvo da truculência policial na cidade do Rio de Janeiro, segundo dados do Defezap.
por Samuel Costa / Mídia NINJA
Em 1995, Cidinho e Doca se eternizaram com o funk Eu só quero é ser feliz, que cantava pelo direito à vida digna, a paz e ao lazer dos moradores de comunidade no Rio de Janeiro. Quase 25 anos depois, o mundo do funk é pego de surpresa com a prisão do DJ Rennan da Penha, que era um dos organizadores do Baile da Gaiola, que acontecia na Vila Cruzeiro, zona norte do Rio. Como se pode ver pela data de lançamento da música, a violência contra a cultura nas comunidades é uma realidade antiga, mas para muitas pessoas que vivem nas comunidades, a sensação é de que a situação tem piorado nos últimos meses.
De acordo com dados do Defezap, coletivo que até janeiro deste ano trabalhava com o registro de casos de abusos de poder nas favelas, de março de 2017 até janeiro de 2019 foram registrados 22 casos de repressão a eventos culturais em comunidades da cidade do Rio, com provas em vídeo da repressão. Desse total, 11 eram bailes funk. Somente na primeira quinzena de janeiro deste ano, enquanto o coletivo ainda estava em operação, foram registrados dois casos de repressão a bailes funk na capital fluminense. Os relatos, após o período acompanhado pelo grupo de defesa dos direitos humanos, no entanto têm sido frequentes.
“Diversão hoje em dia não podemos nem pensar”
Um produtor cultural, ouvido pela Mídia NINJA que por motivos de segurança não será identificado, relatou que um DJ que trabalhava em seu baile chegou a ser levado para delegacia, onde teria sido mantido preso por cerca de oito horas. O episódio aconteceu em um domingo de janeiro e além da intercepção do DJ, os agentes também destruíram toda a estrutura da festa. O organizador afirma que eles passaram com o caveirão (carro blindado da polícia) por cima dos equipamentos de som e das barracas de cerveja durante a montagem da festa. Após o atentado, os policiais teriam alegado que o evento não poderia acontecer porque “gerava problemas no dispersamento das pessoas na manhã de segunda-feira”.
Há cerca de um mês, em Niterói, região metropolitana do Rio, um produtor morreu após ter sido ameaçado e ter visto todo o seu equipamento ser destruído pelos policiais. De acordo com os relatos do acontecimento, os agentes teriam afirmado que levariam o organizador do baile para a delegacia, caso ele não pagasse o “arrego”. As cenas de violência que se seguiram foram tão fortes, que o produtor acabou tendo um infarto e falecendo no local. Ambos os casos aconteceram após a desativação da operação do Defezap e não foram computados pelo grupo.
Na semana retrasada, Rennan da Penha foi considerado culpado em um processo que o acusa de ser olheiro do tráfico na região. O processo corre desde 2016. À época ele chegou a ficar encarcerado durante seis meses, mesmo sem saber o motivo pelo qual ele era investigado. A juíza da primeira instância entendeu que ele é inocente, devido a falta de provas. Neste ano, porém, a Justiça reverteu a decisão, após a análise de um recurso apresentado pelo Ministério Público. O processo ganhou repercussão e o DJ recebeu apoio de amigos, fãs e ativistas em ato realizado no Circo Voador, na Lapa, região central do Rio nesta quinta-feira, 28. No dia seguinte, a Justiça expediu o mandado de prisão de Rennan e mais 11 pessoas.
“Pois até lá nos bailes, eles vêm nos humilhar”
“Agora nós temos um governador que assumiu publicamente uma cruzada contra os bailes funk”, diz Salvino Oliveira, ativista do movimento de favelas. “Parece que isso legitima muito a violência do agente que está na ponta. (…) o que faz os casos serem mais recorrentes e mais violentos”, completa. Para MC Moisés da Torre, que esteve presente no ato em apoio a Rennan, a repressão tem se intensificado não somente sobre o funk, mas sobre os diversos eventos culturais que acontecem na favela. “Eu acredito que o governo está se tornando pessoal ao ponto de perseguir não só o funk, mas da favela em si”, afirma.
Para Thainã Medeiros, do coletivo de mídia comunitária Papo Reto, “Rennan é um símbolo”. Ele afirma que pelo fato de o DJ ser conhecido, o seu caso acabou ganhando uma projeção maior nos espaços de mídia, mas que outros locais passam por abusos semelhantes. Medeiros lembra de outro caso que aconteceu também na Vila Cruzeiro, a menos de um mês, quando um show do grupo Poesia Acústica foi interrompido após a chegada de policiais realizando disparos. “Eles tinham autorização, estava tudo certo para fazerem o show ali”, diz. Essas são uma das poucas oportunidades de muita gente ir a um show de graça”, pondera Salvino Oliveira. “Quem de uma área miserável do Complexo da Penha teria a oportunidade de ouvir o Poesia Acústica de graça?”, questiona.
Oliveira, que mora na Cidade de Deus, diz que esse tipo de acontecimento afeta psicologicamente as pessoas que vivem nas comunidades, assim como, quem frequenta, organiza ou se apresenta nos eventos. O ativista relata que a depender do grau de violência, os eventos deixam de ser organizados por longos períodos de tempo, por medo das pessoas. “Na Cidade de Deus, por exemplo, as pessoas já associam o barulho de helicóptero com operação, o que é bastante grave, já que lá é rota dessas aeronaves e tem um trânsito bastante grande delas”, afirma.
“Pessoas inocentes, que não tem nada a ver, estão perdendo hoje o seu direito de viver”
“A gente já trabalha esperando que no dia seguinte aconteça alguma coisa”, revela o produtor cultural da zona oeste ouvido pela reportagem. Ele relata que o estado de vulnerabilidade é grande. “Mesmo fazendo tudo dentro da legalidade é complicado quando é na comunidade. A gente não tem respaldo do Estado”, diz. Segundo ele, na comunidade onde atua, é quase certo que a polícia apareça na segunda-feira após o baile e destrua os equipamentos e barracas. As perdas materiais tem custo alto, há perda de aparelhagem de som, equipamento de iluminação, além das mercadorias dos barraqueiros e ambulantes. De acordo com os números do Defezap, dos 22 casos registrados, apenas dois não resultaram em danos materiais.
“Tem muita gente que vive disso [dos eventos]”, diz o produtor, que explica que muitos trabalhadores têm feito dos eventos de rua a sua fonte principal de sustento. “Na minha equipe eu tenho uma advogada e uma assistente social que passaram a colaborar depois de terem perdido o emprego, por exemplo. Mas para além da equipe de organização, que no caso desse produtor é formada por sete pessoas, os eventos envolvem muitos trabalhadores no comércio de bebida e comida. No baile da zona oeste são quase 400 pessoas que trabalham nas 200 barracas de cerveja e comida, segundo informou o organizador. Já o Baile da Gaiola – que existe há dez anos e recebe uma média de 20 mil pessoas – os números são maiores: são mais de 600 trabalhadores nas barracas, sem contar os 25 da equipe de Rennan.
“Nunca vi cartão postal que se destaque uma favela”
Mesmo diante de um quadro que se apresenta positivamente em termos socioeconômicos, o apoio do Estado, porém, parece cada vez mais distante.Um estudo, feito pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) em 2009 (o mais recente encontrado), estimou que apenas os bailes realizados em espaços públicos das comunidades geravam, no total,um faturamento mensal de R$ 737,1 mil para Mc’s, DJs e equipe de som. Segundo o produtor da zona oeste, o baile que organiza costuma atrair até mesmo pessoas que não moram na comunidade. Ele afirma que em casos, como o que resultou na prisão do DJ que trabalhava em sua festa, acontecem com o intuito de afastar os frequentadores. “É um claro recado dos policiais para dizerem que a festa não vai acontecer”, diz.
Em entrevista, Leleco, empresário de Rennan da Penha, afirmou que o caso do Rennan tem o objetivo de acuar os organizadores de bailes. “Ele já havia sido inocentado, acredito que eles retomaram com isso porque ele ganhou projeção”, diz. Quando subiu no palco do Circo Voador para prestar apoio ao seu colega de trabalho e amigo, ele incentivou que a comunidade do funk se una para se defender das ofensivas do Estado. “Isso aqui não é só pelo Rennan, é pelo nosso ritmo que é tão perseguido!”, disse o empresário.
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