Com somente um diretor, pressionada por crises e pelo TCU, a Agência Nacional do Cinema analisou só seis prestações de contas entre janeiro e agosto. O audiovisual brasileiro corre o risco de ficar paralisado. Desde a posse de Jair Bolsonaro na Presidência, o governo federal não assinou um único ato legal relativo ao cinema – não indiciou nenhum diretor para a Ancine, não nomeou o Conselho Superior de Cinema, nem publicou o decreto da cota de tela.
Por Ana Paula Souza*
Nesta quarta-feira (2), a Agência Nacional do Cinema, a Ancine, amanheceu com mais uma cadeira vazia em sua diretoria colegiada. É a terceira desde o início ano. Das quatro vagas previstas, só uma permanece ocupada. Nela, está Alex Braga, diretor desde 2017.
Formado em direito, Braga se tornou membro da Advocacia-Geral da União em 2002 e, no ano seguinte, foi designado para a procuradoria da Ancine. Entre 2009 e 2017, como procurador-chefe, respondeu pelos atos jurídicos da agência. Agora, responde por todos os atos.
Para evitar a paralisação do órgão que cuida do mercado audiovisual brasileiro, Braga e a última diretora a sair, Débora Ivanov, assinaram, na segunda-feira (30), uma portaria que permite que o diretor que ali restou possa aprovar projetos e liberar recursos. A solução, ao mesmo tempo em que salva o cinema do apagão, simboliza a situação-limite em que a Ancine se encontra.
A agência funciona, por lei, a partir de decisões coletivas de quatro diretores que passam por um longo rito antes de assumir o cargo. Entre fevereiro e agosto, a diretoria colegiada atuou com três membros. No fim de agosto, o diretor-presidente Christian de Castro, após ter se tornado réu num processo judicial, foi afastado do cargo. Sobraram dois. Ontem, encerrou-se o mandato de Débora Ivanov, também produtora cinematográfica. Restou um.
Todas as decisões tomadas por Braga e Ivanov no último mês foram decisões “ad referendum”, o que significa que terão de ser revistas quando a diretoria estiver recomposta. Entra elas, estão a criação de uma força-tarefa para o trabalho de prestação de contas e a junção de diferentes instruções normativas com o objetivo de simplificar processos. Conseguiram evitar a inação, mas não o colapso.
A palavra colapso apareceu, pela primeira vez, num relatório feito pelo Tribunal de Contas da União, o TCU, que exigia providências em relação a um enorme passivo na prestação de contas. Um ano e meio se passou e o passivo, por uma conjunção desastrosa de fatores, só aumentou. Entre janeiro e agosto deste ano, só seis prestações de contas foram concluídas. Seis. Outras tantas foram analisadas, mas estão paradas à espera da solução do impasse com o TCU.
Existem hoje em trâmite na agência, em diferentes etapas de análise e demanda, 4 mil projetos de séries e filmes. Para tentar fazer com que pelo menos uma pequeníssima parte disso deixe o limbo administrativo rumo às filmagens, Braga e Ivanov prometeram centrar esforços sobre 400 projetos que têm 80% do orçamento completo.
A medida, que dá fôlego a alguns, pode, no entanto, deixar os outros sem ar. É comum que um projeto comece a ser filmado com 50% do orçamento. Porque a outra metade pode ser conseguida, justamente, depois do filme rodado, seja com distribuidores interessados em entrar no projeto, seja por meio de recursos destinados à finalização. Detalhe: o produtor tem 24 meses para completar o seu orçamento depois da primeira parte do dinheiro liberado.
Os casos individuais escondidos sob essa pilha de projetos são a face humana – melhor seria dizer desumana – de uma crise institucional que, para quem não é do setor, pode soar incompreensível e distante. Ela inclui desde o produtor que espera a publicação, no Diário Oficial, de uma revisão de orçamento para que seja incluída a trilha sonora no filme pronto até aquele que cancelou as filmagens, depois da equipe montada, à espera da liberação de recursos prometidos desde 2018.
Ao se despedir dos servidores, na semana passada, a diretora Débora Ivanov, disse: “Nesses [meus] quatro anos de mandato, nós vivemos sob três presidentes da República, sete ministros [ou secretários] da Cultura, sete secretários do Audiovisual e sete diferentes diretores da Ancine, sendo que em dois períodos havia só dois diretores podendo agir ‘ad referendum’”.
Agora, a agência vive sob um único diretor. E sob um governo que, desde que assumiu, não assinou um único ato legal relativo ao cinema brasileiro. Leia-se —não indiciou nenhum diretor para a Ancine, não nomeou o Conselho Superior de Cinema, não indicou os membros do comitê que deve gerir os recursos públicos e não publicou o decreto da cota de tela.
O não agir vai, assim, se tornando uma forma de agir.
* Ana Paula Sousa, jornalista, é doutora em Sociologia
Nenhum comentário:
Postar um comentário