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domingo, 6 de dezembro de 2020

O Aprofundamento do Racismo na nova Lei do Saneamento - Por PEDRO CELESTINO DANTAS JUNIOR

Foto memorável! Pedro Celestino (esquerda), sendo homenageado pelo SINDERN!

O Aprofundamento do Racismo na nova Lei do Saneamento

Por ser um negro, penso como um negro. Minha raça, minha pesquisa e meu dia a dia como um sanitarista negro determina minha compreensão de como aprestação dos serviços de saneamento opera numa sociedade marcada por uma profunda desigualdade de racial e de classe.

Numa sociedade racista a segregação espaçoracial é algo visível. Os bairros e branco privilegiados possuem rede de esgoto, sistemas de drenagem eficiente, serviço de coleta de lixo regular e água com qualidade e quantidade adequada.

Por outro lado, as áreas conhecidamente ocupadas pela grande maioria do povo preto a coleta de lixo é deficitária, a irregularidade do fornecimento de água é constante e a qualidade é duvidosa e a presença de ruas sem sistemas de drenagem e esgoto nas vias é algo comum.

Na condição de negro, senti e sinto na pele o racismo entranhado nas estruturas da gestão do saneamento. Presenciei e presencio o descaso da gestão pública para com as áreas tipicamente habitada por negros e grupos marginalizados.

Um rápido olhar para periferias de Natal irá presenciar esgoto a céu aberto, lixões espalhados por todos os cantos, irregularidade no abastecimento de água, ruas sem calçamento e drenagem. Enquanto isso bairros tipicamente ocupados por brancos de classe média alta ostentam uma situação favorável de salubridade.

Um sanitarista engajado na superação das desigualdades social, em

particular, na promoção do saneamento, procura identificar aquelas práticas que causam danos ao status social daqueles grupos marginalizados e a partir delas reformula ações que garantam um serviço de qualidade aqueles e aquelas que mais necessitam. Dessa forma, superar as desigualdades sociais e raciais pelo saneamento deve ser o foco do sanitarista que pensa como um negro.

Pretendo neste breve ensaio criticar uma perspectiva interpretativa que entende que grupos socialmente marginalizados e historicamente subalternizados sejam tratados de forma equivalente aos historicamente dominantes. Que as áreas menos assistidas com serviços de saneamento deve ser tratada de forma igual, ou ainda que a análise técnica de situações/problemas deva manter uma neutralidade.

Este ensaio teórico procura ainda oferecer uma interpretação alternativa às narrativas presentes no discurso neoliberais de privatização do saneamento.

O estranhamento ou a recusa da relação existente entre raça e condições precárias de saneamento demonstra o quanto fomos ensinados para ignorar esta relação, reforçando assim o racismo. Aqueles que acreditam que não há racismo no

Brasil, respaldados por pensadores brancos brasileiros, do início do Século XX, os quais propagaram a famigerada Democracia Racial, vão sempre se perguntar por que se deve analisar e considerar nas pesquisas e estudos de saneamento aquestões raciais?

Ao negar o caráter racial na análise do déficit de saneamento do Brasil o pesquisador impede uma investigação mais aprofundada da origem do problema.

Expurgar raça da equação causal só contribui para a manutenção da negação dos serviços de saneamento para estas populações. É dever de qualquer cientista, que dedica seus estudos e pesquisa do saneamento no Brasil, considerar a temática raça como um componente importante na análise. Sem esse recorte racial não seremos capazes de compreender a realidade de exclusão no Brasil, seja desaneamento ou de qualquer outra forma de negação de políticas públicas.

Por outro lado, focar a análise dos baixos índices de atendimento somente pela ótica da renda, como vem sendo feito na academia e muito bem utilizado pelos propagadores do liberalismo, mascara o caráter racista que está por trás da negação dessas políticas públicas ao povo preto.

É preciso que se diga. As periferias brasileiras e seus altos índices de insalubridade ambiental, violência e desemprego é um produto do descaso de um Estado estruturalmente racista, o qual destina pouquíssimos (ou nenhum) recursos do orçamento, naquelas áreas habitadas por uma maioria negra. Ao contingenciar recursos e políticas públicas nestas áreas o Estado produz um espaço de exclusão social generalizado. Então não esperem um paraíso social.

O impacto da negação dos serviços de saneamento vai mais além do que a questão da salubridade ambiental. O abandono do Estado, em não promover políticas públicas de saneamento, gera reflexos negativos para a economia local, que por sua vez, pode gerar situações de criminalidade, por exemplo. Um bairro repleto de lixo nas ruas, esgoto escoando pelas valas e sarjetas, área que alagam com a menor chuva e que a irregularidade no abastecimento é algo rotineiro, impedequalquer projeto de economia local. Quem iria investir num bairro insalubre? Um bairro ou uma comunidade sem atividades comerciais, sem emprego e sem renda, está propenso a criminalidade. Ao negar saneamento a estas populações só reforça o grau de exclusão que estes grupos já são submetidos.

Com a aprovação da nova Lei do Saneamento (14.026/2020), que prevê a substituição de empresas públicas por empresas privadas, é dado início a uma nova era da prestação dos serviços de saneamento básico no Brasil. Entusiastas da causa enxergam nesse novo modelo de prestação privada de serviço de água e esgoto a solução para os baixos índices de atendimento destes serviços.

Essa nova etapa da história do Brasil, iniciada com a derrocada das forças progressistas e a vitória do atual Presidente da República, está sendo marcada pela negativa declarada do Estado, de  investimento em áreas estratégicas, para a superação das desigualdades sociais e raciais, em particular do saneamento. A nova onda (talvez um tsunami) liberal, surgida com a crise econômica mundial de2008, veio para desmontar tudo àquilo que estava sendo construído com muita luta e resistências pelas populações marginalizadas do Brasil.

Presenciamos nos últimos quatro anos ataques de políticas neoliberais em direitos trabalhistas, bem como nos orçamentos da saúde e da educação, com a lei do teto de gastos, e ainda na reforma trabalhista, a qual dificulta a aposentadoria de várias categorias de trabalhadores. O empobrecimento da população, que já registra altos índices, se agravará com a nova lei da privatização do saneamento, na medida em que será inevitável o aumento do valor das tarifas e o desinteresse de investimentos em áreas da cidade que não trarão retorno financeiro, como as comunidades carentes.

Definitivamente, a eliminação do racismo nas estruturas da sociedade brasileira não será por vias liberais. Fragilizar o Estado é fragilizar o combate ao racismo. Fragilizar políticas estatais e instrumentos de combate à pobreza, de combate ao racismo, de combate a desigualdade racial, de gênero e social é a marca do liberalismo, onde se faz presente no mundo.

Não custa nada lembrar aos adeptos do liberalismo que estes direitos estão garantidos na nossa Constituição, em particular o Art. 3o da nossa Constituição, nosincisos III e IV.

Art. 3º

...

III - Erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;

IV - Promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça,

sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.

Sendo assim, toda e qualquer ação de política de saneamento deve levar em consideração a promoção da igualdade de status social. Todo é qualquer recurso destinado ao saneamento básico deve levar em consideração a superação das condições precárias de salubridade ambiental. Portanto o foco do saneamento deve ser as áreas mais carentes, aquelas onde os índices de saneamento são os mais baixos e não áreas as áreas mais ricas, predominantemente ocupadas por brancos.

A luta pela igualdade de direitos, pela igualdade racial deve partir de um princípio que tem como propósito a eliminação de processos de marginalização social do povo preto. Quando se destina grandes volumes de recursos em áreas da cidade com infraestrutura já consolidada e ignora áreas periféricas, áreas conhecidamente deficitárias, reforça o grau de marginalização dessas áreas da cidade, bem como reflete o grau de racismo estrutural presente nessa tomada de decisão.

Cabe ao Estado e não a iniciativa privada promover as transformações sociais. É a partir de políticas públicas que grupos sociais racializados são incluídos em ações de promoção à superação de suas condições de vida humilhantes. Não é pela iniciativa privada que virá o milagre da igualdade racial. Pelo contrário. No atual estágio do capitalismo, a interferência do neoliberalismo nas políticas publica tem aumentado significativamente, gerando retrocesso civilizacional e aprofundando as desigualdades.

Apoiar esse novo marco do saneamento é contribuir com políticas racistas, é contribuir com o a exclusão social do povo preto, é contribuir para agravar ainda mais a triste realidade do saneamento no Brasil.

A classe média se engana ao achar que privatizar os serviços de saneamento irá melhorar a qualidade dos serviços. Ora vejamos. Como não será possível atender a todos, o número de usuários diminuirá, fazendo com que a tarifa, agora, seja rateada entre poucos. Além do que agravará a saúde da população carente elevando os gastos com saúde.

Não se pode negar que há uma dívida histórica do Estado para com a população negra. O Brasil escravizou os negros por 350 anos. Gerou riqueza para sua elite, para a nobreza e contribuiu para a acumulação primitiva do capital, o qual foi fundamental para a Revolução Industrial da Inglaterra. Com o fim da escravidão os ex-escravos foram abandonados a própria sorte. Esse descaso se reflete até hoje com as péssimas condições de salubridade vividas pelas periferias de todo o Brasil.

Ignorar essa história é pensar como branco. Homem branco meritocrata, que não consegue se livrar de um racismo estrutural que corrói sua alma. Quando falo branco não me refiro a todos os brancos, falo daqueles embevecidos de branquitude, de universalidade, de superioridade, que acredita numa supremacia racial e exercita todo ódio aos não brancos.

Não dá para ser antirracista e ser a favor da privatização do saneamento. Não basta dizer que não é racista e ser a favor do enfraquecimento do Estado. Combater o racismo institucional, o racismo estrutural é incompatível com o discurso liberal.

Fala que é um ativista antirracista, mas apóia e defende a intervenção privada em áreas estratégicas para a superação das desigualdades, como o saneamento básico, não dá né?

Portanto, nossa bandeira de luta mais urgente é banir e eliminar qualquer iniciativa liberal em áreas estratégicas de superação das desigualdades sociais e raciais. Negar qualquer proposta governamental que leve em consideração políticas liberais ou neoliberais (não vejo diferença) de empobrecimento dos trabalhadores e das populações negras que vivem em condições precárias de saneamento.

Não à privatização do Saneamento Básico!!!

Natal, 02 de setembro de 2020


Por PEDRO CELESTINO DANTAS JÚNIOR

NATAL – RN

Geógrafo e Mestre em Engenharia Sanitária

Analista de Regulação em Saneamento

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