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domingo, 12 de dezembro de 2021

São Gonçalo: a solução policial é a chacina, mas vidas negras importam, dizem as crianças

 


A solução policial é a da chacina. Mas vidas pobres e negras importam, dizem as crianças.

Por Raimundo Rodrigues Pereira*

A ocupação da vila das Palmeiras, em São Gonçalo, nos dias 20 e 21 de novembro pelo 7º Batalhão da Polícia Militar e pelo Bope, Batalhão de Operações Especiais do Rio de Janeiro, foi justificada na segunda-feira, 22, no telejornal Bom Dia Rio, da TV Globo, pelo tenente-coronel Ivan Blaz, porta-voz da corporação, pelo fato de que um sargento da PM teria sido morto durante uma operação de patrulhamento e de “os bandidos estarem fazendo o uso de escolas inclusive para o tráfico”. Em nota, a PM disse também que as duas equipes “foram atacadas nas proximidades de uma área de mangue com mata, ocorrendo um intenso confronto”. Disse ainda que na ação foram apreendidas duas pistolas, munições, um uniforme camuflado, além de “813 tabletes de maconha, 3.734 sacolés de pó branco e 3.760 sacolés de material assemelhado ao crack”. 

A polícia não disse que os oito corpos retirados do manguezal pelos moradores durante a noite do domingo e exibidos desde então no lado sudeste da comunidade, num canto próximo do manguezal, tinham sido mortos num ataque dos policiais. Omitiu também que a operação não havia sido comunicada ao Ministério Público Estadual, como era obrigatório tendo em vista decisão do Supremo Tribunal Federal que, desde junho do ano passado, proibiu incursões policiais em comunidades durante a pandemia, salvo casos excepcionais que deveriam, obrigatoriamente, serem comunicados com antecedência ao ministério público. 

Em resumo a polícia mentiu por omissão deliberada. E a justificativa para a operação foi quase como a que foi dada para outra chacina, a do Jacarezinho, pouco antes: a polícia teria agido para defender as crianças das escolas da comunidade. Só faltou, desta vez, ter encarregado da operação uma Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente, como fez naquele caso. 

A nova chacina tem um agravante. As incursões policiais contra o povo pobre desses confins de São Gonçalo são sistemáticas, há tempos. A de maior repercussão foi a de 11 de novembro de 2017, durante o período de vigência do decreto GLO, para Garantia da Lei e da Ordem, no Rio de Janeiro, no governo de Michel Temer, após o impeachment de Dilma Rousseff, quando as forças armadas tomaram conta da segurança do estado. Quem nos conta agora essa história teve dois parentes muito próximos que morreram, um nessa última chacina, e o outro, antes, na de quatro anos atrás. O nome dessa pessoa e dos dois parentes é omitido por razões de segurança.

Na de quatro anos atrás tinha havido um baile de rua, no centro de Salgueiro. O bairro tem uma praça que fica na parte alta de uma colina na qual começa a rua das Palmeiras, para quem vem da BR101 e passou pela praça central do bairro de Itaúna. Essa colina de Salgueiro é um divisor de águas. Depois dela, indo em direção à vila das Palmeiras, se passa por uma ponte sobre o rio Salgueiro que é um dos formadores do Guaxindiba que contorna a vila, forma o manguezal onde ocorreu a última chacina e depois corre para o sul para desembocar na baía de Guanabara.

O baile na rua terminou por uma ordem da polícia, diz a pessoa que nos contou essa história, cujo parente estava lá. E várias pessoas, como esse parente, voltavam a pé do centro de Salgueiro para suas casas na vila das Palmeiras. Depois de passarem pelo grande grupo escolar existente no local, numa curva da estrada antes da Vila encontraram homens mascarados com fuzis guiados por raio laser que dispararam contra eles e deixaram sete mortos, entre os quais a parente próxima da pessoa que entrevistamos que foi chamada por amigos para ir ao local e identificar seu parente.

Tinha havido uma megaoperação policial na área quatro dias antes com a participação de 1500 militares, inclusive da marinha com um cerco da área. No nosso trabalho, andamos por uma trilha que sai do ponto onde ocorreu a matança de 2017 e subimos pelos morros na direção norte até o ponto mais alto onde estão as ruínas do que seria um hotel de décadas passadas quando se sonhava em fazer da área um polo turístico. 

Na investigação que se seguiu, os militares acusados pela matança a rigor revelaram o absurdo do plano que tinham para purificar a área: disseram que tinham se instalado nos morros naqueles dias num plano mais amplo de fechar saídas para os traficantes que seriam varridos pela limpeza que seria feita na vila.

A investigação daquelas mortes não andou. O presidente Temer baixou a lei 13.491/17 que ampliou a competência da justiça militar para julgar crimes dolosos cometidos por militares quando no exercício de funções “de garantia da lei e da ordem”. Como consequência da nova lei, a polícia civil não pôde requisitar as armas dos militares. E o Ministério Público Militar, que poderia fazer a investigação, não a julgou necessária. A Ordem dos Advogados do Brasil, a Comissão de Direitos Humanos da Assembleia, parlamentares e várias outras entidades protestaram, mas em vão.

A nova chacina ainda está sendo investigada. Ao que tudo indica há muitos sobreviventes do massacre. Brasil 247 ouviu através de pessoa intermediária um desses que escaparam do ataque policial no manguezal. Segundo ele, mais de 20 se salvaram, além dele, porque o manguezal é conhecido local de refúgio de gente do local em situação semelhante.

A Faferj – Federação das Associações de Favelas do Rio de Janeiro – que participou de diligências na Vila das Palmeiras, junto com a Defensoria Pública do Estado e outras entidades, diz que a região é uma das mais pobres do Rio e tem um IDH – Índice de Desenvolvimento Humano – muito baixo. As ruas não são asfaltadas na sua maior parte. Para viabilizar a construção dos conjuntos da Marinha e da PM foram feitos grandes aterramentos. Mas o resultado, hoje, é que a via principal do bairro, a estrada das Palmeiras, mesmo nestes dias secos de dezembro, é uma sucessão de poças d´água que só se ultrapassa com muito cuidado e grandes dificuldades. Pode-se dizer até que, no fundo, as chacinas são a contribuição do poder público, através da polícia, para tentar resolver o problema, expulsando ou mesmo matando os moradores. 

Uma gurizada branca, negra e parda frequenta o grupo escolar Marinheiro Marcílio Dias. Brasil 247 visitou as escolas nesses dias de início de dezembro, quando desmontavam as séries de desenhos e painéis da comemoração do dia da Consciência Negra. Como se diz, a vida dos negros importa. Tentar derrotá-los seus inimigos estão fazendo. Mas, como se sabe, onde há opressão, haverá resistência e luta.

*Marcelo Macedo conduziu o repórter em suas duas semanas de viagens pelos confins de São Gonçalo

Leia a parte 1 aqui.

Fonte: BRASIL 247

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