Por Marcos Aurélio Ruy
Ela tinha tudo contra. Nasceu preta, pobre, favelada. Foi casada aos 12 anos. Mas superou todas as adversidades e se transformou numa das maiores cantoras do mundo. E não se trata de meritocracia, mas de resiliência, perseverança e resistência ao ódio, à misoginia, ao racismo e a toda forma de preconceito.
Mesmo com tudo contra, Elza Soares, que partiu nesta quinta-feira (20), aos 91 anos, com mais de 60 anos de dedicação à cultura e à música. Resistiu a tudo e a todos e fez da sua arte a sua vida. Emprestou a sua voz para todas as causas dos oprimidos e foi além.
Em Maria da Vila Matilde, de Douglas Germano, cantou a afirmação da mulher do século 21, resiliente, livre e dona do seu nariz:
Foi perseguida pela maledicência de uma mídia torpe, quando ainda nem existia internet. Sentiu na pele o racismo, a misoginia e o desprezo pela cultura. Vilipendiada por olhos conservadores e maldosos, quando deveria ser sempre reverenciada por seu enorme talento e em elevar o nome do Brasil para todo o mundo.
Expôs seu talento e se expôs com a coragem dos grandes artistas. Foi gigante em tudo o que fez. Ousou e fez da ousadia a sua marca para inovar o canto de um país altamente cantante. E por mera coincidência a gigante da música popular brasileira se foi no mesmo dia que o amor de sua vida (em suas próprias palavras), o jogador de futebol Mané Garrincha (1933-1983) e da cantora estadunidense Etta James (1938-2012), outra grande voz da música na resistência ao sistema excludente e castrador.
Em Meu Guri, de Chico Buarque, ela diz cantar para o autor e principalmente para Garrincha, o guri do Brasil:
Até em sua data de nascimento há marca de sua irreverência para marcar o que há de melhor que há na força da mulher negra brasileira. Com sua voz rouca inigualável se agigantou contra o racismo, o machismo e a LGBTQIAP+fobia.
“Reza a lenda que eu faço aniversário duas vezes no ano. Reza a lenda e rezo eu pra agradecer por tanta vida. Pra quem passou pelo que eu passei, celebrar durante um mês inteiro é pouco. É em 23 de junho ou 22 de julho? Não importa. Eu comemoro as duas datas e nesse ano será o mês todo. É cara, mais uma primavera, mais um ‘passaporte’ carimbado rumo a próxima década”, escreveu ela em suas redes sociais em 2020, nas comemorações dos seus 90 anos.
Em Mulher do Fim do Mundo, de Alice Coutinho e Rômulo Fróes. Elza mais uma vez empresta a sua voz para denunciar a violência de gênero, sem perder a crença num futuro diferente:
Iniciou carreira com sua participação no programa “Calouros em Desfile”, apresentado por Ary Barroso (1903-1964), na rádio Tupi. Para ridicularizar a visível pobreza da caloura, Ary Barroso pergunta: “De que planeta você veio, minha filha?” A resposta foi imediata: “Do mesmo planeta que o senhor, seu Ary. Do planeta fome”, nome de seu disco de 2015.
Ela cantou o que quis e o que ela quis sempre encantou os ouvidos e as mentes de quem sabe que a cultura é essencial para a vida. O mundo perdeu nesta quinta-feira uma de suas maiores vozes em favor da melhoria de vida das pessoas marginalizadas por uma sociedade temerosa do novo.
Essa carioca da gema cantou samba, bossa nova, funk, soul, MPB e muitos outros gêneros musicais com a mesma desenvoltura. Não teve medo de ousar. Em uma entrevista ela disse que “a gente é criada para ser assim, mas temos que mudar. Precisamos ser criadas para a liberdade. O mundo é grande demais para não sermos quem a gente é”.
Em Libertação, de Russo Passapusso, ela canta com Virgínia Rodrigues e o grupo BaianaSystem a vontade de superação e a disposição de resistir sempre:
Na 12ª Bienal de Cultura da União Nacional dos Estudantes (UNE), no ano passado, mostrou estar sempre disposta ao novo ao afirmar que “eu vi jovens incríveis, que estão à frente da diretoria de uma entidade tão importante quanto a UNE, falando da maneira com que eu gostaria que os adultos falassem. Com amor, fé, esperança e com o protesto afiado e no tom certo”.
Assim foi, é e será sempre Elza Soares. A “Cantora do Milênio”, da vida, do amor e da resistência a tudo o que insiste em nos empurrar para baixo.
Certamente, Elza sobrevive nas vozes de Luana Hansen, Kênia França, Duda Beat, Majur, Pabllo Vittar, Renegado, Criolo, Emicida, Tulipa Ruiz, Marisa Monte, MC Carol, Linn da Quebrada, Liniker, Negra Li, Yzalú, Fabiana Cozza, entre muitas outras cantoras e cantores, que fazem da arte uma forma de transformar o mundo.
Obrigado Elza por ter disposto a sua voz a elevar o patamar de nossas vidas com a sua marca indelével de superar os preconceitos e os dissabores da vida.
Veja trailer do documentário May Name Is Now, Elza Soares. Se possível assista o filme completo no canal de TV paga Curta ou em plataformas de streaming, vale a pena:
Com a certeza de que Elza não foi a mulher do fim do mundo, mas, sim, da luta pelo início do mundo novo. Voz indispensável para todos os ouvidos sedentos de novos cantos e saberes.
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