A
tragédia grega é uma instituição político-social de cunho democrático – uma
reflexão que a cidade faz sobre o nascimento da democracia
Entre os séculos 5 e
4 antes de Cristo, a Grécia encena suas maiores tragédias. Como gênero teatral,
a tragédia é encenada em dois espaços: o palco (onde
ficam os atores profissionais que, falando em prosa, representam deuses, heróis
e heroínas); e o coro (onde ficam o grupo de pessoas que não
são atores profissionais e que, cantando em verso, narram e comentam o que se
passa no palco).
A palavra
encontra-se, assim, dividida – a prosa no palco e o verso no coro. O que
significa essa divisão da palavra? Que a tragédia é uma instituição
político-social de cunho democrático – uma reflexão que a cidade faz sobre o
nascimento da democracia. No palco, estão deuses e personagens do mundo
aristocrático – reis, rainhas, príncipes e suas famílias, definidos pelos valores
da aristocracia, isto é, pela coragem na guerra, pela beleza física ou pelos
laços de sangue ou de família.
Mas o coro é um
colégio de cidadãos, que, comentando as ações que transcorrem no palco, avalia,
julga e dialoga com as personagens aristocráticas. Dessa maneira, a divisão
cênica da palavra visa marcar a diferença entre o passado aristocrático (que
está no palco) e o presente democrático (que está no coro).
Uma
das funções políticas da tragédia é mostrar que a lei da sociedade
aristocrática precisa – e pode – ter um fim
Que ação se
desenvolve no palco? Uma sequência de crimes sangrentos impostos pela lei da
aristocracia, que exige que um crime sangrento no interior da família seja
vingado por outro crime igualmente sangrento no seu interior. O ponto inicial
da tragédia é sempre um parricídio (como no caso de Édipo), um fratricídio
(como no caso de Antígona), um infanticídio (como no caso de Ifigênia), um
adultério seguido de assassinato (como no caso de Medeia) e assim por diante.
Esse crime inicial
narra a exigência imposta pelos deuses de que ele seja vingado por um outro
crime tão sangrento quanto ele. Ora, esse novo crime, por sua vez, exige
reparação por meio de um novo crime sangrento. A sequência de crimes sangrentos
no interior da família é interminável, revelando que a lei de uma sociedade
aristocrática pertence a um espaço privado, a família, e se realiza como
vingança sem fim. Uma das funções políticas da tragédia é mostrar que essa lei
precisa – e pode – ter um fim.
De fato, as tragédias
costumam ser escritas formando trilogias. Na terceira peça, os deuses – que
desde a primeira determinaram a obrigatoriedade da vingança – se reúnem e
discutem se, afinal, devem continuar impondo essa lei aos mortais ou se cabe
aos mortais julgar os próprios mortais, criando suas leis e seus tribunais.
Representação
da deusa Atena no Partenon
Os deuses decidem que
os mortais julguem os mortais, passando do espaço privado da família para o
espaço público da cidade. Assim, por exemplo, na terceira peça da
trilogia Oréstia, de Ésquilo, a deusa
Atena recomenda aos atenienses, seu povo, que assumam a responsabilidade
pública pela Justiça:
“Cidadãos de Atenas, como ireis
julgar agora, pela primeira vez, um crime sangrento, escutai a lei do vosso
tribunal. Sobre esse rochedo de ares, doravante sentar-se-á perpetuamente o
tribunal, que fará ouvir o julgamento de todo homicídio. Este rochedo é chamado
de Areópago. Aqui, o deus Respeito e seu irmão, o deus Temor, noite e dia,
igualmente manterão os cidadãos longe do crime enquanto conservarem inalteradas
as leis. Não mancheis a pureza das leis com a impureza dos estratagemas.
Guardai bem e com reverência a vossa forma de governo. Nem anarquia, nem
despotismo – eis a regra que aconselho à cidade observar com respeito.”*
(Texto
baseado em palestra proferida pela autora no mini-curso “Democracia: história,
formas e possibilidades”, promovido pela Boitempo em outubro de 2019).
Fonte: Portal BRASIL CILTURA
Nenhum comentário:
Postar um comentário