Por Valdete Souto Severo (Foto: Carolina Antunes)
A música da qual tomo emprestado o título desse artigo é do Emicida, com outros artistas. Chama “AmarElo”. Começa com trecho do Belchior: “tenho sangrado demais, tenho chorado pra cachorro; ano passado eu morri, mas esse ano eu não morro”. A verdade é que desde 2016 tenho essa sensação: de chorar demais, sangrar demais, sofrer demais. O golpe; a aprovação da “reforma” trabalhista; a eleição; a “reforma” da Previdência; a pandemia e com ela a explicitação da violência contra a vida. Ouvir esta música, enquanto arrumo a casa e vejo, pela janela, alguém a procura de alimentos na lixeira da rua, me fez querer escrever. Faz um mês que não ocupo esta coluna.
Não escolhi esse silêncio. Ele se impôs.
Como diz a mesma música, “tanta dor rouba nossa voz, sabe o que resta de nós? Alvos passeando por aí”. É assim que me sinto. Um alvo andando por aí. Os atiradores são parentes, amigos próximos, colegas de trabalho. Eufóricos com a possibilidade de emular seu mito, parecem nem perceber que somos todos alvos de uma política de espoliação e morte.
As notícias de violência contra trabalhadoras e trabalhadores, na tentativa de obrigá-los a votar no candidato do patrão, reproduzindo explicitamente a prática do cabresto tão intimamente relacionada ao escravismo no Brasil, é o exemplo mais eloquente disso. Ao contrário do que ocorreu quando ainda nem havia vacina disponível, não vejo discussão acerca da gravidade dessa atitude, da necessidade de proibição de funcionamento de suas empresas. Não são trabalhadoras e trabalhadores com garantia de emprego, salários decentes, condições de mínima previsibilidade na vida. Ao contrário, são pessoas, cujos trabalhos, mesmo tão precarizados, as tornam privilegiadas, diante da quantidade de desempregados e desalentados que lutam diariamente para sobreviver. A ameaça da despedida, nesse caso, equipara-se a uma ameaça de morte.
Confesso meu desajuste. Difícil falar diante de um quadro tão claro e ao mesmo tempo tão distorcido. Convivo com a estranha sensação de que tudo já foi dito. Elogio à tortura. Racismo explícito. Sexismo. Admissão de práticas de corrupção. Ode contra direitos sociais. Deboche com quem sofreu a asfixia causada pela covid-19.
As agressões se repetem e não são apenas simbólicas. Não se trata somente de ouvir, como ouvimos em março de 2020, quando a pandemia chegou ao Brasil, que “brasileiro pula em esgoto e não acontece nada”. Àquela época, 77 pessoas tinham morrido com diagnóstico de covid-19. Menos de um mês depois, já eram mais de 2.500 mortes. Quando esse número dobrou, ouvimos: “lamento, quer que eu faça o quê”? E havia tanto a ser feito: distanciamento, garantia de emprego, incentivo ao uso de máscaras, contratação emergencial de mais profissionais da saúde, incentivo à ciência para potencializar as possibilidades de desenvolvimento da vacina, garantias sociais.
Difícil ter que lembrar, eu sei. Mas é preciso. É necessário.
É a única forma que temos de enfrentar o trauma. Em novembro de 2020, quando já eram mais de 162 mil mortes, ouvimos que éramos um “país de maricas”. “Machões”, sob essa perspectiva, eram os que se expunham ao vírus fatal, sob o imperativo de que a economia não podia parar. Faz sentido, “machão” é violento, ameaça, impõe seu ponto de vista, interdita o diálogo.
É de violência que estamos falando. Violência contra a vida. A mesma violência que normaliza o que se tem denominado “assédio eleitoral”, contra uma classe espoliada, cujos direitos foram ceifados por uma lei também eufemisticamente chamada “reforma”, com apoio de todas as estruturas sociais que agora se dizem espantadas com o monstro que ajudaram a criar.
É discurso de morte, portanto. Por isso, mesmo durante a pandemia, todas as medidas adotadas seguiram sendo de precarização do trabalho. Nem quando atingimos 260 mil mortes houve mudança na política que acusava o sofrimento de “frescura”, “mimi”. A CPI da COVID-19 documentou a materialização dessa violência. Foi apontada a prática de atos que indicam prevaricação, infração a medidas sanitárias, charlatanismo, emprego irregular de verba pública e crime contra a humanidade. Nenhum setor organizado da sociedade, porém, problematizou a supressão de direitos, a precarização das condições de trabalho, como causa direta da maior exposição à morte pelo vírus. Não houve quem efetivamente propusesse garantia contra a despedida, redução da jornada, aumento de salários, aposta na contratação sob a modalidade constitucional do vínculo de emprego.
O que mais é preciso dizer?
Todo limite foi ultrapassado: da educação, da civilidade, do respeito à vida, ao luto, à dor, à natureza. Essa violência é palpável, podemos senti-la como se adotasse uma forma física. Quase 700 mil mortes, sem velório, sem a possibilidade de realizar o luto. Milhões de desempregados, desalentados, desabrigados. Comida envenenada. Florestas desmatadas. E um governante que imita a falta de ar. Distribui orçamento secreto. Debocha. Nega-se a comprar vacina. Veta o fornecimento de absorventes a meninas e mulheres pobres. Retira direitos sociais. Faz tudo isso diante de um silêncio cúmplice que altera a linguagem, naturalizando o que não pode ser naturalizado, porque serve aos interesses de quem ocupa postos de poder.
Compartilho o receio coletivo de que essa violência se prorrogue. Compartilho o cansaço. A dor. É agressão demais e talvez seja por isso que muitos fingem esquecer. Ou talvez seja porque lhes sirva enfrentar a distopia como um desvio de percurso, passível de ser corrigido com uma eleição. Não é, e se não compreendermos a relação entre todas essas violências, não conseguiremos avançar. Talvez a mais simbólica – já que estamos em uma sociedade de trabalho obrigatório – é justamente aquela que, com apoio e cumplicidade de tantos, destroçou o sistema de proteção social representado pelas legislações trabalhista e previdenciária. E agora reedita a coação eleitoral, lembrando-nos que ainda somos um país de senhores e escravizados.
O que nos serve de estímulo, é compreender que a história segue. Temos tarefas imediatas a cumprir. Ocupar nossos espaços, insistir no diálogo, reafirmar nossa fé em um futuro que ainda não foi escrito. E não desistir, nem normalizar a violência. Como canta Emicida, na mesma música:
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