A hegemonia sociocultural e econômica dos EUA exportou um Papai Noel de roupas vermelhas e uma garrafa de Coca-Cola em mãos como árbitro das celebrações natalinas.
por Gabriel Deslandes
O feriado religioso mais popular da cristandade carrega em si próprio uma grande contradição: é durante as celebrações de Natal que ao menos quatro dos sete pecados capitais, condenados pelo cristianismo, são mais venerados – a gula, a luxúria, a avareza e a inveja.
A festividade cristã se tornou uma das datas comerciais mais lucrativas e, embora esse fenômeno não seja essencialmente norte-americano, ele se agudizou à medida que avançava a hegemonia sociocultural e econômica dos EUA, que exportou um Papai Noel de roupas vermelhas e uma garrafa de Coca-Cola em mãos como árbitro das celebrações natalinas em todo o mundo.
Basta estudar a própria construção simbólica do Natal tipicamente norte-americano para constatar que a festividade bebe das mais diversas tradições culturais europeias, trazidas por imigrantes e incorporadas à cultura popular dos EUA. É nesse sentido que o antropólogo britânico Daniel Miller – estudioso formulador da “Teoria do Natal”, por meio da qual expõe descaracterizações na data, trazidas pela obrigação da troca de presentes – identifica uma série de linhas de influências que atravessaram os mares e passaram a operar na celebração do Natal desde meados do século 19.
Segundo Miller, o Natal moderno mistura o corte de árvore da tradição alemã, o preenchimento de meias da tradição holandesa, o envio britânico de cartões natalinos e a manjedoura dos presépios típica dos italianos. Além disso, os dois artistas responsáveis pelas representações visuais mais influentes da figura do Papai Noel tinham fortes antecedentes europeus: no século 19, o cartunista Thomas Nast (nascido na Alemanha em 1840) e, no século 20, o ilustrador publicitário Haddon Sundblom (norte-americano de ascendência sueca e finlandesa).
Entretanto, para o professor de Estudos de Mídia George Mckay, da Universidade de East Anglia, houve nos EUA um elemento fundamental para que todos esses símbolos oriundos de ritos cristãos e pagãos se aglutinassem em um só arquétipo moderno de festejo natalino: o fenômeno do consumo de massa.
O Natal disseminado como ocasião de consumo de massa impulsionou o feriado como “festival global”. Se o Natal contemporâneo, de fato, envolve uma amálgama de costumes, geralmente específicos de nações, regiões ou até aldeias, também está integrado à formação de símbolos e costumes “globais”, isto é, influenciados pelos processos de globalização e americanização. Na própria sequência de “’festivais de consumo” no calendário norte-americano, que inclui o Halloween e o Dia de Ação de Graças, somente o Natal alcança o status de festejo global, tendo como principal figura visual o Papai Noel, um personagem criado nos EUA.
Um discurso recorrente em críticas ao aumento do consumo no Natal é que há uma contradição entre a concepção tradicional da data como festividade cristã e ritual de celebração da família – espaço caracterizado pela afetividade – e o comércio durante a temporada natalina – espaço intrínseco à esfera impessoal do mercado. O “materialismo” vigente no sistema de mercadorias seria a força capaz de destruir o “espírito natalino”, e a oposição imediata a ele seriam certos laços de sociabilidade, em especial a família nuclear.
O ritual de dar presentes no Natal remonta às sociedades pré-industriais. Ele começou na época das 13 Colônias, quando os primeiros norte-americanos mantinham uma antiga “obrigação” de oferecer presentes aos mais pobres. Naquele período, não havia ainda a troca de presentes, mas apenas uma “doação”. Porém, essa tradição futuramente se readequou a um conjunto de práticas e inovações na vida social e comercial ligadas ao desenvolvimento do capitalismo ocidental nas esferas urbanas, tanto doméstica como pública. Ao mesmo tempo, a expansão das lojas de departamentos criou uma experiência de lazer e de estilo de vida consumista, e a publicidade se tornou uma forma dominante de comunicação e persuasão da mídia de massa, baseada, em grande medida, nos novos produtos disponíveis nessas “catedrais do consumo”.
Ainda no século 19, os lojistas norte-americanos perceberam o enorme potencial de impacto do Natal no aumento de suas vendas. O primeiro reconhecimento do aumento sazonal nas vendas e no volume de negócios no período natalino – fenômeno comercial hoje conhecido de todos – aconteceu já em 1867, quando Rowland Hussey Macy, dono da tradicional loja de departamentos Macy’s, estendeu o horário de funcionamento de sua loja em Nova York até meia-noite, fazendo com que, em único dia, atingisse um recorde de vendas superior a US$ 6 mil. Em 1874, a Macy’s inovou ao apresentar na vitrine uma promoção de bonecas importadas no valor de US$ 10 mil, exclusiva para a compra de presentes natalinos, e ao oferecer bônus de Natal a seus funcionários.
O significado social da popularização das lojas de departamentos nos EUA e, mais tarde, na Europa no final do século 19 e início do século 20 ultrapassa a mera ascensão do consumo e do “materialismo”. Era algo inédito que consumidores pudessem entrar gratuitamente em uma grande loja, e a disposição acessível das mercadorias estimulava as compras, mesmo para quem não tivesse condições de comprar. Em outras palavras, as lojas de departamento democratizaram o desejo.
Além disso, foi nessa época que a loja de departamentos Montgomery Ward, em Chicago, criou no imaginário popular outro personagem símbolo do Natal: Rudolph, a rena do nariz vermelho. Em 1939, mais de 2 milhões de cópias da história de Rudolph foram enviadas junto com os catálogos da Montgomery Ward. Uma década depois, a canção homônima cantada por Gene Autry, baseada no personagem da rede de lojas, tornou-se um grande sucesso e continua sendo uma das canções de Natal mais populares da temporada natalina nos EUA, evidenciando a inter-relação entre publicidade e cultura popular. Todavia, nenhum símbolo expõe de forma mais explícita a relação entre a temporada natalina e predominância do jogo das relações mercantis do que a figura do Papai Noel.
A divindade do “materialismo”
Com seu saco de presentes e dotado de toda sorte de poderes mágicos – onisciência, voo, viagem no tempo e mudança de forma –, o personagem do “bom velhinho” foi central na transformação do Natal em um festival global. Sua principal característica como provedor de bens de consumo fez com que alçasse o status de símbolo da abundância material e do prazer hedonista e, por consequência, de “divindade do materialismo”, como diria Daniel Miller. Ele – e não Jesus Cristo – passa a ser a figura central de organização do evento, e o nascimento a ser comemorado não era mais o do aniversariante da data segundo a tradição cristão, mas o de um novo nicho de mercado.
Figura sagrada feita sob medida para um mundo secular, o Papai Noel moderno é fruto da fusão sincrética de vários personagens diferentes trazidos por imigrantes europeus aos EUA. É o que aponta Claude Lévi-Strauss em seu clássico ensaio O Suplício do Papai Noel, de 1952, em que analisa um caso ocorrido no Natal anterior em Dijon, na França, quando católicos e luteranos se uniram para queimar um boneco de Papai Noel em uma fogueira em protesto pela “crescente paganização do dia de Natal” – um episódio que o jornal espanhol El País apelidou de “o último auto de fé da Europa”. Para o antropólogo francês, a variedade de nomes dados ao personagem – Papai Noel, São Nicolau ou Santa Claus – demonstra que ele é resultado de um “fenômeno de convergência e não um protótipo antigo conservado por toda parte”.
Por outro lado, o “bom velhinho” identificado fundamentalmente a partir dos EUA não se assemelha mais com os personagens europeus que o originaram, como São Nicolau (protetor dos marinheiros e comerciantes) ou Knecht Ruprecht (companheiro de São Nicolau, de acordo com o folclore alemão). Ele tem uma personalidade mais apresentável para sua aparição em lojas e residências e distribui presentes e não apenas frutas, nozes e brinquedos caseiros. Com uma aparência paterna não ameaçadora, sua imagem como conhecida hoje surgiu em janeiro de 1863 pelas mãos do cartunista político da revista Harper’s Weekly, Thomas Nast. Em um contexto de Guerra da Secessão nos EUA (1861-1865), o Papai Noel já estava localizado ideologicamente nos desenhos de Nast. Para construir parte do imaginário da União (o Norte) durante a Guerra Civil, a implicação era que as crianças sulistas se perguntariam por que o Papai Noel não as estava visitando.
Um homem estranho, gordo e de bochechas rosadas que invade as casas no meio da noite e frequentemente visita as crianças em seus quartos passou a evocar não um pesadelo, mas um sonho e desejo, e se tornou símbolo de um festival domesticado. Por ironia, a despeito de sua aparência distinta e de sua origem localizada reconhecidamente nos EUA, o Papai Noel não é facilmente identificável como uma figura tipicamente norte-americana – suas roupas, por exemplo, são vermelhas e brancas e não vermelhas e azuis, tais quais as cores da bandeira nacional. Talvez a única exceção a isso seja o primeiro desenho de Nast, de 1863 – um Papai Noel em um acampamento de tropas da União com a bandeira estrelada em seu paletó e calça listrada.
De fato, a americanidade do Papai Noel se tornou mais clara desde os primeiros antecedentes históricos da propaganda para o marketing sazonal de Natal ainda no século 19, quando uma loja na Filadélfia utilizou o personagem para fazer propaganda de suas mercadorias aos transeuntes e recorreu à sua representação visual que se tornaria clássica no século seguinte – alegre, corpulento, com uma barba branca e vestindo roupas felpudas. Pois essa é a imagem incorporada à publicidade da Coca-Cola Company no início da década 1920, quando a marca de bebidas começou a fazer campanhas de Natal nas cores corporativas da empresa em vermelho e branco, a fim de expandir as vendas de refrigerantes no inverno. Foi a campanha da Coca-Cola que tornaria tal representação do Papai Noel consagrada no imaginário coletivo contemporâneo.
A companhia de bebidas utilizou o personagem em sua publicidade sazonal pela primeira vez em 1915 e, mais tarde, quando desenvolveu propagandas de sua água mineral White Rock especialmente para a revista Life entre dezembro de 1923 a 1925. Os anúncios mostravam um Papai Noel em trajes e cenários familiares: roupas de pele vermelhas e brancas, sentado ao lado de uma geladeira, em ambientes domésticos de Natal confortáveis e acolhedores (em geral, em contraste com uma cena de inverno do lado de fora, visível através de uma janela). Em meio à década da Proibição pela Lei Seca (1920-1933), os anúncios popularizaram a White Rock a ponto de seu nome ter virado sinônimo de água com gás e, mais tarde, um código secreto para pedir bebidas alcoólicas misturadas nos bares norte-americanos.
Foi a partir de 1931 que a figura visual do Papai Noel ganharia extrema popularidade com os traços do ilustrador Haddon Sundblom e demarcaria definitivamente a conexão no seio da sociedade norte-americana entre a publicidade natalina e o comércio. Os desenhos coloridos do personagem por Sundblom – impressos não só em revistas, mas também em cartões natalinos – ocupam até hoje um lugar central no imaginário público sobre o que representa o Natal.
Do ponto de vista mercadológico, a sazonalidade das vendas é um ponto nevrálgico para produtos refrigerados, já que há pico de vendas no clima quente (verão) e queda no frio (dezembro é inverno nos EUA). Assim a Coca-Cola soube articular sua estratégia de marketing sazonal de aumento de gastos dos consumidores com a compra de presentes e, para tal, optou por associar sua imagem ao consumismo crescente da época festiva. Por isso, sua campanha inicial foi “Sede não conhece estação”. Inicialmente, os anunciantes apresentaram Papai Noel relaxando de seus trabalhos bebendo o refrigerante; depois, mostraram como as crianças poderiam deixar não mais leite, mas uma Coca-Cola, para o “bom velhinho”; por fim, sugeriram que os presentes entregues pelo Papai Noel eram em troca do próprio refrigerante. Todo esse conjunto de códigos compunham a identidade de uma marca poderosa com reconhecimento transnacional.
A “Coca-Colonização” do mundo
No anúncio de Natal da Coca-Cola de 1943, Papai Noel é mostrado caminhando alegremente pela neve virgem com um pesado saco de presentes sobre um ombro e uma garrafa de Coca-Cola na outra mão. Suas botas cobertas de neve, indicando a longa jornada que peregrina, e o slogan “’Onde quer que eu vá” são a metáfora perfeita da ambiciosa expansão global do plano de negócios da empresa. Por trás dela, na direção em que ele está caminhando, também flutua um globo terrestre, enrolado com uma fita e um rótulo de presente de Natal. No globo, podem ser facilmente identificadas as Américas, a África e a Europa, enquanto o logotipo “Coca-Cola” cobre o território dos EUA no mapa.
Na mesma época, os soldados norte-americanos no front na Europa bebiam garrafas de Coca-Cola fornecidas pelo próprio governo dos EUA como parte dos esforços de guerra. O slogan publicitário de 1945 era: “Sempre que você ouve ‘Coca-Cola’, ouve a voz da América”. Cinco anos depois, as fábricas da companhia já estavam estabelecidas em diversos países da Europa Ocidental, e a capa da revista Time mostrava o mundo bebendo uma garrafa de Coca-Cola. O refrigerante estava rapidamente se tornando a bebida do planeta.
Na Europa do pós-Guerra, a chegada da Coca-Cola provocou oposição em vários países. Em muitos casos, os interesses locais de bebidas tentaram bloquear a entrada do refrigerante americano, como na Bélgica e na Suíça, onde a companhia enfrentou ações judiciais sob a alegação de que continha uma quantidade perigosa de cafeína. Na Dinamarca, as cervejarias conseguiram banir a bebida temporariamente. Na maioria dos casos, os partidos comunistas locais lideraram essa oposição, descrevendo a bebida como uma droga viciante ou mesmo um veneno. Na Itália, o L’Unità, jornal do Partido Comunista, alertou os pais de que a Coca-Cola poderia deixar os cabelos das crianças brancos. Já os comunistas austríacos afirmaram que a nova fábrica de garrafas em Lambach poderia ser facilmente transformada em uma fábrica de bombas atômicas.
Todos esses distúrbios pareceram triviais se comparados com o tamanho da controvérsia de quando a Coca-Cola chegou à França, onde as primeiras garrafas de Coca-Cola foram vendidas aos militares americanos em 1919, após a Primeira Guerra Mundial. Porém, com exceção de alguns cafés famosos que atendiam a turistas americanos, os estabelecimentos franceses raramente serviam a bebida durante os anos 1920 e 1930. Após a Segunda Guerra, a Coca-Cola Export Corporation orquestrou um plano de marketing voltado ao país, com a construção de uma nova fábrica em Marselha. As concessionárias deveriam empregar técnicas americanas de vendas e distribuição, incluindo novos caminhões brilhantes pintados nas cores da empresa, degustação gratuita e recomendações por parte de esportistas e artistas de cinema.
Prontamente, iniciou-se uma fortíssima oposição à penetração da empresa de bebidas na sociedade francesa. A Coca-Cola enfrentou sérios problemas políticos e levantou preocupações generalizadas sobre a “americanização da França”. A expressão “Coca-Colonização” ganhou as páginas da mídia imprensa comercial e de esquerda e, entre 1949 e 1953, travou-se uma batalha que ia desde os círculos comunistas até o governo da 4ª República francesa, passando por industriais e viticultores – todos discutindo sobre cultura e identidade nacionais da França em meio à implantação do Plano Marshall. O jornal comunista L’Humanité se perguntava: “Seremos coca-coca-colonisés?”. O Partido Comunista Francês alertava que a companhia norte-americana diminuiria ainda mais as vendas de vinho e que as reduções tarifárias exigidas pela Coca-Cola piorariam o déficit comercial do país, além de noticiar o boato de que o sistema de distribuição da empresa serviria de fachada para a rede de espionagem dos EUA.
Nesse cenário típico de Guerra Fria, o antiamericanismo liderado pelos comunistas atacou a geladeira como um sintoma do consumo excessivo dos norte-americanos. Para os militantes do Partido Comunista Francês, a Frigidaire, subsidiária norte-americana da marca de eletrodomésticos Electrolux, produzira equipamentos inúteis para a maior parte do ano, exceto por fazer cubos de gelo para coquetéis de uísque. Isso porque, na França, fazia frio o suficiente para pendurar na janela as sobras de cordeiro, e elas se manteriam conservadas de domingo até quarta-feira.
Paralelamente, a geladeira era um item essencial da vida cotidiana norte-americana mesmo durante o inverno. Portanto, o eletrodoméstico era símbolo da esfera doméstica das casas nos EUA, justamente o espaço familiar que servia de ambiente para os anúncios natalinos do Papai Noel da Coca-Cola – retratados com uma lareira crepitante, uma árvore de Natal decorada e uma geladeira contendo garrafas de refrigerante.
Já sacralizado como ícone central das publicidades da Coca-Cola, fica difícil não pensar o Papai Noel, portanto, como um emblema global do modelo de consumo constituinte do American way of life. A diáspora do Papai Noel não é diferente da diáspora da Coca-Cola como uma alegoria da modernidade americana. Nesse sentido, as formas de consumo nos EUA inscreviam em si próprias variadas expressões de poder, prazer e medo. Consistiriam elas uma forma de imperialismo cultural por parte dos EUA? Afinal, o conceito de imperialismo cultural norte-americano diz respeito à própria agressividade com a qual Washington tenta exportar seus bens culturais e ideologias dominantes a outras nações. Essa modalidade de imperialismo não significa controle colonial aberto, mas dependências econômicas e dominação ideológica por influência cultural. A exportação da cultura popular norte-americana é criticada nos países que a recebem por conta de seus supostos efeitos homogeneizadores, que eliminariam peculiaridades locais.
No movimento de americanização, a penetração global das empresas norte-americanas anda de mãos dadas com uma disseminação cultural e ideológica quase unilateral. O marketing da mídia norte-americana, incluindo o cinema hollywoodiano e sua música popular, se integra à presença política, econômica e militar dos EUA em todos os continentes, propagando os costumes e valores norte-americanos, bem como o próprio idioma inglês em todo o mundo. Segundo o professor George Mckay, nesse jogo, a novidade se sobrepõe à tradição e a nostalgia à história, e a mídia de massa e a mercantilização desenfreada nos negam agência em nossas próprias escolhas culturais.
É justamente a esse processo que diferentes sociólogos deram o nome de Disneyzação (Alan Bryman), McDonaldização (George Ritzer) e Walmartização (Neil Wrigley), assim como, é claro, a Coca-Colonização. Todos eles defendem que, nas sociedades contemporâneas, elementos culturais – roupas, música, TV, alimentação, convenções linguísticas e modelos de negócios – aparentemente estão se tornando cada vez mais padronizados. A Coca-Colonização sustenta a perspectiva da homogeneização do mundo, fruto do triunfo do imperialismo cultural sobre as culturas locais rumo a um modelo de consumo mundialmente americanizado.
Cruzando fronteiras com facilidade, os prazeres da América são experimentados pelo mundo inteiro pelo consumo conspícuo de produtos de marcas dos EUA, como os cigarros Marlboro, os tênis Nike, as barras de chocolate Hershey, os jeans Levi e os chicletes Wrigley – comprados pelo simples fato de serem norte-americanos. O regozijo pelo livre acesso a essas marcas – profissionais em apelar e manipular cada vez mais às emoções de seus potenciais consumidores – é acompanhado do consumo cultural do rock ‘n’ roll, jazz, rap, NFL, NBA, HQs, pop art, fast food e LSD, envolvendo os jovens estrangeiros no hedonismo e provocando pânicos morais regulares entre diferentes gerações em torno da última moda pop.
No caso do Velho Mundo, hierarquias culturais e consensos intergeracionais foram bruscamente rompidos no decorrer do século 20. As reações populares ao poder mercadológico desses cânones do capitalismo norte-americano contribuíram para uma corrente de desconfiança dos EUA e de seus prazeres culturais pop entre os mais significativos setores das sociedades europeias. Essa desconfiança atravessa todo o espectro político e ganhou dimensões perigosas durante a Guerra Fria. O medo francês da dominação norte-americana em seu território tem um sentido não só cultural, mas também político e econômico.
Em um cenário em que a Coca-Cola e a iconografia do feriado natalino se desenvolveram quase como irmãos gêmeos nos EUA, a reação à livre invasão cultural das mercadorias e da simbologia norte-americana do Natal mistura crítica políticas e estritamente estéticas. Na Europa, são recorrentes narrativas contrárias à invasão de um Natal americanizado, que exporta consigo árvores de plástico, neve enlatada, Papai Noel de poliéster e canções natalinas gravadas como músicas de elevador. Durante novembro e dezembro de 1991, no Canadá, as pinturas do Papai Noel de Sundblom para as propagandas da Coca-Cola foram exibidas em exposição no Museu Real de Ontário, em Toronto, e rapidamente sofreram um rechaço coletivo de críticos de arte, que repudiaram a “associação do museu com junk food” e a vinculação do “nascimento de Cristo com o Papai Noel, com o consumo”.
Natal, consumismo e americanização?
Porém, afinal de contas, se o Natal se tornou temporada de consumo dentro da lógica do capitalismo norte-americano, o sentido tradicional do feriado religioso teria sido completamente corrompido? O Natal contemporâneo, moldado nas formas do American way of life, seria uma mera “profanação” descaracterizada pelo consumismo, perdendo seu valor originalmente sagrado? Para o sociólogo Michael Schudson, da Universidade de Columbia, a prevalência do costume de dar presentes sugere que as pessoas frequentemente compram coisas não porque são materialistas, mas porque são seres sociais. Portanto, em geral, elas não estariam substituindo os valores familiares tradicionais pelo consumo material, mas, sim, consumindo com o objetivo de preservar os próprios laços afetivos.
Por outro lado, toda a esfera pública vem sendo progressivamente penetrada e dominada por interesses corporativos. Isso significa que as atividades socioculturais se tornaram objetos de importância comercial e levam ao surgimento de “sociedades de outdoors”, em que cada pessoa, instituição ou evento pode se transformar em um portador potencial de mensagens comerciais.
Nessa conjuntura, um arquétipo de Natal foi impulsionado ao máximo com a internacionalização das grandes marcas dos EUA, com a Coca-Cola à frente desse processo incontrolável que a jornalista e ativista canadense Naomi Klein apelidou criticamente de “promessa equalizadora de um globo conectado por logotipos”. Em meio à profusão de comerciais de grandes marcas mostrando locais estranhamente remotos, a representação dominante é de que as fronteiras geográficas e culturais são transcendidas pelas formas de mercadorias.
Além disso, tal “cultura do consumo” comumente é acusada de ofuscar valores imateriais, como a própria religião. De fato, o capitalismo contemporâneo é caracterizado por processos de mercantilização e secularização, transformando todas as práticas culturais daqueles que entram em sua órbita. Ao mesmo tempo, o simbolismo e as práticas rituais que incorporam distinções sagradas e profanas continuam a existir nos processos sociais seculares, e com o “festival global” do Natal não é diferente.
Nesse sentido, a história da própria Coca-Cola e de seu consumo no Natal por meio da figura-chave do Papai Noel em seus anúncios desde os anos 1930 deixa clara a relação entre o “materialismo” e o feriado natalino como parte de uma americanização da cultura popular a nível mundial. Por mais que lutas ideológicas tenham sido travadas no século 20 contra a tomada do feriado religioso pelo consumismo ininterrupto, trata-se de um processo integrado a uma conjuntura muito maior de transnacionalização do capital e de hegemonia política e cultural dos EUA no mundo.
Fonte: Portal BRASIL CULTURA
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