MARIA SHU |
Foi em um trem para a estação da Luz que encontrei, pela
primeira vez, Maria Shu. O ano era de 2010, ela entrou na estação do Jaraguá,
bairro na região noroeste onde ainda hoje reside e, em meio à multidão do
horário de rushmatutino, o acaso do cotidiano naturalmente nos apresentou.
Por Jéssica
Moreira
Eu conversava
sobre teatro com uma amiga, quando aquela moça de sorriso doce e olhar e voz
firmes se aproximou com seus livros nas mãos. Naquela época, ela estava no
primeiro semestre do curso de dramaturgia da SP Escola de Teatro e, mesmo sem
saber, reacendeu em mim a esperança de um dia também ser dramaturga, já que eu
não havia passado no processo seletivo.
Hoje, após
sete anos desse encontro, tenho o prazer de divulgar que, daqui a alguns dias,
a obra “Epifania”, escrita por Shu em 2016, irá também criar voo e pousar no
país africano de Cabo Verde, no 3º Festival Nacional de Teatro do Mindelo, que
acontece de 23 a 29 de julho.
O texto,
inspirado no romance “A Hora da Estrela”, faz um diálogo entre a personagem
principal, Macabéa, e a autora Clarice Lispector, trazendo como pano de fundo
diversas questões do universo feminino. A dramaturgia irá ganhar vida na
interpretação da atriz Lilian Prado, do Grupo de Teatro Onironautas.
Essa, porém,
não é a primeira vez que um texto de Shu, hoje com 40 anos, é encenado fora do
país. Com este, a dramaturga já soma quatro trabalhos. Giz (2011/2013) foi o
primeiro, que ganhou leitura dramática de Lavinía Pannuzio e, mais tarde, foi
dirigida por Marcelo Valle. “Giz me possibilitou perceber que eu havia
encontrado a minha singularidade, meu estilo dramatúrgico de escrever: uma
verve poética, metafórica, híbrida de linguagens e referências”.
A partir de
um processo colaborativo com a Cia Os Satyros, Shu colocou na rua Cabaret
Stravaganza (2011), espetáculo que ficou quase dois anos em cartaz em São Paulo
e, depois, foi levado para a Suécia. Ainda em 2017, a peça Epifania ficará em
cartaz no Viga Espaço Cênico e, em setembro, a peça Ar rarefeito (2013) – 1º
lugar no Prêmio Heleny Guariba de dramaturgia em 2014 – irá ganhar uma leitura
dramática em Portugal.
“A minha filha Heloísa é minha maior inspiração”
A dramaturga
conta que a filha, Heloísa, de dez anos, é sua maior inspiração. “Quero ser uma
mulher forte para ela. Ela sonha como eu, com uma carreira artística. Ela
desenha todos os dias, desde que eu lhe apresentei ao giz de cera, antes dos
dois de idade. Quero que a minha filha saiba que ela pode ser o que quiser e
que resistiremos e existiremos por meio da nossa arte: a minha, cênica; a dela,
provavelmente, a plástica”.
Dentre as
referências literárias, Shu destaca a admiração que possui pelo trabalho da
mineira Grace Passô, uma mulher negra, que vem ganhando destaque com as letras.
” Por eu me identificar com o tipo de dramaturgia que ela cria, que espanca;por
ela ser uma artista negra da palavra, premiada e com grande reconhecimento, por
Grace se permitir permear dentro de projetos artísticos coletivos”. Além dela,
alguns autores nacionais e também internacionais atravessaram a trajetória
literária de Shu, como Silvia Gomez, Luciano Mazza, Newton Moreno e entre os
estrangeiros Sarah Kane, Koltès, Visniec edetsaca-se Grace Passô.
A dramaturgia como cura
A chegada até
aqui, porém, não foi um percurso simples. Foi aos 30 anos que a então
professora de Português decidiu deixar a sala de aula para se arriscar nos
palcos. Matriculou-se em um escola de artes cênicas, mas no decorrer das aulas
não conseguia se enxergar atuando. “Eu não me enxergava talentosa, não me
encaixava mais como professora. Entrei em depressão”. Foi quando o companheiro
de Shu viu uma chamada na tevê sobre a inauguração da SP Escola de Teatro e a
incentivou a se inscrever no processo seletivo.
“Agarrei a
dramaturgia como uma tábua de salvação. Eu escrevia contos, crônicas, haicais,
mas a dramaturgia foi a soma das minhas paixões. É minha maneira de estar no
palco, de me sacudir, de me questionar o tempo todo junto com o espectador. É
como se eu atravessasse de novo aquela avenida perigosa , saísse ilesa e, de
quebra, renovasse completamente meu olhar cada vez que uma peça minha entra em
cartaz, recebe uma leitura dramática.
“Eu gostava de brincar com palavras”
Chegar até
aqui e ver seu trabalho ganhando o mundo faz Shu remontar aos sonhos que nutre
desde a infância vivida nas proximidades da Rodovia Anhanguera, local onde foi
acolhida por sua família adotiva, ainda bebê recém-chegada da Bahia. Das coisas
que mais gostava naquele tempo, brincar com as palavras era uma de suas
preferidas.
O movimento
local, no entanto, impedia que a meninada saísse pelas ruas. “Lembro-me de uma
vez em que eu e um dos afilhados da minha mãe atravessamos a rua. Ganhamos do
outro lado da calçada, onde só havia uma faixa de grama antes da rodovia, mas
chegar a outra margem ampliou nossa perspectiva; era como se olhássemos o mundo
por outro viés e fôssemos os donos dos nossos horizontes, porque a partir
daquele momento, nosso olhar não era mais dirigido por nenhum adulto. Decidimos
voltar. Assim que Jean pôs o pé na rua foi atropelado. Inacreditavelmente, ele
só quebrou um braço. Eu recuei a tempo e me salvei. Tínhamos uns seis anos”. Na
maioria das vezes, a fantasia se dava dentro dos limites do pequeno quintal,
onde as crianças da vizinhança se encontravam para inventar de tudo um pouco.
Um dia, os adultos tiveram uma briga tão feia, que a casa cheia de felicidade
de repente se esvaziou, fazendo a menina se refugiar no universo das palavras.
“Foi quando
eu me entreguei à leitura e à escrita de diários, poemas, passei a frequentar
assiduamente a biblioteca da escola, que promovia encontros com escritores.
Lembro-me perfeitamente do Marcos Rey e do Pedro Bandeira cercado pelo olhar
curioso das crianças num piso de assoalho lustroso, se desdobrando para
responder perguntas ingênuas e elaboradas. Foi aí, mais ou menos com oito anos
de idade que comecei a sonhar com uma carreira literária”.
Na escola,
não havia dúvida, sua disciplina favorita era Português, prelúdio da primeira
formação, que alguns anos mais tarde seria em Letras. Durante as aulas, era a
professora Roseli, que a acompanhou do 5º ao 8º ano, que dava o incentivo para
a então futura escritora ler para toda a turma as longas redações que costumava
escrever. Foi em uma dessas leituras que a menina viu, pela primeira vez, um
estilo diferente no livro didático.
Era uma
conversa entre uma avó e sua neta, que Shu rapidamente decorou e, na aula
seguinte, se caracterizou a partir do que imaginava ser a personagem idosa.
Nesse dia, encenou o texto com a ajuda de uma colega. “Sempre que possível, eu
encenava um texto do livro didático em sala de aula. Assim, sem saber, nasceu
minha paixão pelo teatro. Em datas comemorativas na escola, eu apresentava
peças que eu escrevia, dirigia, criava o cenário: devo ter sido a primeira
menina negra a interpretar o herói grego Hércules“.
Mesmo
apaixonada pelo teatro, foi na Pedagogia que Shu buscou curar algumas das
feridas que ressoavam ainda do período escolar. Uma das poucas negras em uma
escola de brancos na região oeste, Shu saiu do ensino fundamental e foi direto
para uma escola de ensino médio técnica (na época, chamada de magistério), para
fugir do racismo e do bullying que sofria por conta do tamanho de suas mamas.
“Beirava o
insuportável e eu imaginei que eu só teria um pouco de paz se fosse pra uma
escola majoritariamente de meninas: a saída foi o magistério e me apaixonei
pelo ofício. Concluí os quatro anos e migrei para o curso de Letras, para
amalgamar o magistério e minha paixão pelas palavras”.
Agora, já faz
mais de sete anos que Shu tem na dramaturgia sua profissão. Seus últimos
textos, ainda inéditos, tratam essencialmente da questão racial, já que a
escritora sentiu a necessidade de entender suas subjetividades e o contexto de
preconceitos que viveu e ainda enxerga também no meio artístico. “Tem artista
branco lidando com o racismo como uma simples questão comercial”.
Fonte:
Geledés
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