Aos sete anos de idade, Lima Barreto esteve presente na missão campal de celebração da Abolição da Escravatura
Foto> Instituto Moreira Salles
Ainda estudante da Escola Politécnica do Rio de Janeiro, onde entrou em março de 1897, o escritor mulato Lima Barreto desiste de participar de uma estudantada, ato de rebeldia dos alunos da escola de elite.
Por Fernando do Valle*
Consciente do racismo, Lima explica em conversa com um colega o motivo que o levou a desistir de pular o muro em companhia de seus colegas para assistir a uma montagem da ópera Aída de Verdi no Teatro Lírico:
“Todos haviam topado a estudantada. Todos, menos Lima Barreto. Este não tivera a coragem de pular o muro. Depois do ensaio geral, Nicolao Ciancio teve de ir sozinho para casa — a pensão de Madame Parisot. E ali chegando, cantarolando, como bom italiano, os últimos trechos de Aída, encontrou o amigo deitado, lendo. O diálogo que se seguiu e vai adiante transcrito foi reconstituído pelo próprio Nicolao Ciancio. Ei-lo sem alteração de uma vírgula:
— Por que você não veio?
— Para não ser preso como ladrão de galinha!
— ?!
— Sim, preto que salta muros de noite só pode ser ladrão de galinhas!
— E nós, não saltamos?
— Ah! Vocês, brancos, eram ‘rapazes da Politécnica’. Eram ‘acadêmicos’. Fizeram uma ‘estudantada’… Mas, eu? Pobre de mim. Um pretinho. Era seguro logo pela polícia. Seria o único a ir preso”.
(extraído do livro A Vida de Lima Barreto, de Francisco de Assis Barbosa)
Afonso Henriques nasceu numa sexta-feira 13, a de maio de 1881, exatos 7 anos antes da abolição da escravatura, pobre, negro e alcoólatra, sofreu na pele as agruras do preconceito dos literatos, acadêmicos e jornalistas. Mas não se fazia de rogado, já na Politécnica, Lima escreve ácidos artigos na revista universitária A Lanterna, onde não poupa os vaidosos professores, sob o pseudônimo de “Momento de Inércia”.
Em seu diário íntimo, Lima frequentemente desabafava sempre o mesmo como um mantra: “é triste não ser branco”. Da sua revolta, nasceu uma literatura voltada para os personagens do subúrbio. Também praticou um jornalismo de resistência como na pequena Revista Floreal. No primeiro número da revista, Lima escreve que a publicação era “contra o formulário de regras de toda sorte, que nos comprimem de modo tão insólito no momento atual”.
O primeiro número da revista vendeu apenas 38 exemplares, a Floreal não passou do quarto número. Foi ali que Lima publicou trechos de uma de suas obras mais contundentes, Recordações do Escrivão Isaías Caminha (1909), que narra as agruras de um jornalista negro e pobre no início de carreira. O livro é brutal, um grito contra a hipocrisia e um ataque aos medalhões da imprensa.
Sem dúvida, o livro foi baseado na experiência de Lima no jornal Correio da Manhã. Antes do Correio, em 1903, Lima teve uma péssima experiência na Revista de Época, onde se viu obrigado a tecer loas a alguns políticos, pediu demissão. Dois anos depois, a partir de abril, escreve reportagens para o Correio da Manhã.
“Não obedeço a teorias de higiene mental, social, moral, estética, de espécie alguma. O que tenho são implicâncias parvas; e só isso. Implico com três ou quatro sujeitos das letras, com a Câmara, com os diplomatas, com Botafogo e Petrópolis; e não é em nome de teoria alguma, porque não sou republicano, não sou socialista, não sou anarquista, não sou nada; tenho implicâncias. É uma razão muito fraca e subalterna; mas como é a única, não fica bem à minha condição de escriba escondê-las” (Lima Barreto).
Com 22 anos, Lima tornou-se copista da Secretaria de Guerra, onde redigia minutas e avisos e copiava decretos. Trabalhou lá por 14 anos. Mas era nos cafés que Lima mantinha contato com artistas, escritores e políticos. Por lá circulavam também as cocotes, mulheres francesas com certa sofisticação cultural, no romance Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá, Lima escreve que elas tinham como missão “afinar a nossa sociedade”, abrutalhada por séculos de escravidão.
Em seus textos jornalísticos, considerados precursores do jornalismo literário no país, Lima critica aspectos da vida social e política brasileira, desafia os cânones literários e esboça uma precursora visão anti-imperialista em relação aos norte-americanos:
“Não dou cinquenta anos para que todos os países da América do Sul, Central e o México se coliguem a fim de acabar de vez com essa atual opressão disfarçada dos yankees sobre todos nós; e que cada vez se torna intolerável” (trecho de um dos textos jornalísticos de Lima Barreto, reunidos no volume Marginália).
Atrás da acidez e da combatividade, escondia-se um ser melancólico que encontrou no álcool seu refúgio, que o matou aos poucos. Lima deixou de frequentar os cafés e passou a beber cada vez mais nos botequins por volta de 1911. Muitas vezes, depois de várias doses de cachaça, era encontrado por amigos dormindo na sarjeta. Chegou a ficar dois meses internado em um hospício quando perdeu o controle de seu vício. Morreu jovem, com apenas 41 anos, em 1 de novembro de 1922.
Com apenas 7 anos, Lima foi levado pelo pai à missa campal para a celebração da Abolição da Escravatura. Mesmo sem compreender exatamente a importância daquele momento, a boa energia da festa ficou marcada em sua memória. Em 1911, Lima escreveu na Gazeta da Tarde: “fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folgança e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia”. Lima lutou toda uma vida em busca daquela harmonia, fruto de uma autêntica esperança de uma convivência mais fraterna.
*Fernando do Valle é blogueiro e jornalista
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