As grades metálicas aprisionam corpos e confinam sobretudo o espaço existencial dos sujeitos
“Se aqui fora existe
preconceito, lá dentro é a treva de preconceito. Vi meninas se prostituírem por
causa de um sabonete, para escovar os dentes. A saúde é totalmente precária, se
você está com alguma coisa, vai morrer lá dentro”, relatou a trans Verônica
Bolina durante o debate “Sistema Penitenciários e a População LGBT”, realizado
em São Paulo no fim de junho.
Verônica passou dois anos na prisão após uma condenação por
tentativa de homicídio e agressão em 2015. Quando foi detida, sofreu humilhação
e foi torturada por policiais no Centro
de Detenção Provisória de Pinheiros, em São Paulo. Foi quando se tornou
conhecida, após fotos e vídeos da agressão viralizarem nas redes sociais.
Seu relato deixa vislumbrar um pouco da realidade dos cerca de 450 travestis e transexuais atualmente
cumprindo pena no estado de São Paulo.
Verônica Bolina durante o debate 'Sistema Penitenciários e a População LGBT'(Foto: Beatriz Drague Ramos)
O Brasil conta hoje com
mais de 607 mil pessoas encarceradas, de acordo com os últimos dados do
Ministério da Justiça, de 2014. Atualmente, a taxa de superlotação do sistema penitenciário ostenta
um índice epidêmico de 166%, segundo dados do último Levantamento Nacional de
Informações Penitenciárias, de 2014.
Das 1.423
unidades prisionais, apenas 100 (15%) possuem alas destinadas ao público LGBT.
A escassez de dados estatísticos sobre esta parcela da população prisional são
um indício da invisibilidade sofrida por eles dentro e fora das cadeias.
Além dos
problemas intrínsecos do sistema prisional brasileiro, entre os desafios
enfrentados pelos LGBTs encarcerados estão a ausência de acompanhamento médico
e psicológico, a falta de recursos para cirurgias de redesignação sexual e a
existência de poucas alas especiais. Além disso, quase não há acesso aos
tratamentos com hormônios para trans e o desrespeito à utilização do nome
social é constante.
“Fui até o
inferno e voltei”, resume o homem trans Leo Moreira de Sá, que passou por
quatro penitenciárias em São Paulo ao longo de cinco anos, cumprindo pena por
tráfico de drogas. Em uma das diversas vezes em que foi agredido, ouviu de um
policial: “Você não quer ser homem? Então vai apanhar que nem homem”.
Em seu caso, a
formação em Ciências Sociais pela USP, abriu a possibilidade de lecionar na
Penitenciária Feminina de Santana entre 2007 e 2009, quando ainda encontrava-se
encarcerado. Além de receber um salário mínimo por mês, a cada três dias
trabalhados, um era descontado do total de sua pena. “Eu tinha o respeito da
comunidade como educador, já que eu não era do crime”, admite com orgulho.
A violência policial física e mental, o escárnio e o desprezo da maioria dos agentes são uma violência indescritível', ressalta Leo Moreira de Sá (Foto: Beatriz Drague Ramos)
Ser ou não “do
crime” é um dos termos utilizados no sistema carcerário e explicado na pesquisa
"O barraco das monas na cadeia dos coisas: notas etnográficas sobre a
diversidade sexual e de gênero no sistema penitenciário", do mestre em
Antropologia Social pela USP Marcio Zamboni.
Na pesquisa, o
antropólogo analisa a relação entre as dinâmicas de organização do espaço
prisional e as formas de identificação e diferenciação entre presos por conta
do gênero e sexualidade. Para isso, visitou diversos centros de detenção
provisórios durante um ano, entre 2015 e 2016, como agente da ONG Pastoral
Carcerária.
Ele acredita
que é de extrema importância lançar um olhar sobre esta população,
historicamente segregada e despida de seus direitos fundamentais no sistema
penitenciário. “O crime é machista”, diz.
Convivendo com o PCC
Segundo a
pesquisa, a população LGBT “não entra, mas fecha com o PCC”. Apesar de não
integrarem o grupo, muitos conseguem negociar sua estadia nas casas de
detenção, já que estão fora das disputas de poder entre facções rivais.
Segundo o
pesquisador, a facção criminosa PCC impôs o fim da discriminação contra
homossexuais nas cadeias. Ainda assim, paradoxalmente, é preciso se portar
“como homem”. Em um dos relatos presentes no estudo, a trans Samanta fala sobre
as relações entre a população carcerária LGBT e a facção.
“Eu já fiquei
em cadeia do PCC, mas para gente que é homossexual é ruim demais, é muito
sofrimento. A gente fecha com eles, mas tem que usar cabelo curto, não pode
usar roupa feminina e nem ter relação”, conta.
Leo também
ressalta as restrições nos códigos de conduta. “Eu assumi aos poucos um
estereótipo de homem hétero, criminoso e machista para sobreviver dentro de um
sistema, mesmo não admitindo-o. As relações de poder estão em todas as
convivências do dia-dia”.
“É um ambiente
que não pode ter o feminino”, conta Zamboni, explicando que os presos
justificam o enquadramento dos LGBTs como decorrente do ciúmes das
companheiras. “Eles dizem: se as nossas mulheres encontram as trans, gays e
travestis dentro das celas ficam com ciúmes e isso dá problema para a gente. Se
elas virem a prostituição, não vão querer voltar”.
A violência policial física e mental, o escárnio e o desprezo da maioria dos agentes são uma violência indescritível', ressalta Leo Moreira de Sá (Foto: Beatriz Drague Ramos)
Dentro deste cenário
surgem as “cadeias dos coisas”, objeto de pesquisa de Zamboni, penitenciárias
destinadas para a população segregada pelo PCC, como idosos, ex-policiais, LGBTs,
dependentes químicos e pequenos traficantes. Nesses locais, menos de 10% das
penitenciárias paulistas, a lógica é outra, pois são de fato comandadas pelos
funcionários, segundo o antropólogo.
Resistência e Perspectivas
Os jornalistas Natália Martino e Leo Drummond
ofereceram oficinas de fotografia e de texto às pessoas presas (Foto: A Estrela)
Em abril de 2014, entrou em vigor a Resolução Conjunta 1, editada pelo
Conselho Nacional de Combate à Discriminação e o Conselho Nacional de Política
Criminal e Penitenciária, prevendo a possibilidade de transferência de
“pessoas que passaram por procedimento cirúrgico de transgenitalização” para
“Unidades Prisionais do sexo correspondente”.
A legislação visa institucionalizar a
“atenção às travestis e transexuais no âmbito do sistema penitenciário
brasileiro”. Dentre outras medidas determinadas estão a visita íntima, a
atenção integral à saúde e tratamento hormonal e o uso do nome social. Consta
também sobre a necessidade de cursos de educação e qualificação profissional.
Dentre os principais objetivos da adoção das celas especiais para LGBTs
está garantir a segurança ou, ao menos, minimizar a chance de violência para
essa população. A medida, porém, não é consenso entre os especialistas.
As alas especiais funcionam em Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Paraíba
e Mato Grosso. Em São Paulo, onde vive 40% da população prisional brasileira,
não há política oficial de separação dos LGBTs dos demais.
“Não existe a tentativa de criar a
aparência de uma política penitenciária pró-direitos humanos, em razão de
qualquer concessão a essas demandas serem vistas como um amolecimento do rigor
da justiça”, critica o antropólogo Marcio Zamboni, que é crítico à segregação.
“Cria-se um efeito simbólico negativo com a falsa sensação da existência de um
privilégio para as pessoas LGBT”, diz.
Andrey Lemos, presidente da União Nacional de Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Travestis e Transexuais (UNALGBT), vê o sistema penitenciário
brasileiro, de forma geral, como um antro de violações de direitos. “Penso que
as travestis e mulheres trans, ao cometerem algum crime, devem ser acolhidas
nas alas femininas, de acordo com a sua identidade de gênero”, afirma,
ressaltando que, ao mesmo tempo, uma equipe multidisciplinar deveria avaliar
casos específicos de encaminhamento para celas especiais.
Em Minas Gerais, a ala LGBT do presídio de Vespasiano participou de uma iniciativa
jornalística que objetiva dar voz a essa população. Trata-se da revista A
Estrela, editada pelos jornalistas Natália Martino e Leo Drummond, da agência
Nitro.
No texto 'Mutação' da
revista A Estrela, as mudanças de aparência no processo de revelação
homossexual dentro das alas LGBT (Foto: A Estrela)
Entre os relatos em primeira pessoa, está o de Luis Gustavo dos
Santos sobre sua vivência em uma prisão masculina em 2000. Lá, compartilhava a
cela com outros dois homossexuais, onde eram submetidos a abusos diários.
“Percebi que
depois do jantar, um deles entrou no banheiro e os presos fizeram uma fila. Um
após o outro, entravam para se saciar. Os homossexuais tinham que servir a
todos que quisessem, sem camisinha. Também eram os únicos que não tinham copos
e precisavam beber água em uma garrafa descartável cortada, porque os outros
presos tinham nojo deles”, relata.
Ele evidencia a
importância da ala especial em sua vida: “Após anos de carnificina, em 2006,
essa cadeia foi fechada. Mas até isso acontecer, tive que criar um personagem
para sobreviver. Por isso, criar alas homossexuais em presídios é tão
importante. É pela sobrevivência”.
O
encarceramento da população LGBT nos Estados Unidos nos permite traçar
paralelos com o Brasil. Segundo o relatório "Coming Out Concrete
Closets", de 2015, da organização Black & Pink, “as violências física
e sexual ocorrem em maior proporção dentro da população LGBT”.
Dos 1200 presos
ouvidos, todos relataram experiências de violência sexual, realizadas por
outros encarcerados e funcionários. Ao menos 76% experimentaram situações de
risco de violência dentro de suas próprias celas, devido à superlotação. Os EUA
mantém a maior população carcerária do mundo, com mais de 2 milhões de presos.
Fonte: Carta Capital
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