Foto: ADURN |
Jessé Souza é um dos principais pensadores contemporâneos do país. Natural do Rio Grande do Norte, é formado em Direito pela Universidade de Brasília e tem mestrado e doutorado em Ciências Sociais. Em 2015, assumiu o cargo de presidente do Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada (IPEA). Pediu demissão assim que o golpe foi consumado e Michel Temer assumiu a presidência da República.
Autor de 23 livros, Jessé Souza esteve em Natal durante o ciclo de debates Diálogo promovido pela Adurn Sindicato, ocasião em que também lançou “A elite do atraso: da escravidão à lava-jato”. No seu mais novo livro, o pesquisador reinterpreta a história do Brasil a partir de 1532 até os dias de hoje.
Antes da palestra na UFRN, Jessé Souza conversou com a agência Saiba Mais sobre o livro e o Brasil de ontem e de hoje. Para ele, a operação Lava-jato está fadada a virar a página mais vergonhosa da história brasileira. Confira:
Agência Saiba Mais: Em todas as entrevistas, você relaciona o golpe de 2016 com a escravidão. Onde esses dois elementos se encontram ?
Jessé Souza: É o que conto no livro, a partir do começo. Existe uma interpretação sobre o Brasil. Uma só, que é totalizante. Normalmente as pessoas não percebem isso. As pessoas pensam que cada um tem uma interpretação, o que não é verdade. As interpretações são quanto mais convincentes quando elas explicam o começo de onde a gente vem, quem a gente é… era isso que as religiões explicavam. E toda explicação cientifica que queira ser convincente, se tornar hegemônica, tem que explicar esses espaços, como as religiões faziam no passado. Só existe uma teoria que explica isso no Brasil, que é essa de que o Brasil vem de Portugal. Não vem da escravidão, portanto, porque não havia escravidão em Portugal, a não ser de uma forma bem marginal, não era fundante, jamais foi. Quando você diz que o Brasil vem de Portugal você está dizendo, na verdade, que a escravidão é um fato secundário porque o mais importante é a herança portuguesa, percebe ? A explicação falsa põe alguma coisa secundária no lugar da principal porque ela quer que essa principal nunca seja percebida como tal. E é exatamente como o Brasil é compreendido.
Então é uma explicação inteira totalizante, que vem de Gilberto Freyre, mas não é a versão de Freyre a (explicação) hegemônica. A versão de Freyre via aspectos positivos nessa coisa, assim como o Darcy Ribeiro, outro filho de Freyre. Mas a versão mais importante, entre os filhos de Freyre, foi a de Sérgio Buarque de Holanda, que vê essa coisa vinda de Portugal, que é uma balela, mas vê só negatividade no povo brasileiro, uma negatividade que tem a ver com a corrupção. Porque no fundo, para eles, a herança de Portugal está ligada à herança da corrupção patrimonialista só no Estado, o que é outra bobagem.
Porque a corrupção real não está no Estado. Nem é feita por pessoas individuais. Isso é corrupção de tolos, a corrupção dos imbecis porque compramos, em parte, essa história. Isso tudo para evitar que as pessoas possam ver que é o mercado que compra o Estado. Então na explicação sobre o Brasil o mercado fica invisível. É só o Estado. Então eles dizem que a elite poderosa está no Estado para que você não veja a elite real, que está no mercado e, obviamente, compra o Estado. O político é o aviãozinho do tráfico que fica com 2 ou 3%.
Em suas teses você trabalha o conceito de várias elites. Mas todas a serviço da elite do dinheiro…
Exatamente. Uma coisa é sempre bom perceber: o mundo social é confuso por si mesmo. Aí você diz: “ah, a elite…” mas tem uma que manda nas outras. Tem sempre um aspecto que é mais importante que os outros. E esse aspecto central é que vai explicar todos os outros. No fundo, quando você diz que a elite é política, que está o Estado, é do politico, que é isso que esse pessoal diz e no fundo está vampirizando a sociedade, você está tornando exatamente essa elite do dinheiro invisível.
Qual é a história do Brasil que você conta no livro “A elite do atraso: da escravidão à lava-jato”?
O que eu fiz nesse livro: eu retroagi às minhas teses, às críticas e análises de classe do Brasil contemporâneo que foi o que fiz antes, para fazer uma espécie de histórico desde o ano zero. A ambição desse livro é explicar o Brasil de um modo novo, do ano zero até agora. E escolhi o tema da escravidão, aliás é um negócio incrível que ninguém tenha escolhido esse tema ainda porque é obvio que a escravidão continua. É que as pessoas estavam envoltas nesses pressupostos e soa ridículo se você começa a criticá-los.
Por que ?
Pensa bem: Raimundo Faoro diz que a corrupção começa no século 14. Isso é uma loucura. Não existia corrupção no século 14. É óbvio. A terra era do Rei. E o Rei não ia roubar o que era dele. Isso acontecia em todos os lugares. Isso acontecia na França, na Inglaterra… você só vai ter corrupção no sentido moderno do termo a partir do século 18, quando surge a noção de soberania popular e a noção de bem público, que nasce com a soberania popular. Claro ! Porque se a parte de todo poder é percebida como sendo do povo é que você vai poder desenvolver a noção de bem público no sentido moderno. Antes não existia bem público. O bem era do Rei mesmo. Ele ia roubar o quê se o negócio era dele ? Não só o Rei, mas ninguém achava que aquelas terras não fossem do Rei. Então é um absurdo, uma história de carochinha, idiota, imbecil. É como você botar fórmulas de aproximação entre homens e mulheres exibindo um filme sobre a Roma antiga. Você põe uma aproximação de homens e mulheres que foram desenvolvidos no século 18, ou seja, é ahistórico.
Mas a gente acreditou nessa bobagem. E se você pensa bem, o ano zero aqui é a escravidão. Não tem nada a ver com Portugal. Eram portugueses, o pessoal falava português, mas e daí ? São as instituições que nos moldam. A família… e é tanto que o fato da gente nunca ter criticado a herança escravocrata faz com que as famílias dos ex-escravos se mantenham iguais 500 anos depois. É a não-família, a família mono parental, a família desprezada e odiada do escravo para que ele não tenha autoconfiança, exatamente o que a gente tem agora.
A repercussão junto à classe média da regulamentação do trabalho da empregada doméstica é um exemplo ?
Exatamente. É um trabalho. E só quem não faz mais a sinapse do cérebro para ver que isso é uma continuação direta do escravo doméstico. O cara não recebe os estímulos em casa para ir bem na escola, e se não vai bem na escola não entra no mercado de trabalho competitivo. Então ele sai e é isso que eu chamo de ralé. E se ele não pode vender a força de trabalho dele com conhecimento, que é a noção da venda de trabalho do capitalismo, ou seja, você tem que ter incorporado o conhecimento, senão você não tem nada o que vender, a não ser sua energia motriz solar, que é o que o escravo vendia. As continuidades são insofismáveis e a gente está com essa bobagem.
Se você não sabe quem você é, como você vai se comportar ? A gente não é abelha, formiga, não recebe o DNA. A gente vai agir em todos os níveis, politicamente, economicamente a partir de ideias, quer a gente tenha consciência disso ou não. Essas ideias geralmente estão naturalizadas, a gente não reflete mais sobre elas, não as articula. Mas nosso comportamento é determinado por ideias e aí se a gente tem falsas ideias conduzindo nosso comportamento, o nosso comportamento vai ser errático.
Onde começa a história do Brasil para você, já que o início não tem relação com a chegada dos portugueses ?
Em 1532, quando você deixa a extração episódica do litoral de pau Brasil, essa coisa extrativista, e se investe numa sociedade agrícola regular baseada no trabalho escravo. Então é quando você vai ter o início de uma vida social e econômica do Brasil. Nessa hora ainda não tem corrupção. Mas se fala muita bobagem, como a que diz que a carta do Pero Vaz de Caminha já chega pedindo um favor. Isso é uma bobagem indescritível. Porque os caras faziam isso na França, na Inglaterra… claro ! O Rei mandava e eles tinham que puxar o saco do Rei mesmo, então que diabo é isso, falam como se fosse uma coisa singular brasileira. Isso é uma coisa imbecil. Estamos sob a égide de ideias imbecis. Não existe um mínimo de crítica e nos legaram a esse estado que estamos agora: o de um país rico, empobrecido, saqueado por ideias, claro ! A ideia é que essa história que é escrita e que é efetivamente pensada como sendo a nossa, é uma história oficial para a elite. Foi a elite paulista que montou isso. E montou sabendo o que estava fazendo.
Quando e de que forma isso ocorreu ?
Nos anos 1920 e 1930. Em 1930 a elite perde o poder para Getúlio Vargas causada pela agitação tenentista dos anos 20. E o tenentismo foi um movimento de classe média que apontava para todas as direções: esquerda, direita, centro… tinha desde Prestes à gente que fazia oposição a Getúlio pela direita. A elite do dinheiro paulista, que não é melhor ou pior que nenhuma elite do Brasil, é apenas a mais forte, montou a ideia de que: “se eu perdi o poder político para essa rebeldia heterodoxa de classe média, eu tenho que controlar a classe média. Nos escravos e na classe trabalhadora eu desço o cassete”. E na primeira greve geral, em 1917, o Governo mandou descer o sabre em famílias de trabalhadores, houve centenas de mortes. Aí depois você engana os caras e exila os líderes, exatamente como faziam com os escravos. Mas com a classe média os caras descobriram que teriam de convencê-la. Tinham que montar um poder simbólico, além das fazendas e das fábricas.
E qual era o poder simbólico ? O tema da esfera pública. Você tem que construir fábricas de opinião. Como os jornais só distribuem notícia, não criam ideias, era preciso criar ideias. E como quem constrói ideias são os intelectuais, quem tem prestígio e treinamento para isso, criaram a USP para isso. E eles mesmos diziam: “vamos construir aqui um polo ideológico para que nunca mais aconteça o que aconteceu com o Vargas e se acontecer a gente possa tomar o poder de novo porque temos a hegemonia ideológica”. Então o terreno da USP pertencia à família Mesquita, que controla o jornal O Estado de São Paulo. A elite montou e fez.
Os conceitos de patrimonialismo, essa bobagem monumental, e o conceito de populismo, essa imensa maldade que é você estigmatizar qualquer coisa que venha das classes populares como falta de instrução e criminaliza-la porque você já liga os líderes às classes populares. Então juntando o patrimonialismo ao populismo que vai ser ensinado em todas as universidades, você vai educar todas as elites de todos os lugares nessa bobagem. Tudo o que a imprensa diz quando se refere à política é uma mistura entre patrimonialismo e populismo. Isso em pílulas porque a legitimação intelectual já está dada. Essa é a dominação atual do Brasil.
Fonte: ADURN
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