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segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Gabriel e a montanha, o ouro do tempo

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Por José Geraldo Couto*
O segundo longa-metragem do diretor de Casa grande não apenas confirma seu talento como atesta um notável amadurecimento artístico e humano, no enfrentamento, desta vez, de um desafio mais complexo: reconstituir dramaticamente os últimos dias de vida de Gabriel Buchmann, jovem economista brasileiro morto ao escalar o monte Mulanje, no Malawi, no sudeste da África.
Aprendizado e aventura
O tema, à primeira vista, poderia parecer distante do cineasta, mas o fato é que Gabriel foi seu colega de colégio e universidade no Rio de Janeiro. Formados, cada um seguiu seu caminho. Gabriel, depois de entrar numa prestigiosa universidade norte-americana para cursar pós-graduação, tirou um ano sabático para conhecer in loco a realidade dos países pobres da África. Era uma viagem de descoberta, aprendizado e aventura.

É possível ver Gabriel e a montanha, portanto, quase como uma continuação de Casa grande, que era o romance de formação/iniciação de um adolescente da elite da zona sul carioca. Agora, o que vemos, de certa forma, é como se lança ao mundo um daqueles jovens habitantes das nossas casas-grandes.
Para contar essa história, Fellipe Barbosa teve acesso a toda a documentação deixada por Gabriel (diários, fotos, cartas) e optou por um engenhoso dispositivo narrativo que lhe permitiu um tanto de imersão e, ao mesmo tempo, um tanto de distanciamento. Escalou um ator (o ótimo João Pedro Zappa) para encarnar o protagonista e filmou-o nos locais onde se passaram os fatos, em interação com os próprios personagens que com ele conviveram em sua temporada africana.
Enquanto se reconstituem, isto é, se encenam, os episódios vividos por Gabriel, depoimentos em vozover desses personagens “reais” rememoram sua relação com o retratado. O efeito disso é a criação de camadas superpostas de tempos e pontos de vista que, por um lado, enriquecem a narração e, por outro, relativizam seu estatuto de “verdade”, seu efeito ilusionista. O espectador é instado a ter consciência de que aquelas pessoas estão interagindo com um ator que faz de conta que é alguém que elas conheceram de verdade no passado.
Se o método de construção do filme tem muito em comum com Serras da desordem, de Andrea Tonacci, que também reconstituía uma história nos mesmos locais em que aconteceu, e com os próprios indivíduos que a viveram, aqui há essa diferença crucial: o protagonista já não está presente, e em seu lugar há um ator – em certo sentido, um simulacro, um fantasma.
Contradições e coerência
Feita essa opção básica de construção do relato, Fellipe Barbosa corria ainda dois riscos: o de cair na hagiografia, erigindo um herói sem mácula, e o de se perder na miríade de informações de que dispunha e não conseguir dar consistência a seu personagem.

O primeiro perigo – que parece se esboçar na primeira parte do filme, no qual vemos um Gabriel permanentemente simpático, curioso e solidário com todos que o cercam – é afastado quando entra em cena a namorada do protagonista, Cristina (a sempre excelente Caroline Abras), que chega para passar algumas semanas com ele na África.
Além de suscitar uma explicitação das ideias de Gabriel sobre a distribuição da riqueza no mundo, a presença de Cristina faz virem à tona contradições e fraquezas de sua personalidade. Ele se revela uma figura humana, demasiado humana, em toda a sua grandeza e fragilidade.
O outro risco, o de acumular episódios sem conseguir conferir um sentido coerente (em termos dramáticos) à trajetória do personagem, é vencido graças à escolha de um fio unificador: a relação de Gabriel com o tempo.
A chave para essa leitura é fornecida pelo soneto “Ah! Os relógios”, de Mario Quintana, citado duas vezes e declamado uma vez na íntegra pelo protagonista. Seus versos dizem que “o tempo é uma invenção da morte” e “basta um momento de poesia para nos dar a eternidade inteira”.
Gabriel parece estar o tempo todo em busca de tal momento de poesia. Por isso, paradoxalmente, perde a noção da hora e está sempre correndo, sempre atrasado: seu visto vai expirar, a última luz do dia vai se extinguir antes que ele consiga chegar ao topo da montanha, o horário para fazer bungee jumping vai terminar, o ônibus vai partir enquanto ele fuma um baseado com alguém que acabou de conhecer numa aldeia, e assim por diante. O epitáfio de André Breton diz: “Eu procuro o ouro do tempo”. Talvez o de Gabriel Buchmann, tal como o filme o descreve, pudesse ser o mesmo. O fato é que o tempo é um personagem, um elemento quase palpável em Gabriel e a montanha.
Tempo controlado
Ao contrário de seu personagem, que perde o controle das horas, Fellipe Barbosa mostra um domínio absoluto do ritmo e do tempo. Extrai o máximo de seus planos longos, sobretudo dos fixos, graças a uma mise-en-scène precisa e de uma eficiente direção de atores.

Um exemplo eloquente é uma cena em que vemos Cristina e Gabriel discutirem de modo crescentemente áspero, sentados lado a lado num ônibus estacionado numa aldeia. A câmera, postada do lado de fora do ônibus, mostra Cristina junto à janela, em primeiro plano, e Gabriel ao fundo. Ao longo da conversa, vendedores ambulantes, dos quais vemos apenas os braços, oferecem bugigangas a Cristina, que as recusa, primeiro com sorrisos, depois de modo cada vez mais seco. Num único plano fixo, desenha-se todo um mundo de ideias, sentimentos em conflito, relações com o entorno.
Se Casa grande era uma experiência de autoconhecimento, Gabriel e a montanha é um exercício de alteridade, de empatia com o outro – um “outro”, no caso, empenhado por sua vez em trocar conhecimento, energia e afeto com seus semelhantes, para além das diferenças de classe social, cultura ou cor da pele. Numa época de intolerância e encastelamento em guetos impermeáveis ao que lhes é diferente, é um alento muito bem-vindo.
Assista ao trailer:
 *José Gerado Couto é crítico de cinema e tradutor. Publica suas criticas no blog do IMS

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