A ÍNTEGRA DA PALESTRA DE DILMA:
Meu país vive hoje momentos muitos difíceis. Estamos diante de uma situação crítica. A prisão de Lula é uma evidência de que nós vivemos tempos em que medidas de exceção convivem com o sistema democrático. As medidas de exceção corroem o sistema democrático. Vivemos uma situação em que conquistas por muito aguardadas, alcançadas, e algumas ainda em desenvolvimento, foram suprimidas, foram paralisadas, e retrocessos em conquistas sociais foram impostos.
Me refiro ao que vem acontecendo no Brasil em termos de volta da extrema pobreza, da ameaça de volta do país ao Mapa da Fome da ONU – que indica os países em que ainda existe fome em pleno Século XXI. Em 2014, o Brasil conquistou a grande vitória de ter retirado o seu povo, pela primeira vez, em toda a nossa história, do Mapa da Fome.
Tudo isso é muito sentido por nós. É muito importante que possamos entender o que se passa no Brasil e na América Latina. É preciso que todos tenham consciência de que a democracia está sob ameaça em muitos países latino-americanos.
Há uma diferença entre os golpes que estão sendo cometidos neste momento e os golpes da época da ditadura militar, que atingiram muitos países do nosso continente. A diferença? Quando se trata de golpes militares, de processos nazistas ou fascistas, suspendem-se os direitos de toda a população. São drásticas medidas, cortes nos direitos de organização, de expressão – de imprensa livre nem se fala – de manifestação e de opinião. E, na sua radicalização, matam, torturam, exilam e forjam supostos inimigos. Estes golpes eram típicos da Guerra Fria.
O golpe de hoje é dito como não-golpe, porque ele não tem as mesmas características. É tido como um evento de anormalidade institucional. Mas não é. É um golpe – parlamentar, muitas vezes jurídico, com grande empenho da mídia, principalmente dos setores da mídia que são extremamente concentrados na América-Latina, e no Brasil em especial. Quatro famílias controlam, oligopolisticamente, os principais meios de comunicação no Brasil.
Este golpe de 2016 tinha um objetivo estratégico claro, e vários outros objetivos que eu chamaria de conjunturais. O objetivo conjuntural escondeu, no início, a intenção maior do golpe.
Na ditadura militar, é como se a árvore da democracia fosse derrubada com um machado. No golpe que sofremos agora, é como se fungos e parasitas corroessem a árvore da democracia desde dentro. A começar pelo equilíbrio entre os poderes. Quando derruba-se um presidente eleito sem que ele tenha cometido crime de responsabilidade, como exige a Constituição, a partir daí tudo é possível.
O processo de radicalização leva a constante esgarçamento, ruptura dentro de cada um dos poderes. Isto afeta a Justiça. Afeta aquela Justiça que tem de cimentar a relação civilizada, segundo a qual todos são iguais perante a lei.
Eu sei que só a democracia formal não basta. Todos os povos procuraram construir uma democracia de oportunidades iguais para todos. Mas é bom que a gente saiba que sem a democracia formal todos os seus direitos estão ameaçados. O que nós aprendemos no Brasil ao longo da nossa história é que, sempre que a democracia se aprofundou, a população brasileira ganhou. Sempre que a democracia formal foi suspenda ou colocada entre aspas, de alguma forma mitigada, a população brasileira perdeu.
O golpe não é um ato. Como qualquer golpe, ele é um processo. Ele precisa se reproduzir. Não é só derrubar um governo e está encerrada a questão. Não.
Os golpistas espalharam pelo mundo que o Brasil estava quebrado. Não estava, e eles mesmos tiveram de reconhecer que o Brasil tinha uma situação macroeconômica robusta. Quando Lula assumiu o governo em 2003, o Brasil devia para o FMI mais do que tinha em caixa. O FMI mandava e desmandava em nosso país. Impunha políticas de arrocho salarial, não permitia investimentos em saneamento, casas populares – em nada. Nós conseguimos construir uma reserva. Ao longo dos governos de Lula e do meu, construimos US$ 380 bilhões de reservas internacionais. Temos a quinta maior reserva internacional do mundo, talvez a sexta, não posso assegurar porque desconheço como se desenvolveram as reservas dos outros países.
Mas é fato que, quando me derrubaram, o Brasil não estava quebrado. O que houve é que eles aproveitaram uma crise econômica, que chegava até nós, crise pela qual o Brasil não era responsável, porque se tratava do efeito da crise mundial de 2008 sobre os países emergentes – nós, a China, a Rússia, a Argentina… Nós sofremos uma queda imensa do preço das commodities, e tivemos uma série de problemas neste período.
Mas era uma crise econômca. Nós superaríamos. Mas aconteceu que aproveitaram a crise econômica, superável, e jogaram sobre ela uma crise política.
Eu fui eleita em novembro de 2014, com 54,5 milhões de votos. Em março, os que perderam a eleição, os adversários que eu enfrentei nas urnas, entraram com um pedido de impeachment contra mim. As alegações era fluídas, não se tinha clareza sobre o que eles alegavam. Pediram recontagem de votos, pediram um escrutínio sobre a nossa campanha, tentaram até impedir a minha posse por meios judiciais. Em março eles entram com o primeiro de 18 processos de impeachment. Nenhum deles vai vingar. Até que no final de 2015 eles entram com o processo que de fato vai virar o meu impeachment, alegando um suposto gasto irregular de 0,03% do orçamento, na forma de um empréstimo bancário – que vinha sendo feito por todos os governos desde 1994 – subsidiando agricultores grandes, médios e pequenos, projeto que tinha o nome de Plano Safra. E que fique bem claro: nem eu, nem Lula, nem Fernando Henrique Cardoso assinamos qualquer ato neste processo. Não há nossa assinatura, é um processo apenas burocrático, tipificado pela lei. Mas quando aconteceu sob o meu segundo mandato, alegaram que estávamos tomando empréstimo do banco do Brasil, um banco público, o que a lei não permite. Até as pedras das ruas de Brasília e as emas ou avestruzes que vivem no Palácio da Alvorada sabiam que era apenas um subterfúgio. Era um biombo. Eram procedimentos, processos e legislações na sua capa. E assim eles dizem: mas nós respeitamos todos os rituais. Sim, eles respeitaram os rituais, mas usaram os rituais para assassinar a lei, para utilizar a lei de forma distorcida. Este processo é grave. É a politização descarada da Constituição. A Constituição não pode ser interpretada ao bel-prazer de quem se acha no direito de fazê-lo. Nem no Brasil nem em qualquer país democrático.
E foi aí que o golpe, o processo do golpe, começou. Começa com a minha saída. Há um efeito sobre as demais instituições. Numa eleição, se aprova um programa. O programa que foi aprovado com a minha eleição era a continuidade do processo de redução das desigualdades, a ampliação do acesso da população a serviços, como educação, saúde e demais serviços, que uma população como a brasileira nunca teve, de luz elétrica à fornecimento dágua. Mas, sobretudo, educação. Nós fizemos um esforço enorme para que a população mais pobre do Brasil, que é além de pobre, dominantemente negra, pudesse ter acesso a ensino de qualidade. É óbvio que não conseguimos resolver este problema em 13 anos. É impossível, a não ser com a continuidade desta política. Também fizemos um grande programa de formação técnica dos trabalhadores.
‘Grande’, no Brasil, é algo que se conta em milhões. Não se pode fazer um programa no Brasil para dez mil pessoas, porque não fará a menor diferença. É assim que o Bolsa Família beneficia 56 milhões, Minha Casa Minha Vida para 4,5 milhões de famílias (cerca de 20 milhões de pessoas), programa Mais Médicos para 63 milhões de pessoas…
Nós colocamos os pobres no orçamento. Significa que nós gastávamos com os mais pobres, porque são eles que precisam do estado. Vocês sabem que uma pessoa com três ou quatro filhos que ganha 200 dólares por mês, e é disso que se trata no Brasil, não consegue pagar por uma casa. Esta é a maioria da população brasileira. A grande maioria das famílias brasileiras ganha dois salários minimos, ou 400 dólares. Vejam que estou falando aqui de famílias, não de pessoas individualmente. É óbvio que o estado tem de intervir para enfrentar este problema, muitas vezes com subsídios. Subsidiar, nesta situação, é papel do estado. Estas famílias têm de mudar de vida e para que isto aconteça você precisa beneficiar desde já as crianças, a próxima geração. Nós tinhamos toda a consideração pelos jovens e pelos jovens adultos, mas tinhamos um foco, queríamos que a próxima geração comesse três vezes por dia, tivesse acesso obrigatório a vacinas, acesso obrigatório a educação, acesso obrigatório a uma comunidade saudável, morando em casas adequadas, não em favelas e alojamentos precários.
Este era o nosso programa. Nós conseguimos resultados expressivos, e isto foi reconhecido pela ONU e por todos os órgãos que tratam da questão do aumento da igualdade no mundo. E nós estávamos contra a corrente. Na década em que nós reduzimos a desigualdade, o mundo ampliava a desigualdade. A gente vinha provando que era possivel crescer e distribuir renda. Não só e possível, como uma coisa puxa a outra. Não se pode esquecer que temos um mercado de consumo expressivo. E que também tinhamos uma política externa independente.
Quando eles dão golpe, passam a executar a sistemática destruição de toda esta política.
Não deixa de ser sintomático que eles inaugurem a gestão interina do governo e acabem com o ministério da Cultura, porque para eles era irrelevante. Aqui em Berkeley vocês respiram cultura. A cultura é a forma pela qual a nacionalidade de um país se expressa ou se erige.
Eles montam um ministério de homens velhos, ricos e brancos, num país que tem mais da metade da população formada por mulheres, negros, indigenas e pobres.
Criaram algo que se chama ‘teto de gastos’, por 20 anos: o Brasil não poderá mais ter os investimentos em saúde e em educação crescendo acima da inflação. Isto é uma sandice. O Brasil deixou para trás milhões de pessoas. Ao mesmo tempo em que tem de atender quem entra, tem que buscar quem ficou para trás. Portanto, sempre será preciso gastar em educação e saúde mais do que o índice de crescimento econômico e mais do que o índice da inflação. Impuseram uma reforma trabalhista extremamente prejudicial. Tomaram uma série de medidas. Chegaram a revogar um decreto que proibia, coibia e fiscalizava o trabalho-escravo, ou em condições análogas à escravidão. Este tipo de exploração ainda existe no Brasil e se o ministério do Trabalho não fiscaliza, esta situação piora.
Este é um lado da questão. Enquanto isso, começa outra ação que vem desde um pouco antes do meu impeachment, que são os processos de combate à corrupção. Há dois pré-requisitos para o combate à corrupção: o primeiro é fortalecer as instituições que fazem este trabalho, o segundo é criar uma legislação que permite o enfrentamento.
Antes de nós, o procurador Geral da República era chamado – não por nós, mas pela imprensa, que de santa não tem nada – de engavetador geral da República. Todo processo contra corrupção que chegava a ele não tinha continuidade, ía direto para a gaveta.
Lula, ao assumir, passou a escolher como procurador Geral aquele que fosse o mais votado por seus colegas de corporação. Assim, fortaleceu o ministério público, dando-lhe autonomia. Há quem questione isto, mas o fato é que eu e o presidente Lula demos poder corporativo a esta instituição do estado. Além disso, Lula fortalece a Polícia Federal. Também criamos novas leis. Corrupção exige a existência de uma dupla – o corrupto e o corruptor. No Brasil, se punia o corrupto e fingia-se que não se via o corruptor. Isto é típico do poder do dinheiro em sociedades que ainda carecem de maior desenvolvimento democrático. Nós tipificamos o corruptor. Ele passou a ser passível de punição. Também deixamos mais claro o institutio da delação premiada. Tudo isso em 2013, que é quando começam as investigação mais fortes de corrupção no Brasil.
Eu reproduzo aqui a fala de um senador e líder golpista, o senador Romero Jucá. Ele foi gravado por outro senador, do mesmo partido que ele. O Jucá tantava persuadir seu colega a participar do golpe. E diz mais ou menos assim: “é necessário que a gente tire eles porque eles não vão impedir a investigação de corrupção; para estancar a sangria, temos de dar o golpe”. E conclui dizendo: “Com o Supremo Tribunal Federal e com tudo”. Esta é fala, e é bom que vocês saibam que ela está sendo transformada em fake news numa série da Netflix, que estranhamento coloca esta frase, gravada pela própria procuradoria, na boca do Lula, que não tem nada a ver com esta declaração. O que mostra como se constrói politicamente fake news.
Não se dá um golpe, não se tira um presidente que é inocente, por impeachment, sem que se tenha um objetivo político em mente. Nós tinhamos vencido quatro eleições presidenciais consecutivas. Lá atrás, em 2006, chegaram a pensar num impeachment, mas avaliaram, como disse o senador golpista Agripino Maia, que não precisava porque a gente “ia sangrar até morrer”. E nós ganhamos mais três eleições. E depois de quatro eleições, eles tiveram que seguir o conselho de Milton Friedman: usar uma crise forjada e real, para que o politicamente impossível se tornasse politicamente inevitável. Politicamente impossível era aprovar a agenda deles, vencerem a eleição com a agenda deles. O que se tornou politicamente inevitável foi o nosso afastamento.
Além disso, todo o golpe quer se reproduzir. Tem de continuar. Não pode parar nem no primeiro nem no segundo ato. O que eles queriam não era só me derrubar, mas destruir o PT, o presidente Lula e a nossa militância política. Buscavam a nossa inexistência. Para isso, adotaram o que se chama de “justiça do inimigo”. Você define o inimigo e passa a tentar destruí-lo. Pode ser o imigrante, por exemplo. No caso do Brasil, o inimigo éramos nós. Mas acontece que em vez de nos destruir, eles se destruiram e nos fortaleceram.
Isto aconteceu porque eles subestimaram a crise econômica e subestimaram a própria crise política que tinham criado. E subestimaram também a capacidade de compreensão da população brasileira. Se num primeiro momento, parte da população foi induzida a se voltar contra seus próprios interesses, isto mudou, e a mudança foi mostrada, inclusive, pela escola de samba Paraíso do Tuiuti, no carnaval deste ano no Rio, ao exibir os ‘manifestoches’, que se mobilizaram contra si mesmos. Mas o que vem ao caso é que não nos destruiram. O núcleo golpista, que era constituído de partidos de centro e de centro-direita eliminou suas lideranças. Eles próprios foram atingidos pela sangria que queriam estancar. Colocaram em marcha um processo que pretendia nos atingir e acabou atingindo-os.
Assim, este segmento político e midiático tem, hoje, um problema; não tem um candidato. Não tem um candidato efetivamente viável. Mas eles produziram um problema, para si mesmos e para o país: abriram o cenário político do Brasil para a extrema-direita. Todo o movimento que cerca o golpe é de divisão, de intolerância, de semeadura da violência, da misoginia, uma divisão absolutamente irracional – eles nos chamam de petralhas, nós os chamamos de coxinhas. Não é assim que se constrói uma democracia. Não é acentuando as diferenças, mas buscando consensos, pontes, negociações.
O que acontece, desde o início do ano passado, é que o presidente Lula passa a liderar todas as pesquisas de opinião. E não só liderar na intenção de votos, mas reduzindo a rejeição ao seu nome. Ele foi exposto a 70 horas de notícias do maior telejornal do país lhe julgando e condenando, induzindo a população a achar que ele cometeu atos ilegais inimagináveis. Se ele conseguiu resistir, deve existir uma explicação para isto.
A rejeição a Lula e a nós inicialmente subiu, porque durante um tempo a imprensa brasileira funcionou como uma instância da Justiça. Mas uma instância da justiça inteiramente distorcida. A imprensa julga, tem a iniciativa, não tem regras nem protocolos, não respeita nenhum dos rituais democráticos. Para a imprensa, a presunção de inocência acabou. Mas o processo acaba chegando à justiça formal e, por mais complicada que seja a justiça brasileira neste momento, no processo formal há direito ao contraditório, nós podemos nos defender, nós sabemos do que somos acusados. E o que se vê são cenas que a população inteira pode ver, como a de um .procurador da República vir a público e apresentar um power point que põe o Lula no centro de todo o crime cometido na operação Lava a Jato e, perguntado pela imprensa – essa imprensa que julga e condena – “quais são as provas contra Lula, senhor procurador”, ele respondeu: “não tenho provas, tenho convicções”.
Qualquer pessoa pode assistir a este cena na internet. O processo contra o Lula começa, então, a ser ultradiscutido em todo o Brasil. Do que o acusam? De ter um apartamento. Obviamente, ele ganhou este apartamento porque concedeu algum beneficio para a empresa que o presenteou. Mas o problema é que o apartamento não é propriedade dele, não está registrado em nome dele num cartório de imóveis, ele não tem a posse, nunca morou lá. E aí se descobre que este apartamento que lhe foi atribuído foi usado pela empresa proprietária como garantia de um empréstimo bancário. Como a empresa não pagou o empréstimo, uma juíza levou o apartamento a leilão. Como, então, este apartamento pode ser do Lula? Mas, como diz o juiz do processo, isto não vem ao caso.
Mas além de provar que o apartamento pertence ao Lula, para que se caracterize o crime de corrupção passiva é preciso provar que Lula tenha tomado alguma medida, feito alguma lei, ou decreto, qualquer ato seu que tenha beneficiado a empresa que o teria presenteado com o imóvel, ou até o contrário, que é deixar de fazer algo que poderia prejudicar tal empresa. O próprio juiz afirma na sentença que nada foi feito ou deixado de fazer, e que o ato de ofício, que caracterizaria a culpa, é indeterminado.
Então, Lula é julgado e condenado. É condenado porque acreditam que, com isso, e agora, com a prisão, ele vai sumir das pesquisas de intenção de voto. Pois neste fim de semana, depois de estar preso há alguns dias, fizeram uma pesquisa, com a qual não temos nada a ver, que mantém Lula com mais do que o dobro dos votos do segundo colocado, o senhor Bolsonaro.
Vejam vocês que complicação política quando num país democrático o centro some, explode, é destruído. A inconsequência da política golpista leva ao surgimento da extrema-direita.O Brasil é um país complexo, precisa da diversidade de opiniões para efetivar uma real democracia.
E qual é a solução que eles dão? Prendem o Lula. Para impedir que ele seja candidato. E descumprem a Constituição, que diz no artigo 5º que todos são iguais perante a lei e, no inciso 57, ninguém será considerado culpado até que seus recursos transitem em julgado em todas as instâncias do Judiciário. Em fevereiro de 2016, o STF mudou o entendimento sobre a Constituição, de forma estranha, porque o tribunal não tem este poder, além do Congresso, e passou a aceitar um mecanismo que se chama prisão provisória, antes do trânsito em julgado. É prisão de qualquer jeito. Mas dizem que a pessoa está presa por ser provisoriamente culpada. Agora, dois anos depois, o STF estava revendo esta interpretação, mas antes de discutir o princípio, um habeas corpus para o Lula, justamente alegando que a Constituição veta prisão antes de todos os recursos, é rejeitado por 6 a 5 – com o voto de minerva contra Lula dado pela presidente do tribunal. E a questão geral, que se refere a qualquer preso, está está esperando exame há mais de ano.
Enquanto isso, o que temos? Lula está preso numa solitária. Lula está isolado numa solitária. Isto porque a situação é mais complexa. Não basta prender o Lula, não podem deixar o Lula falar. O próprio juiz que o prendeu diz isso. Diz que ele fala muito contra a operação que resultou na sua prisão, e não pode falar. Ele não pode falar porque ele argumenta e muda a opinião das pessoas.
Ele está numa solitária. Eu vivi a prisão durante a ditadura. Fiquei três anos presa. Na ditadura, é claro, a prisão pode resultar na sua tortura e até na sua morte, graças à arbitrariedade absoluta, que impede até que saibam que você está preso. Portanto, eu sei que é diferente, e sei que naquela situação é muito mais grave. Mas tem algo que é importante destacar. É próprio dos golpes negar que são golpes, negar que haja prisões arbitrárias, negar que haja tortura, negar que haja assassinatos, como o que aconteceu com a Marielle, que foi um assassinato político. Os golpes tendem a se radicalizar, e o assassinato da vereadora Marielle é sem dúvida um indício de radicalização.
Hoje, estão tentando retirar de Lula o direito de receber visitas. Ele só tem direito a uma visita semanal. Nove governadores de estados, no exercício de sduas funções, foram visitá-los e não permitiram.
Este é uma situação grave. O que estão tentando é silenciar Lula. Ele disse nos seus últimos discursos que é muito difícil prender uma ideia. Podiam prendê-lo, mas as pessoas falariam por ele, andariam e iriam a todos os lugares por ele. Eles têm medo do que o Lula venha a transmitir, se deixarem ele falar com as pessoas.
Mas o Lula também disse que estará nesta eleição, preso ou solto, morto ou vivo, condenado ou absolvido. Isto não e uma bazófia. É a expressão política do seguinte: eu não represento uma pessoa, eu represento uma ideia e uma porção de pessoas.
Muita gente pergunta por que, sabendo desta situação, mantemos a candidatura do Lula? Seria muito estranho que a gente, considerando Lula inocente e perseguido político, retirase a candidatura dele, que é o brasileiro com maior índice de aprovação como candidato à presidência. Nós vamos dizer que ele é culpado? Por que? Eles é que acham que ele é culpado. Nós o consideramos inocente.
Antes da votação do impeachment, a mídia dizia que eu devia renunciar e que, se não renunciasse, seria um sinal de autismo, o que é um absurdo, além de preconceito com os autistas.
Você não renuncia quando não tem culpa. Se você acha que a democracia é m bem, você luta para ampliar os espaços democráticos. É sua obrigação ir ao Senado e explicar à população brasileira o que está acontecendo, como eu fiz. Caso contrário, você perde algo fundamental: a narrativa que deixará, não para o momento imediato, mas para todos saberem o que aconteceu.
Por que abriríamos mão da candidatura do Lula e resolveríamos o problema deles?
Então, o Lula é o nosso candidato. E nós entendemos que só a liberdade dele pode viabilizar uma eleição democrática em outubro deste ano.
Nós também acreditamos que a democracia é o aspecto mais importante desta conjuntura. Às vezes, o aspecto mais importante é a questão social, ou é a soberania do país. Mas neste momento que nós vivemos, a democracia permite que os outros aspectos se afirmem. Sem ela, nós não nos reencontraremos. O Brasil não se reencontrará. No meu ponto de vista, haverá necessidade de um periodo de transição, durante o qual teremos que reconstruir o pacto democrático, que vai permitir que nós respeitemos não só os votos, como a regra do jogo.
É importante que vocês saibamm que o Brasil tem uma elite muito problemática. Nós temos um povo muito sofrido. Sofrido porque é um povo que emerge de 300 anos de escravidão. E a elite sempre achou que o povo, mais do que excluído de seis direitos, não tinha direito de estar ali.
Dou exemplos deste preconceito contra “estar ali”. Protestaram e nos acusaram de ter transformado os aeroportos em rodoviárias, porque o povo passou a andar de avião, já que sua renda aumentou. Chegamos a um momento em que 35% das pessoas que se formaram numa universidade eram os primeiros de suas famílias a chegar a um curso superior. São ganhos que transformam a vida das pessoas. Diziam que eram um absurdo adotarmos políticas de cotas, e isto no país de maior população negra do mundo fora do continente africano. O segundo país de maior população negra no mundo, logo depois da Nigéria.
No Brasil, a exclusão se combina com o privilégio. A forma de controle violento não é visível porque atinge os de baixo. Da classe média para cima, não há um nível de violência e de controle relevante. Quem são os presos no Brasil? São os jovens negros. As mulheres que sofrem mais violência são as mulheres negras. Marielle é o símbolo de uma mulher que assumiu a sua condição, que foi capaz de desenvolver uma política e, mais do que isso, denunciou tanto o privilégio como a exclusão social. A face do excluído no Brasil é criança, é mulher, é negro, vive na periferia das grandes cidades, e no Norte e no Nordeste. São estes os milhões de brasileiros que durante os nossos governos tiveram acesso a serviços públicos e a renda.
Mas, como diz o próprio Lula, nós subimos um degrau, e este único degrau que nós subimos já foi intolerável para a elite brasileira.
Por isso, nós teremos que reconstruir a democracia no Brasil. Não é possível mais a judicialização da politica, como também não é mais possível a politização do judiciário.
E há que ter clareza de que deveremos olhar várias coisas. Da concentração dos meios de comunicação, passando por uma reforma política, uma reforma tributária. Nós somos um dos dois únicos países do mundo, junto com a Estônia, que não tributam dividendos.
E vale a pena lembrar que durante o meu golpe havia manifestações na Avenida Paulista, em São Paulo, que é o coração da atividade financeira no Brasil. O presidente da Federação das Indústrias, senhor Paulo Skaf, plagiou um pato amarelo de um artista holandês, que depois protestou contra ele. Colocou este pato, bem grande, no meio da avenida Paulista.O pato significava o seguinte: em toda a crise – e vocês viveram uma, recentemente – há um conflito distributivo. Vou dar um exemplo daqui. Você tem que escolher que empresas você salva e em muitos momentos há que saber quem é que pagará uma parte da crise e quem pagará menos. Na Espanha, por exemplo, as pessoas perderam as casas, e foram salvos os financiadores. No Brasil, havia um conflito distributivo na crise. Seria necessário aumentar impostos. Não pagar o pato, como gritavam os empresários da Avenida Paulistam, significava não pagar impostos. Mas não há como sair da crise sem girar as dívidas das empresas ou sem mudar a legislação. Não é possível em países como o Brasil vigir a seguinte equação: financeirização, ou alta concentração da riqueza em títulos, papéis e especulação financeira, que leva a um aumento da desigualdade, que por sua vez leva a uma necessidade de desregulamentação das atividades financeiras e a uma redução drástica dos impostos. Isto acontece em muitos países. Redução da tributação sob o argumento de que tributar significa necessariamente reduzir a atividade econômica.
É bom começar a discutir isto, porque financeirização está levando, também, à mitigação da democracia. No Brasil e nos demais países do mundo. O que é gravíssimo. Nós vivemos tempos muito estranhos, em que algumas coisas aparecem invertidas. Por exemplo, o fato de que hoje não há mais a esperança de que os meus filhos viverão melhor do que eu. Esta é uma desesperança que atinge a quase todas as sociedades.
Por 13 anos, nós tivemos a oportunidade de ver auto-estima das pessoas aumentar e fazer com que as pessoas achassem que seus filhos iriam viver melhor do que elas. Este é o maior orgulho que eu tenho de ter sido presidenta do Brasil. É saber que as pessoas acreditavam que teriam uma vida melhor. Que o futuro seria melhor. É muito triste quando as pessoas acham que o passado foi melhor. É lamentável. E quero encerrar dizendo o seguinte: quando os estados e os governos não respondem às demandas de suas populações, a política se torna irrelevante. Campo fértil para aqueles horrorosos animais que surgiram durante o entreguerras, com o nazismo e o fascismo. E mais: com a intolerância e o desrespeito às pessoas. Como a política ficou irrelevante, esta intolerância transforma a democracia, também, em algo muito irrelevante. É aí que começa o perigo. É contra isso que nós temos de nos posicionar. Não interessa qual é a nossa posição no espectro. Mas se somos democratas, não queremos que isto se repita nos nossos países. E eu não quero que se repita no meu país.
Lula livre!
Fonte:Diário do Centro do Mundo - DCM
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