Como adolescente gay (e
no armário) dos anos 90, aprendi a camuflar minha diferença nas
situações mais comuns e inusitadas da minha vida. Um exemplo disso é que atrás
da porta do meu quarto tinha um calendário de uma marca de pneu digno de
oficinas mecânicas, mas nos finais de semana, eu me reunia com minhas amigas e
fazia os testes das revistas femininas adolescentes, cuidando para que, ao ler
os resultados, os artigos e pronomes fossem alterados para masculino. Fazia
tudo isso achando que minha orientação estava a salvo e escondida de tudo e
todos.
Enquanto eu crescia, a minha
diferença era uma desvantagem. Como se eu fosse o único que não sabia jogar
truco num churrasco da família; ou como se eu fosse o único a não
entender a diferença entre escanteio e impedimento; ou como se eu fosse o
último a ser escolhido para o time durante a educação física na escola.
Continuo sendo isso tudo, mas felizmente já entendi que sou tudo isso, mas
não sou único. Foi aí que essa minha diferença abandonou o barco da
desvantagem e virou capitã do barco da minha identidade.
Acontece que essa segurança
de quem eu sou não me protege das oscilações que qualquer viagem em mar aberto
enfrenta. Numa viagem com amigos para
um paraíso no meio do Brasil, o que me torna diferente esqueceu seu papel
prioritário e resolveu virar peso no saco de pedras que todo mundo carrega. Ao
entrar na embarcação (dessa vez literal) do nosso passeio,
dois casais heterossexuais queriam sentar próximos uns dos outros. Na fileira
de bancos entre eles, estávamos eu e meu noivo já fazia uns 10 minutos. Um dos
homens, ao perceber o impasse, prontamente perguntou pra gente se havia um
casal sentado na fileira ao lado deles. Meu noivo respondeu que sim. Uma
incredulidade imperceptível (para a maioria, mas pra mim não)passou
pelo rosto desse homem que retrucou: “Um casal!?”. Dessa vez, eu
respondi que sim, talvez com mais impaciência do que firmeza. Ao perceber o
potencial do novo impasse, a companheira dele disse que “estava tudo
bem”e se despediu do outro casal que foi sentar no fundo da lancha.
Parece um impasse logístico
simples, né? Talvez ao primeiro olhar até seja. Mas em todos os níveis não é. E
definitivamente não estava tudo bem, como a companheira dele tentou frisar. A
atitude do companheiro dela não é diferente nas outras pessoas e em diversas
situações. O que é diferente é que muitas vezes atitudes como desse
cara não são verbalizadas, mas estão lá. Num olhar quando você beija
seu namorado no supermercado, numa virada de pescoço quando você o chama de
amor no aeroporto, na surpresa daquele seu colega de trabalho que ainda não
sabia que você era gay. E por aí vai.
Entre todos os mais diversos,
variados e abrangentes problemas envolvidos numa situação como essa, o
mais forte talvez seja o efeito que isso causa em quem percebe a frequência
desse comportamento e se esforça muito de forma a não se afetar por isso. Lembra
do saco de pedras que falei agora há pouco? Então, esse saco é aquele onde você
guarda sua insegurança, sua incerteza, sua preocupação, sua ansiedade. Todo
mundo tem um desses e o exercício é não deixar o peso dele te atrasar ou te
afundar, no oceano cotidiano da vida.
Para casais gays, lésbicos e
de outras configurações que desafiem a heteronormatividade, a luta e o
exercício é constante. E começa
antes mesmo do adversário apresentar suas armas. Quem nunca viu uma promoção
para casais em restaurantes e já desconsiderou ir por ser gay? Quem
nunca programou uma viagem e ficou preocupado se o hotel entenderia que no
quarto deveria haver uma cama de casal, apesar dos hóspedes serem do mesmo
sexo? Quem nunca hesitou em demonstrar afeto ao despedir do namorado
(a) por considerar o ambiente silenciosamente hostil?
Nesse dia, quando duvidaram
que eu e meu noivo éramos um casal, meu barco pode ter atrasado um pouco, mas
não afundou. Talvez tenha atracado onde não devia por um tempo, mas
eventualmente encontrou seu caminho de volta. Não existe um ditado que fala que
mar calmo nunca fez um bom marinheiro?
Então, continuemos a navegar.
Então, continuemos a navegar.
Fonte: Thanks to Redação TRENDR.
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