A Ponte Carlos, em Praga, lembra a cidade de Olinda num domingo
de carnaval. As pessoas mal conseguem caminhar, tamanha é a quantidade de
turistas, principalmente italianos. Um euro vale muitas coroas tchecas, o que
torna Praga muito atraente para os europeus dos países ricos. Escutamos as
vozes dos guias amplificadas por microfones amadores, numa verdadeira babel de
idiomas. Desenhistas trabalham em caricaturas, grupos musicais se apresentam
com repertórios de jazz e blues.
Em vários locais da cidade recebi folhetos de propaganda,
convites para uma visita à casa de Franz Kafka. Não estive na residência do
escritor, mas almocei um excelente pato com beterrabas e comi torta de maçã no
Café Savoy, que ele costumava frequentar, segundo dezenas de outros
informativos.
Estranhei esse culto a Kafka, um autor que foi pouco lido
enquanto viveu e que continua sem muitos leitores nos dias atuais. Os seletos
apreciadores de Kafka não fazem parte da massa de turistas que espera em filas e
paga ingressos para olhar a mesa em que ele escrevia seus textos, alguns
propositalmente deformados. As pessoas que se agitam pelos cômodos da casa do
autor de A metamorfose, lembrando o Gregor Samsa transformado em barata, talvez
desconheçam que Kafka representou de forma contundente a modernidade e o
aniquilamento do homem pela burocracia. As engrenagens do turismo moderno
lembram essa burocracia.
Chama atenção na Europa o exagerado culto aos artistas, mesmo na
França, onde proliferam livrarias a cada esquina, as pessoas leem em todos os
lugares, e há incontáveis salas de cinema. Esse culto faz parte de uma
indústria para arrecadar dinheiro e é mais fácil de ser percebido nos museus
superlotados de visitantes. A adoração às imagens criadas pelos pintores se faz
do mesmo modo como se adoravam os santos nas igrejas. Mudaram apenas os autores
dos milagres.
Na cidadezinha de Auvers-sur-Oise, visitei o túmulo onde está
enterrado Vincent van Gogh. Às sete horas de uma tarde em que o sol continuaria
claro até às nove e meia, os dois portões do cemitério continuavam
escancarados, não havia ninguém cobrando ingressos, o que é bem estranho na
França. Do lado esquerdo do cemitério e junto ao muro externo, duas sepulturas
simples, cobertas por uma erva barata. Numa lápide de pedra, o nome do pintor
hoje famoso, e as datas de nascimento e morte. Do lado dele, Theo, que morreu
poucos meses depois do suicídio de Vincent, e que foi trazido mais tarde para
junto do irmão, que ele tanto amava.
Tamanha simplicidade, tamanho silêncio e solidão contrastam com
a turbulência e a criatividade, o gênio e a loucura de Vincent van Gogh. Mas
estão em perfeita harmonia com sua vida de pintor sem fama, que nada vendeu do
que produziu, e que se mantinha graças à generosidade de Theo. O extenso campo
em frente ao cemitério já não é de trigo; é de mostarda com flores amarelas, o
amarelo que se repete obsessivamente na obra de Van Gogh. Em meio às flores,
bem ao longe, corre uma jovem ginasta. Tudo é tão expressivo e bonito que penso
em acordar Vincent, para que ele pinte a alegria que sinto.
Reencontro Van Gogh no seu museu em Amsterdã. Durante seis horas
contemplo os mais de duzentos quadros da coleção. Numa loja, vendem
reproduções, agendas, camisas, canetas, cadernos, livros, marcadores, leques,
sombrinhas, pratos, copos, todos os objetos em que é possível reproduzir uma
pintura do artista. É um rendoso comércio, ajuda a manter a instituição, faz
circular o dinheiro que Vincent nunca imaginou que sua arte produziria. Ele que
experimentava novas formas e escrevia ao irmão, falando das esperanças de
conseguir vender algum quadro.
Franz e Vincent, dois símbolos da incompreensão e do êxito,
transformados em quarto de visitação pública. São os enigmas da modernidade que
Kafka e Van Gogh anunciaram.
Por Ronaldo
Correia de Brito
Fonte: Blog do Ronaldo
Correia de Brito
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