“Se tivesse a idade dos rapazes do cinema novo creio que não escreveria mais: faria cinema”. Essa frase dita por qualquer ser humano, portador ou não do dom da escrita, brasileiro ou estrangeiro, revela o quanto o cinema pode ser sedutor. Essa frase dita – como foi dita – por Guimarães Rosa, em confidência a Glauber Rocha, revela o quanto o cinema, e o poder da imagem que carrega, é uma tentação diabólica até para o maior de nossos feiticeiros imbuído do poder da palavra.
Por Evandro Souza*
Ilustração: Helena Enne Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem – Ilustração: Helena Enne Gostaria de ser um crocodilo, porque amo os grandes rios, pois são profundos como a alma do homem – Ilustração: Helena Enne
Felizmente, o “rapaz” Guimarães Rosa nunca esteve diante desse dilema e a câmera nunca foi uma alternativa à sua escrita. Se o Brasil perdeu a oportunidade de ter o seu John Ford, nunca saberemos, mas os textos do maior escritor em língua portuguesa do século 20 estão preservados pela generosidade do destino. Se o cinema realizado às sombras do Monument Valley proporcionou por meio da imaginação de um diretor o mito de criação da grande nação do norte no Velho Oeste, o sertão mítico de Guimarães Rosa é a vereda que nos leva com muito mais verdade, via literatura, até a fronteira entre o corpo e a alma brasileira.
Embora o “cineasta Guimarães Rosa” tenha sido apenas o devaneio de um mestre de uma arte milenar, a obra de Rosa não escapou à fome dessa nova forma de arte que devora desde seu nascimento suas irmãs mais velhas, como o teatro, a música, a pintura e, entre outras, a literatura.
O cinema brasileiro, que em princípio cogitou encontrar nos textos de Guimarães Rosa aspectos “infilmáveis”, logo tentaria superar essa timidez. Em 1954 um ainda jovem e desconhecido François Truffaut – que viria a ser um dos pais da nouvelle vague – no célebre artigo “Uma certa tendência do cinema francês”, ponderava se existia realmente em algum romance cenas infilmáveis e se cenas assim decretadas seriam infilmáveis para “todos”. No caso do universo literário roseano, ao menos para um autor, a saber, Roberto Santos, o “infilmável” não se impôs.
“A Hora e a Vez de Augusto Matraga”, filme de 1965, baseado no conto homônimo e última novela da coletânea “Sagarana”, livro de estreia de Guimarães Rosa, além de figurar na galeria das maiores obras da cinematografia brasileira, talvez seja a única tentativa de traduzir a literatura de Rosa para a tela que logrou êxito. E diversas outras tentativas foram feitas. O próprio “Nhô Augusto” ganhou em 2011 um novo longa metragem sob o mesmo título. Produção premiada, pomposa, tecnicamente competente e medíocre, pode ser ignorada juntamente com as outras aproximações cinematográficas sem dor na consciência por parte de quem aprecia a obra de Guimarães Rosa e é cioso de seu tempo. É possível encontrar, sim, diversos documentários interessantes sobre Rosa e sua literatura. Mas, no âmbito ficcional, para além da obra de Roberto Santos, apenas o deserto, embora o cinema brasileiro que se auto-congratula possa não concordar.
Obviamente, o diálogo entre o sertão de Rosa e o sertão de Glauber não entra nessa solução ácida. Muita tinta já foi gasta para descrever o quanto “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de 1964, é o mais próximo que o cinema chegou de Guimarães Rosa, sem fazer nenhuma tentativa de tradução textual direta. Mas o sertão revolucionário de Glauber, que quer virar mar, pertence a Glauber. E o sertão oriundo de um mar de longa-duração de Rosa, pertence a Rosa. O grande feito de Roberto Santos em seu filme de 1965 foi conseguir traduzir diretamente esse último do universo da palavra escrita para o da imagem e do som. E isso não é pouca coisa.
Como toda estória que vale a pena ser contada, “A Hora e a Vez de Augusto Matraga” é um conto universal. Sem perder a sua essência, a trama poderia se desenrolar entre samurais no Japão feudal e ser levada às telas por um Kurossawa. Poderia ser um western americano como “Rastros de Ódio” (1956) embora John Wayne não seja tão dramático quanto Leonardo Villar no papel de Augusto Matraga, ou ainda algo como a raiva contida e a busca de redenção de Clint Eastwood em “Os Imperdoáveis” (1992). Roberto Santos soube preservar esse valor universal do conto de Rosa sem cair na tentação de utilizar um tesouro literário para expressar o vazio da classe média urbana como não é raro em um cinema feito pela elite intelectual e dado a arroubos subjetivistas.
O filme de Santos, embora preserve essa capacidade de conto inteligível em qualquer lugar onde exista ser humano e, por consequência, disputa, violência, paixão e tragédia, não deixa de ter o seu brilho próprio como expressão cinematográfica à parte da fonte de genialidade originária. A música de Geraldo Vandré, por exemplo, que permeia o filme, causa um estranhamento e acrescenta camadas de interpretação que leva a resultado muito diverso do que um diretor tacanho faria ao descarregar modas de viola no que imaginaria ser um conto regionalista. Tão bom quanto a viola em uma canção sobre astronautas e galáxias, como se ouviu em “2001” – dos Mutantes e não de Kubrick – o violão de Vandré deixa claro que o filme não está alienado de seu tempo histórico. As estrofes do “Réquiem Para Matraga”, que abrem e fecham o filme, revelam um diretor atento ao desenrolar dos acontecimentos à sua volta ainda na metade da década de 1960.
A decupagem com liberdade de câmera, a montagem que dá um ritmo de trote lento à estória com algumas galopadas esparsas, a literalidade de alguns diálogos ora mais engessados, ora mais livres e menos textuais, o aspecto preto e branco com personagens pedidos nas sombras muitas vezes, marcam um estilo que pode causar estranhamento ao espectador jovem não iniciado em coisas velhas e boas. É “ferrugem em bom ferro” diria Joãozinho Bem-Bem. Ainda em 1965 ao ver apenas duas sequências completas do filme de Roberto Santos na I Semana do Cinema Brasileiro em Brasília, o grande crítico Paulo Emílio Salles Gomes disse ter se sentido diante do melhor já visto em cinema brasileiro. E não por acaso o filme foi o vencedor do festival onde figuraram obras como “Menino de Engenho” de Walter Lima Jr. e “São Paulo, Sociedade Anônima” de Luís Sergio Person.
O sucesso de Roberto Santos na empreitada onde tantos outros fracassaram antes e depois dele ao se aventurarem com suas câmeras no sertão roseano, se deve, muito provavelmente, à busca de um olhar a partir de dentro e não de fora. Um diretor que se porta como o sacerdote que entra no santuário com a humildade de um aprendiz afastando qualquer postura didática e professoral.
Esse respeito com o material que tinha em mãos foi mostrado por Roberto Santos uma vez mais em 1968 no curta-metragem “A João Guimarães Rosa”, produzido pelo Departamento de Cinema da USP, onde o diretor foi convidado por Rudá de Andrade a lecionar como forma de se preservar da repressão política que assolava o país. Agora, em um tom muito mais lírico do que narrativo como no filme de 1965 (embora no longa-metragem possam ser encontrados belos momentos de lirismo como a luta de Matraga para domesticar o burrinho Valente), o curta-metragem feito a partir de fotografias de still é Guimarães Rosa em poesia e imagem.
Se a vez de Augusto Matraga – ou de algum outro elemento da herança deixada por Guimarães Rosa à cultura universal – há de chegar outra vez ao cinema, é incerto. Talvez o consiga um diretor que tenha o espírito de repetir o feito de Roberto Santos nem que “seja à porrete”, sem a utilização de editais como bilhete premiado para a realização de cinema divorciado de público, ou sem as mãos mercadológicas que jamais poderiam captar a riqueza da obra de Rosa em um enlatado para ser exibido fraturado em quatro partes na TV aberta.
Roberto Santos foi um privilegiado. Em 1987 tentou mais uma vez a sorte. Dessa vez com Machado de Assis ao exibir seu filme “Quincas Borbas” no Festival de Gramado. Foi um fracasso retumbante. Ao voltar de Gramado, com esse insucesso na bagagem, Roberto Santos morreu de infarto no aeroporto de Guarulhos. A generosidade dos deuses do cinema e da literatura não chegam a tanto. Obter a graça do Feiticieiro e do Bruxo seria glória demais para um homem só.
*Evandro Souza é bacharel em História pela USP, aventureiro em expedições arqueológicas pelos sertões brasileiros e espectador de cinema
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