Por Boaventura de Sousa Santos*
Em artigo inédito para a Fórum, o sociólogo e
intelectual português escreve: “Sabemos que os dados mais importantes da
operação Lava Jato foram fornecidos pelo Departamento de Justiça dos EUA. O
resto foi resultado da miserável ‘delação premiada’. O juiz Sergio Moro
transformou-se no agente principal dessa intervenção imperial”
A democracia brasileira está à beira do
abismo. O golpe institucional que se iniciou com o impeachment da Presidente
Dilma e prosseguiu com a injusta prisão do ex-presidente Lula da Silva está
quase consumado. A consumação do golpe significa hoje algo muito diferente do
que foi inicialmente pensado por muitas das forças políticas e sociais que o
protagonizaram ou dele não discordaram. Algumas dessas forças agiram ou
reagiram no convencimento genuíno de que o golpe visava regenerar a democracia
brasileira por via da luta contra a corrupção; outros entendiam que era o modo
de neutralizar a ascensão das classses populares a um nível de vida que mais
tarde ou mais cedo ameaçaria não apenas as elites, mas também as classes médias
(muitas delas produto das políticas redistributivas contra as quais agora se
viravam). Obviamente, nenhum destes grupos falava de golpe e ambos acreditavam que
a democracia era estável. Não se deram conta de que havia três bombas-relógio
construídas em tempos muito diversos, mas podendo explodir simultaneamente. Se
tal ocorresse, a democracia revelaria toda a sua fragilidade e possivelmente
não sobreviveria.
A
primeira bomba-relógio foi construída no tempo colonial e no processo de
independência, foi acionada de modo particularmente brutal várias vezes ao
longo da história moderna do Brasil, mas nunca foi eficazmente desativada.
Trata-se do DNA de uma sociedade dividida entre senhores e servos, elites
oligárquicas e povo ignaro, entre a normalidade institucional e a violência
extra-institucional, uma sociedade extremamente desigual em que a desigualdade
socioeconômica nunca se separou do preconceito racial e sexual. Pese embora
todos os erros e defeitos, os governos do PT foram os que mais contribuíram
para desativar essa bomba, criando políticas de redistribuição social e de luta
contra a discriminação racial e sexual sem precedentes na história do
Brasil. Para a desativação ser eficaz seria necessário que essas políticas
fossem sustentáveis e permanecessem por várias gerações a fim de a
memória da extrema desigualdade e crua discriminação deixar de ser
políticamente reativável. Como tal não aconteceu, as políticas tiveram outros
efeitos, mas não o efeito de desativar a bomba-relógio. Pelo contrário,
provocaram quem tinha poder para a ativar e a fazê-lo quanto antes, antes
que fosse tarde demais e as ameaças para as elites e classes médias se
tornassem irreversíveis. A avassaladora demonização do PT pelos média
oligopolistas, sobretudo a partir de 2013, revelou a urgência com que se queria
pôr fim à ameaça.
A segunda bomba-relógio foi construída na ditadura militar que governou o país
entre 1964 e 1985 e no modo como foi negociada a transição para a democracia.
Consistiu em manter as Forças Armadas (FFAA) como última garantia da ordem
política interna e não apenas como garantia da defesa contra uma ameaça
estrangeira, como é normal nas democracias. “Último” quer dizer em estado
de prontidão para intervir em qualquer momento definido pelas FFAA como
excepcional. Por isso, não foi possível punir os crimes da ditadura (ao
contrário da Argentina, mas na mesma linha do Chile) e, pelo contrário, os
militares impuseram aos constituintes de 1988, 28 parágrafos sobre o estatuto
constitucional das FFAA. Por isso, também muitos dos que governaram durante a
ditadura puderam continuar a governar como políticos eleitos no congresso
democrático. Apelar à intervenção militar e à ideologia militarista autoritária
ficou sempre latente, pronta a explodir. Por isso, quando os militares
começaram a intervir mais ativamente na política interna nos últimos meses (por
exemplo, apelando à permanência da prisão de Lula), isso pareceu normal dadas
as circunstâncias excepcionais.
A
terceira bomba-relógio foi construída nos EUA a partir de 2009 (golpe
institucional nas Honduras), quando o governo norte-americano se deu conta de
que o sub-continente estava fugindo de seu controle mantido sem interrupção
(com excepção da “distração” em Cuba) ao longo de todo o século XX. A
perda de controle continha, agora, dois perigos para a segurança dos EUA:
o questionamento do acesso ilimitado aos imensos recursos naturais e a presença
cada vez mais preocupante da China no continente, o país que, muito antes de
Trump, fora considerado a nova ameaça global à unipolaridade internacional
conquistada pelos EUA depois da queda do Muro de Berlim. A bomba começou então
a ser construída, não apenas com os tradicionais mecanismos da CIA e da Escola
Militar das Américas, mas sobretudo com novos mecanismos da chamada defesa da
“democracia amiga da economia de mercado”. Isto significou que, além do
governo dos EUA, a intervenção poderia incluir organizações da sociedade
civil vinculadas aos interesses econômicos dos EUA (por exemplo, as financiadas
pelos irmãos Koch). Portanto, uma defesa da democracia condicionada pelos
interesses do mercado e, por isso, descartável sempre que os interesses o
exigissem. Esta bomba-relógio mostrou que já estava operando no Brasil a partir
dos protestos de 2013. Foi melhorada com a oportunidade histórica que a
corrupção política lhe ofereceu. O grande investimento norte-americano no
sistema judicial vinha do início dos anos de 1990, na Rússia pós-soviética e
também na Colômbia, entre muitos outros países. Quando a questão não é de
“regime change”, a intervenção tem de ser despolitizada. A luta contra a
corrupção é isso. Sabemos que os dados mais importantes da operação Lava Jato
foram fornecidos pelo Departamento de Justiça dos EUA. O resto foi resultado da
miserável “delação premiada”. O juiz Sergio Moro transformou-se no agente
principal dessa intervenção imperial. Só que a luta contra a corrupção por si
só não seria suficiente no caso do Brasil. Era suficiente para
neutralizar a aliança do Brasil com a China no âmbito dos BRICS, mas não para
abrir plenamente o Brasil aos interesses das multinacionais. É que,
em resultado das políticas dos últimos quarenta anos (e algumas vindas da ditadura),
o Brasil teve até há pouco imensas reservas de petróleo fora do mercado
internacional, tem duas importantes empresas públicas e dois bancos
públicos, e 57 universidades federais completamente gratuitas. Ou seja, é um
país muito longe do ideal neoliberal, e para dele o aproximar é preciso uma
intervenção mais autoritária, dada a aceitaçao das políticas sociais do PT pela
população brasileira. E assim surgiu Jair Bolsonaro como candidato “preferido
dos mercados”. O que ele diz sobre as mulheres, os negros ou os homosexuais ou
a tortura pouco interessa aos “mercados”, desde que a sua política econômica
seja semelhante à do Pinochet no Chile. E tudo leva a crer que será
porque o seu economista-chefe tem conhecimento direto dessa infame política
chilena. O político de extrema-direita norte-americano Steve Bannon apoia
Bolsonaro, mas é apenas o balcão da frente do apoio imperial. Os analistas do
mundo digital estão surpreeendidos com a excelência da técnica da campanha
bolsonarista nas redes sociais. Inclui micro-direcionamento, marketing digital
ultra-personalizado, manipulação de sentimentos, fake news etc. Para quem
assistiu na semana passada na televisão pública norte-americana (PBS) ao
documentário intitulado “Dark Money”, sobre a influência do dinheiro nas
eleições dos EUA, pode concluir facilmente que as fake news (sobre crianças,
armas e comunismo etc.) no Brasil são tradução em português das que o “dark
money” faz circular nos EUA para promover ou destruir candidatos. Se alguns dos
centros de emissão de mensagens estão em Miami e Lisboa é pouco relevante
(apesar de verdadeiro).
A vitória de Jair Bolsonaro no segundo turno significará a detonação simultânea
destas três bombas-relógio. Dificilmente a democracia brasileira sobreviverá à
destruição que causarão. Por isso, o segundo turno é uma questão de regime, um
autêntico plebiscito sobre se o Brasil deve continuar a ser uma democracia ou
passar a ser uma ditadura de tipo novo. Um livro meu, muito recente, circula
hoje bastante no Brasil. Intitula-se “Esquerdas do Mundo, uni-vos!”. Mantenho
tudo o que digo aí, mas o momento obriga-me a um outro apelo mais amplo:
Democratas brasileiros, uni-vos! É certo que a direita brasileira revelou nos
últimos dois anos um apego muito condicional à democracia, ao alinhar com o
comportamento descontrolado (mas bem controlado em outras paragens) de parte do
judiciário, mas estou certo de que largos setores dela não estarão dispostos a
suicidar-se para servir “os mercados”. Têm de unir-se ativamente na luta
contra Bolsonaro. Sei que muitos não poderão recomendar o voto em Haddad, tal é
o seu ódio ao PT. Basta que digam: não votem em Bolsonaro. Imagino e espero que
isso seja dito, publicamente e muitas vezes, por alguém que em tempos foi um
grande amigo meu, Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil e, antes
disso, um grande sociólogo e doutor Honoris Causa pela Universidade de
Coimbra, de quem eu fiz o elogio. Todos e todas (as mulheres não vão ter nos
próximos tempos um papel mais decisivo para as suas vidas e a de todos os
brasileiros) devem envolver-se ativamente e porta a porta. E é bom que tenham
em mente duas coisas. Primeiro, o fascismo de massas nunca foi feito de massas
fascistas, mas sim de minorias fascistas bem organizadas que souberam capitalizar
nas aspirações legítimas dos cidadãos comuns que desejam viver com um emprego
digno e em segurança. Segundo, ao ponto que chegamos, para assegurar uma certo
regresso à normalidade democrática não basta que Haddad ganhe, tem de
ganhar por uma margem folgada.
*Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e intelectual português.
Fonte: Revista Fórum
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