A ditadura tentou destruir a inteligência brasileira – investiu contra artistas e pensadores para calar suas vozes e destruir os meios de comunicá-las. Mas a inteligência foi mais forte, e criou o Brasil moderno
Por José Carlos Ruy*
Artistas foram à luta contra a censura e a ditadura .
O ministro de Propaganda de Hitler, Joseph Goebbels, dizia “quando ouço falar em cultura, levo a mão ao coldre de meu revólver”, frase que resume a atitude de muita gente da extrema direita quando se trata de valores civilizatórios.
Foi também a atitude de muita gente, no Brasil, sob a ditadura militar de 1964.
Havia, é claro, aqueles conservadores que, embora não admitissem posições progressistas e libertárias, ancoravam-se valores culturais que, mesmo sendo considerados por muitos como ultrapassados, não os renegavam.
Mas houve, sobretudo no aparato repressivo da ditadura e na censura, aqueles cuja posição era extremista de direita. E que, sobretudo depois do Ato Institucional nº 5 (AI-5), de 13 de dezembro de 1968, agiram não só para calar mas para destruir a cultura brasileira.
A censura e a perseguição a artistas e produtores culturais foi, ao lado da sangrenta repressão, da tortura e assassinatos políticos, a marca mais reconhecida da ditadura. É incontável o número de canções, peças de teatro, livros, filmes, reportagens e mesmo exposições de arte, que foram pura e simplesmente proibidos pelos censores da ditadura.
O jornalista Zuenir Ventura calculou que, somente durante a vigência do AI-5 (1968-1978), foram proibidos cerca de 500 filmes, 450 peças de teatro, 200 livros e mais de 500 letras de música.
O objetivo dessa fúria repressiva não se limitava à insânia ditatorial de calar as vozes da oposição democrática; era destruir os instrumentos de transmissão do pensamento democrático anti-ditatorial.
Um exemplo desse afã destrutivo foi a atuação contra a imprensa, principalmente os jornais alternativos, democráticos. Como a censura imposta ao jornal “Movimento” desde – pasmem! – seu número zero, em julho de 1975, por ordem direta do general Ernesto Geisel, ocupante da presidência da República, e de seu ministro da Justiça. Armando Falcão. A censura e a repressão a “Movimento” foi de uma severidade inaudita. Em uma das edições, por exemplo, foram cortadas todas as palavras “não” em um artigo, deixando claro que o objetivo não era proibir mas desfigurar o jornal, tornando-o incompreensível para os eleitores e, assim, os afastando do jornal.
Esta barbárie censória pode ser avaliada a partir de informações dadas por seu editor, o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira. Somente nas quinze primeira edições do jornal foram censuradas 184 reportagens (média de 12 por edição), e parcialmente proibidas outras 177, num total de 1099 laudas de matérias jornalísticas.
Este é um exemplo da fúria repressiva contra as vozes que se levantavam contra o arbítrio da ditadura.
Um dos exemplos mais lembrados da ação dos vândalos da extrema direita contra a cultura foi o ataque de arruaceiros do Comando de Caça aos Comunistas (CCC), em 18 de julho de 1968, ao Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, quando era encenada a peça “Roda Viva”, de Chico Buarque de Hollanda, sob direção de José Celso Martinez Corrêa. Um grupo de uns vinte desordeiros do CCC agrediu artistas e a plateia e depredou o cenário.
Foi talvez o mais visível ataque da extrema direita contra a cultura durante a ditadura, numa sucessão de outros atos violentos contra o teatro como a proibição pura e simples de textos teatrais (como “O Rei da Vela”, de Oswald Andrade), o sequestro da atriz Norma Bengel, no mesmo ano, e as ações que contra os teatros Arena, Oficina e Opinião.
O ataque contra ao Teatro Ruth Escobar e à peça “Roda Viva” pode ser encarado como um símbolo da ação da direita – levar a mão ao revólver.
Mas a violência desse gesto enfrentou a decidida resistência dos brasileiros contra a barbárie, impedindo-a de cumprir seu objetivo – destruir o pensamento livre e avançado no Brasil.
O Brasil viveu, desde 1930, transformações sociais e econômicas profundas. A velha e anacrônica “fazendona” que até então o país foi deixava de existir. A indústria se generalizou e as cidades cresceram. Entre 1960 (quando 55% dos brasileiros ainda moravam na roça, e 45% nas cidades) e 1970 a população urbana ultrapassou, em número, a população rural.
Foi um verdadeiro terremoto social com reflexos importantes em todas as áreas da vida nacional. A cultura registrou a mudança a despeito – e contra – as tentativas da censura e da ditadura de esvaziar qualquer reflexão crítica.
Sob a ditadura, a emoção e a indignação contra o arbítrio levou o pensamento e a ação a atitudes políticas e culturais que registraram a repulsa contra o cerceamento da liberdade.
A canção “Parque Industrial”, de Tom Zé, resumiu, pode-se dizer, o espírito da época e registrou: “O avanço industrial / Vem trazer nossa redenção”, entusiasmo repetido no refrão “Porque é made, made, / made, made in Brazil.”
A direita – sobretudo a extrema direita – tentou, com a força das armas, prisões arbitrárias, perseguições e assassinatos – impedir os brasileiros de pensar e exprimir, através da arte, seus sentimentos de liberdade.
Mas o pensamento livre foi mais forte. As contradições da época, a opressão, as mudanças que ocorreram, ficaram registradas em inúmeras obras célebres. Como “A Hora dos Ruminantes (1966), de José J. Veiga; Quarup (1967), de Antonio Callado, Incidente em Antares (1971), de Érico Veríssimo. Ou os filmes “São Bernardo” (1971), de Leon Hirszman, baseado no romance do mesmo título, de Graciliano Ramos; “Terra em Transe” (1967) e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1969), ambos de Glauber Rocha; “Pra frente, Brasil” (1982), de Roberto Farias. Na canção, além da Parque Industrial, já citada, cabe lembrar algumas (numa lista certamente injusta por sua parcialidade) “Pedro Pedreiro” e “Construção”, de Chico Buarque de Hollanda; “Ouro de Tolo”, de Raul Seixas; “Terra”, Caetano Veloso; “Como nossos pais”, de Belchior; “Pra não dizer que não falei das flores “, de Geraldo Vandré – a lista é quase infinita.
O certo é que a ditadura e a extrema direita apontaram o revólver contra a cultura sem conseguir destruí-la – a inteligência foi mais forte do que a força bruta!
O que a modernização conservadora da ditadura conseguiu foi subordinar parte da cultura brasileira às regras do mercado capitalista – mas isso ocorreria de qualquer forma pois, sob o capitalismo, o deus dinheiro fala alto.
A indústria cultural que surgiu e se fortaleceu, sobretudo desde a década de 1970, manifestou-se de várias maneiras. Uma delas foi a televisão, cujo grande produto cultural, fortalecido desde então (e que Dias Gomes considerou “única invenção da televisão brasileira”) foram as telenovelas – elas próprias submetidas a severa ação da censura, que proibiu inúmeras delas, como por exemplo “O Bem Amado” (TV Globo, 1973) do próprio Dias Gomes.
A indústria cultural esteve também em outras áreas como, por exemplo, na proliferação de discos, livros, revistas, jornais, fascículos e outros produtos de consumo de massa.
Mesmo as agências de publicidade, se encaradas como produtoras de cultura (ao influenciar a população pela veiculação massiva) foram modernizadas.
Se há algo que um exame, mesmo sumário, que a história da ditadura revela, é que a inteligência vence o medo e o arbítrio.
O Brasil hoje é um país moderno, mesmo submetido ao retrocesso promovido pela extrema direita e seu governo, com Jair Bolsonaro à frente. O Brasil moderno é aquele que reage ao arbítrio e exige o respeito ao Estado Democrático de Direito. Um Brasil construído pelos brasileiros, contra a tentativa da extrema direita de destruir a cultura brasileira.
*José Carlos Ruy é jornalista, escritor e colaborador do Portal Vermelho
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