Há pouco mais de duas semanas, quando apoiadores de Sérgio Moro atiraram rojões contra o Barco Flipei na Festa Literária Internacional de Paraty, onde o jornalista Glenn Greenwald participava de um debate, acontecia, quase ao mesmo tempo, um outro encontro no auditório principal da Flip, ao lado da Igreja Matriz. Nele se reuniam o ator e diretor do Teatro Oficina, José Celso Martinez Corrêa, e o líder indígena Ailton Krenak para, mais do que uma conversa, uma comunhão.
Os poucos e ruidosos apoiadores de Sérgio Moro certamente não sabiam quem eram os homens que estavam na praça. Se soubessem, talvez compreendessem que aquele era um encontro menos óbvio, porém ainda mais eminentemente político do que o que acontecia no barco pirata ancorado do rio Perequê-Açú. Numa poltrona, o representante de uma arte que não apenas resiste, mas reexiste; na outra, o rosto que entrou para a história, há mais de 30 anos, coberto de tinta preta de jenipapo em defesa da inclusão dos direitos indígenas na Constituição da República.
Ouvindo o foguetório violento, foi Krenak quem comentou: “Quando decidiram homenagear Euclides da Cunha na Flip, não sabiam que estavam trazendo Canudos junto”.
Todos esses personagens estão, de certa forma, no centro das tragédias que se descortinam agora (e, provavelmente, nem a imaginação encenadora de Zé Celso ousaria tanto). Pouco mais de 15 dias depois, a violência daqueles rojões se materializa na perseguição de Moro a Greenwald, inclusive com a tentativa de intimidação por meio da perigosa Portaria 666. Enquanto isso, Canudos se revive no Amapá, onde um grupo de homens armados invadiu a aldeia indígena Waiãpi, depois de ter assassinado o cacique Emyra Waiãpi e, com ele, os direitos dos povos indígenas de cuja luta Krenak se tornou símbolo.
É contra tudo isso que a Contee expressa seu repúdio, seu pesar, sua indignação. O governo Bolsonaro é uma ameaça à liberdade de imprensa. O governo Bolsonaro é uma ameaça à arte, à ciência, à cultura. O governo Bolsonaro é uma ameaça aos povos da floresta — e à própria floresta. O governo Bolsonaro — como discutimos na semana passada, bem no meio desse turbilhão, durante o Conatee Extraordinário — é uma ameaça aos trabalhadores, ao movimento sindical, à educação.
O governo Bolsonaro é uma ameaça.
“Como justificar que somos uma humanidade se mais de 70% estão totalmente alienados do mínimo exercício de ser? A modernização jogou essa gente do campo e da floresta para viver em favelas e em periferias, para virar mão de obra em centros urbanos. Essas pessoas foram arrancadas de seus coletivos, de seus lugares de origem, e jogadas nesse liquidificador chamada humanidade”, escreveu Krenak, no livro lançado na Flip, defendendo que é essencial preservar os vínculos profundos com nossa memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade. Incluamos nisso o comprometimento total e coletivo com nossa luta.
O livro de Krenak tem um título provocador: “Ideias para adiar o fim do mundo”. De certo modo, não é também isso o que o Conatee discutiu? Propostas para evitar o fim que Bolsonaro e as forças nefastas que o sustentam querem dar ao mundo pelo qual lutamos?
O governo Bolsonaro é uma ameaça. E enfrentá-la é preciso e urgente. Copiando o que diz o texto na orelha do livro, “só assim poderemos ressignificar nossa existência e refrear nossa marcha insensata em direção ao abismo”.
Por Táscia Souza
Fonte: CONTEE
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