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sábado, 17 de agosto de 2019

Racismo impediu reconhecimento internacional de Rondon como explorador

 Marechal Rondon - Fotos Google
Não foi só a enorme admiração por Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958) que levou o jornalista americano Larry Rohter a preparar uma biografia do marechal. Rohter foi correspondente no Brasil pela revista Newsweek e depois pelo jornal The New York Times. Ao atuar neste último veículo, ele se tornou mais conhecido do público local. Em 2004, quase foi expulso do país ao publicar reportagem sobre o consumo de álcool do então presidente Lula.
Por Naief Haddad
Nestes 14 anos em que viveu no Brasil, Rohter se aproximou de familiares da sua mulher, Clotilde, nascida aqui, e fez amigos no País. “Pensei no livro como um presente para eles, um modo de dizer: ‘O Brasil foi capaz de gerar um homem da estatura de Rondon. Então nem tudo está perdido’”, diz Rohter em tom bem-humorado.
De fato, esse mato-grossense de vida longa (quase 93 anos) colecionou proezas fascinantes, como demonstra Rondon, a recém-lançada biografia. Ao longo de mais de 20 expedições pelo norte do País nas primeiras décadas do século 20, ele redesenhou o mapa da Amazônia. Não teria desempenho tão notável como cartógrafo e engenheiro sem resistência física e disciplina. Depois de formado na Escola Militar, no Rio, percorreu mais de 40 mil km a pé, a cavalo, no lombo de mulas, em canoas.
Foi ainda pesquisador. A Comissão de Linhas Telegráficas Estratégicas de Mato Grosso ao Amazonas, que ficou conhecida como Comissão Rondon, publicou mais de cem artigos científicos, com temas que variavam de botânica a meteorologia. Descendente de indígenas, fundou em 1910 o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), entidade comandada por ele nos anos seguintes.
Ao contrário do “índio bom é índio morto”, celebrado pelos desbravadores dos EUA do século 19, Rondon deixou outra frase como herança: “Morrer se preciso for, matar nunca”. No poema Pranto Geral dos Índios, Carlos Drummond de Andrade se referiu a ele como o “militar suave”.
Durante fase inicial da Comissão Rondon, como relata Rohter, uma flecha atirada por um nhambiquara atingiu o peito do militar. Só não o feriu porque ficou cravada na bandoleira, a correia de couro onde ele prendia a arma. Além de não reagir, Rondon impediu que seus homens atacassem os índios.
O jornalista evita, porém, tratar Rondon como homem de conduta irretocável. Lembra, por exemplo, os castigos severos do oficial aos seus soldados indisciplinados – puniu-os mais de uma vez com golpes de chicote ou vara.
Mais famosa no exterior do que a Comissão Rondon foi a Expedição Científica Roosevelt-Rondon, liderada pelo brasileiro e pelo ex-presidente dos EUA Theodore Roosevelt (1858-1919). Ao longo de dois meses, entre fevereiro e abril de 1913, eles percorreram os mais de 1.400 km do rio da Dúvida (mais tarde rebatizado como rio Roosevelt), que até então não tinha sido mapeado. Concluíram que se tratava do maior afluente do rio Madeira.
Boa parte das informações inéditas ou pouco conhecidas trazidas pela biografia estão nesses capítulos dedicados à expedição. Dezenas de livros já descreveram essa aventura, mas quase todos se basearam apenas nos relatos em inglês de Roosevelt e dos naturalistas que o acompanharam. Além dessas fontes, Rohter recorreu aos diários, relatórios e entrevistas de Rondon e depoimentos de integrantes da equipe dele.
Dessas visitas a novos baús, sai engrandecida a figura do médico José Antônio Cajazeira, o dr. Cajazeira, pouco mencionado nas obras anteriores. Roosevelt machucou a perna durante a viagem e, nos dias seguintes, o ferimento resultou numa infecção. Não bastasse isso, os ataques de malária e as doenças estomacais deixaram o ex-presidente americano sem força. Foi Cajazeira quem cuidou de Roosevelt. Num povoado de seringueiros, operou a perna dele, sem anestesia. Não fosse o médico baiano, crê o autor, o político americano teria morrido.
Ainda durante a viagem, o canoeiro Julio matou um colega após um desentendimento. Roosevelt quis a pena de morte. Tomando como base as leis brasileiras, Rondon defendeu que o assassino fosse preso. Como Julio se embrenhou pelo mato, não houve nem uma punição nem outra. “Esse episódio mostra o abismo cultural entre brasileiros e americanos em relação à Justiça”, afirma Rohter. O embate diante do crime já tinha sido relatado em outras obras, mas aparece na nova biografia com mais nuances.
O autor revela dois objetivos com o livro. Com a versão em inglês, que será publicada no ano que vem, pretende tirar Rondon das notas de rodapé dos tradicionais livros sobre os maiores exploradores da história. Roosevelt até que tentou ressaltar a importância e a coragem de Rondon em conferências realizadas em entidades de exploradores e geógrafos na Europa e nos EUA, mas obteve pouco sucesso.
“A ideia de um intelectual cientista indígena não cabia nos conceitos da época [início do século 20]. Houve, basicamente, racismo”, afirma o jornalista americano. O autor também aponta a inconsistência das críticas direcionadas a Rondon por famosos desbravadores europeus, como Percy Fawcett. O explorador inglês, aliás, é tratado por Rohter como um “grande impostor”.
Com a edição para o público brasileiro, o objetivo do autor é outro. Ele quer apresentar Rondon além da visão unidimensional do desbravador do sertão e defensor dos índios, o que já não seria pouco. “Ele também foi um hábil operador político, liderou a campanha pela criação do Parque Nacional do Xingu e se empenhou para evitar que o país entrasse na Segunda Guerra aliado aos nazistas. Seu lugar na história do Brasil deve ser redimensionado”, diz o biógrafo.
Rondon é a terceira obra de Rohter em que o Brasil ocupa espaço central – as anteriores foram Deu no New York Times (2008) e Brasil em Alta (2012). Nenhuma havia lhe tomado tanto tempo quanto a biografia. O jornalista dedicou quatro anos, em tempo integral, às pesquisas e à redação do novo livro.
A quarta obra a respeito do país está a caminho. O jornalista prepara uma ficção que tem como ponto de partida a Batalha dos Guararapes, em 1648 e 1649. Ele imagina uma outra história do país a partir de uma questão: e se os holandeses tivessem derrotado os defensores do Império Português nos confrontos em Pernambuco? “Vou postular a existência de dois Brasis, um ao lado do outro. Um Brasil português e um holandês.”
Folha de S.Paulo

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