Bolsonaro deflagrou, já no início de seu governo, uma espécie de “operação paraíba” na Cultura. O desmonte das políticas públicas culturais implantadas nos governos Lula e Dilma prejudicou especialmente o Nordeste
Há seis meses, em 19 de julho passado, Jair Bolsonaro foi flagrado em um desses momentos de ofensa gratuita ao conjunto da população do Nordeste. Sem saber que estava sendo gravado pela TV Brasil, o presidente desqualificou os governantes da região, em especial Flávio Dino (PCdoB-MA), com uma expressão pejorativa: “Daqueles governador (sic) de ‘paraíba’, o pior é o do Maranhão. Tem que ter nada pra esse cara”.
Difícil deduzir se, depois daquele 19 de julho, ministros e gestores seguiram a diretiva bolsonarista e passaram a boicotar Dino, o Maranhão ou o próprio Nordeste. Mas não é exagero dizer que Bolsonaro deflagrou, já no início de seu governo, uma espécie de “operação paraíba” na Cultura. O desmonte das políticas públicas culturais implantadas nos governos Lula e Dilma prejudicou especialmente o Nordeste.
É uma inversão das diretrizes que prevaleceram no Ministério da Cultura (MinC) sob os governos Lula e Dilma. Em 2003, com a posse de Lula na Presidência e de Gilberto Gil no MinC, a descentralização de ações e recursos virou prioridade na Cultura. Órgãos e políticas culturais do governo federal se concentravam até então, em Brasília e no eixo Rio-São Paulo. O ministério dispunha de apenas duas representações regionais – no Rio de Janeiro e em Brasília.
Um dos poucos órgãos presentes em mais regiões era o Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), que foi criado nos anos 30 e inaugurou suas primeiras unidades regionais no final da década de 1970. Mas, para o Nordeste em especial, a falta de uma representação – ou mesmo de um escritório regional – do MinC submetia a segunda região mais populosa do País ao ostracismo. O Ministério da Cultura ainda estava longe de representar, de fato, os interesses nacionais e populares.
O ciclo progressista (2003-2016) virou essa página. As duas representações originais do MinC (Rio e Brasília) ampliaram sua abrangência territorial, dando origem às regionais do Rio de Janeiro/Espírito Santo e do Centro-Oeste. Lula e Dilma também criaram as representações regionais de São Paulo, Minas Gerais, Bahia/Sergipe, Nordeste, Sul e Norte, além dos escritórios de Cuiabá (MT), São Luís (MA), Florianópolis (SC) e Rio Branco (AC).
A descentralização foi indispensável para o rumo democratizante aberto pela Cultura. Artistas, produtores, coletivos e entidades de todas as regiões passaram a disputar – e vencer – editais e seleções de financiamento. A explosão do audiovisual nordestino, com destaque para os cinemas baiano e pernambucano, está igualmente ligada a essa nova configuração do Ministério da Cultura.
Esse alcance mais nacional ajudou um programa do MinC a se tornar o mais bem-sucedido projeto de democratização cultural no País. Trata-se dos Pontos de Cultura, idealizado por Celio Turino, que foi secretário da Cidadania Cultural (2014-2010). No auge, o Brasil chegou a ter 3.500 pontos em 1.100 municípios. Conforme lembrou Turino, em entrevista ao Vermelho, foram beneficiadas regiões tradicionalmente excluídas, como “favelas, aldeias indígenas, assentamentos rurais, periferias de grandes cidades a pequenos municípios”.
Retrocessos
Mas o MinC – que já havia sofrido com o golpe de 2016 – foi a pique no governo de extrema direita. Sob inspiração ultraliberal e reacionária, Bolsonaro transformou a Cultura num laboratório de experimentações obscurantistas. Para começar, rebaixou o status da pasta – de ministério para secretaria especial. Um segundo rebaixamento ocorreu na escolha dos ministérios a que a Cultura ficou subordinada – primeiro, à Cidadania e, desde novembro, ao Turismo.
Se a estrutura central da Cultura foi alvejada e esvaziada, os órgãos ligados à secretaria ficaram ainda mais à míngua, em termos de recursos financeiros, materiais e humanos. Pior: passaram a se ocupar não apenas da área para a qual foram criados – mas de qualquer tema relacionado ao ministério ocasionalmente responsável pela Cultura. Gestores com larga experiência em políticas culturais ou em administração pública deram lugar a nomes alinhados ideologicamente com o bolsonarismo.
Os retrocessos não tardaram. Com a recentralização de poderes e verbas, o Nordeste foi a região mais atingida. A relação com os Pontos de Cultura passou a ser marcada pela desconfiança – e o que era um dueto virou duelo. “Houve uma crescente criminalização de pontos de cultura e de artistas, com base em pretextos como dívidas e remanejamento. Como o aval do governo à ditadura dos órgãos de controle, várias entidades foram prejudicadas”, diz a produtora e gestora cultural Tarciana Portella, chefe da Representação Regional Nordeste da Cultura (2003-2010).
Na opinião de Tarciana, antes de olhar para fora e exigir “rigor técnico-jurídico” de artistas, produtores e coletivos, a secretaria especial deveria olhar para dentro, para si, e reverter a precariedade de sua composição atual. “A Cultura passou a ser regida por uma política de doutrinação ideológica brava – o olavismo, o fundamentalismo religioso, a terra plana. O Brasil até tem pessoas ilustradas de direita, mas Bolsonaro nomeou gestores sem perfil técnico e histórico, sem nível de formulação nenhum.”
A produtora cita os casos de dois órgãos. Na Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo, um militante ultradireitista e racista, foi indicado à presidência, mas teve a nomeação barrada. No Iphan, para agradar a um empresário, Bolsonaro demitiu a historiadora e servidora Kátia Bogéa – que tinha mais de 35 anos de experiência em patrimônio histórico e presidia o instituto desde 2016. Além disso, os novos superintendentes carecem dos mais básicos conhecimentos na área.
Para Tarciana, a lógica da gestão Bolsonaro – “um governo perverso, sem apreço pela cultura” – é “o desmantelo total” dos projetos que foram gestados pelo MinC na era Lula/Dilma. “Estamos bastante órfãos com essa lógica de terra arrasada, que constrói políticas públicas não para o público – mas para seus seguidores e desavisados. Ficamos à mercê de uma situação extremamente difícil”, diz a produtora, que, no entanto, prevê a reação. “Cabe a nós estar na luta. A cultura sempre foi um setor de resistência e protesto. Não será diferente agora.”
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