Com a 2ª Revolução Francesa e as demais revoluções europeias, em 1848, “camarada” se tornou parte de um discurso afetuoso entre pessoas que compartilham as mesmas ideias socialistas e, mais importante ainda, lutavam por elas
A Revolução de 1917, liderada por Vladimir Lênin, derrubou não apenas a dinastia imperial dos Romanov, que dominava a Rússia havia mais de 300 anos. Com os bolcheviques no poder, caíram também as formas de tratamento de respeito usadas sob o regime czarista.
Até então, homens e mulheres pertencentes à nobreza, funcionários públicos e oficiais militares, comerciantes respeitáveis e padres – cada um deles tinha pronomes próprios de tratamento, similares ao “senhor” e ao “vosso” do português. Já as pessoas simples do povo, fossem cidadãos urbanos ou camponeses, não tinham uma forma de tratamento determinada – o que servia para aprofundar ainda mais as desigualdades da sociedade.
Em certa medida, o que viria a ocorrer na Rússia – a ideia de adaptar os pronomes de tratamento de acordo com a nova configuração social e política – já acontecera na França mais de um século antes. Após a nobreza ser abolida com a Revolução de 1789, os franceses inventaram uma nova forma de tratamento para pessoas livres: “cidadão”. Até mesmo o antigo rei da França passou a ser chamado de “Cidadão Luís Capeto”.
No século 19, com o advento do socialismo científico na Alemanha – terra de Karl Marx e Friedrich Engels –, os primeiros socialistas adotaram a palavra “kamrade” como sua forma de tratamento. A razão para a escolha não é clara. Em latim, o termo “camarada” significa, literalmente, “companheiro de cômodo”. Segundo alguns estudos de linguística, a palavra era usada para designar, provavelmente, pessoas que compartilhavam um mesmo alojamento durante os estudos.
Com a 2ª Revolução Francesa e as demais revoluções europeias, em 1848, “camarada” se tornou parte de um discurso afetuoso entre pessoas que compartilham as mesmas ideias socialistas e, mais importante ainda, lutavam por elas. Mas os russos não diziam “camarada” – e, sim, sua própria versão: “továrisch”.
Irmãos no comércio
Em russo, “továrisch” significava, inicialmente, não “companheiro” – mas “irmão no comércio”. A palavra vem da raiz “továr”, que significa “mercadoria”. Továrisch era um parceiro em atividades comerciais – aquele com quem uma pessoa comercializava. Assim, a palavra tinha uma conotação óbvia voltada aos negócios.
Entre os cossacos, um membro legítimo da comunidade era chamado de továrisch. O termo também foi usado no serviço público: de 1802 a 1917, existiu o cargo de “továrisch do ministro” – tecnicamente, ele era o vice-ministro. Depois da Revolução Russa, os bolcheviques adotaram rapidamente a palavra továrisch como modo universal de tratamento, usada para seus correligionários e os comunistas em geral.
Assim como o rei Luís 16 (chamado de “Cidadão Luís Capeto” depois da Revolução Francesa), o czar Nikolai Romanov passou a ser tratado por “cidadão” – e não por “továrisch” –, porque ele não poderia nunca ser um deles. Por sinal, dizer “você não é um továrisch para nós” era um insulto grave entre os bolcheviques.
Továrisch ou cidadão?
Em procedimentos oficiais, como julgamentos ou em corte marcial (que, aliás, era chamada de “julgamento továrisch” em russo), passou-se a usar o termo “grajdanín” (cidadão). Ora, um cidadão não é necessariamente um továrisch.
A forma feminina, porém, não se aplicava: “tovarka” foi utilizada por um breve período e logo ficou obsoleta. As mulheres eram tratadas da mesma maneira que os homens. No entanto, seus sobrenomes ainda tinham terminações femininas, por exemplo, “továrisch Ivânova” (a forma masculina seria “továrisch Ivánov”).
Entre os militares soviéticos (e, mais tarde, russos, ucranianos e bielorrussos), a palavra “tovarisch” se tornou a principal forma de tratamento. Os superiores se dirigiam aos subordinados usando sua posição e sobrenome, ou továrisch e sua posição: “Capitão Petróv” ou “tovarisch Capitão”. Os subordinados se dirigiam aos superiores usando apenas továrisch e sua posição: “tovarisch Primeiro-Tenente”, “tovarisch Coronel”.
Na tradição soviética, os líderes comunistas sempre foram chamados por “továrisch”: továrisch Stálin, továrisch Brêjnev, etc. Com o fim da União Soviética, os socialistas deixaram o poder, e o Partido Comunista da Federação Russa sucedeu o Partido Comunista da União Soviética (PCUS). Mas a forma de tratamento erguida pelos revolucionários bolcheviques se consolidou como uma das longevas tradições do campo comunista mundo afora.
Com informações do Russia Beyond.
Fonte: Portal BRASIL CULTURA
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