Obest-seller
“Como as democracias morrem” nos traz lições e apontamentos acerca do fenômeno
histórico de um suposto lento falecimento das democracias modernas. O livro
traz a tese de que democracias não morrem de um dia para outro, pelo menos na
sua grande maioria das vezes.
Fernando Mendonça*
As democracias seriam restringidas dentro de
um lento processo de ataque a instituições basilares democráticas. Ataque esse
que, muitas vezes, seriam providos de outsiders políticos que
conseguiram ter sucesso para superar barreiras políticas dentro de seus
partidos. Segundo os autores, Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, os partidos
políticos teriam uma função não escrita de guarda democrático, e, dentro dessa
função, o dever de impedir extremistas de alcançar legitimidade e, por
conseguinte, indicações para participar do pleito eleitoral por meio das
instituições partidárias.
Na iminência da ascensão de outsiders políticos
que apontassem um viés autoritário, defendem os autores um verdadeiro pacto
entre as forças democráticas para impedir a eventual vitória desta onda
autoritária populista. A recente eleição de Donald Trump, nos Estados Unidos, e
de Jair Bolsonaro (sem partido) no Brasil, se encaixariam no exemplo de como
estes outsiders políticos chegam ao poder e, através de ações
autoritárias, testam as instituições, a própria democracia, ao seu limite para
estender o seu próprio poder. É nesse lento e gradual processo de
enfraquecimento dos pilares democráticos que haveria o falecimento das
democracias.
Muito se fala no Brasil da construção de uma chamada “frente ampla” que arregimentasse forças democráticas para superar a base sólida de votos de Jair Bolsonaro. O que poucos comentam, é que é justamente, em parte, desse livro que advém a inspiração desta estratégia. A tese central do livro é que essa frente democrática deve ser formada por partidos, mesmo que não tenham mesma afinidade ideológica. Se afastar dos extremos, escolhendo um candidato competitivo e moderado, que possa arregimentar diversos segmentos pulverizados da sociedade para vencer a ameaça autoritária.
Tal tese se baseia em
dados empíricos nas quais se observa diversas situações espalhadas no mundo, na
qual democracias enfrentaram a ameaça autoritária populista. Os autores apontam
que, nos casos em que houve êxito nesse enfrentamento, essa frente foi composta
inclusive por partidos que eventualmente tinham alguma afinidade ideológica com
as figuras autoritárias. Mesmo que momentaneamente tal fato trouxesse uma contradição
aos membros do partido e uma eventual diminuição na base de apoiadores, a médio
e longo prazo esses mesmos partidos demonstrariam um crescimento eleitoral em
comparação ao período anterior ao da frente ampla. Porém um dado muitas vezes
passa despercebido ao leitor do livro: que esta estratégia da FRENTE AMPLA
obtém uma vitória geralmente apertada contra os outsiders autoritários,
ficando latente que não se pode subestimar a capilaridade e o poder do discurso
populista em movimentar massas na corrida eleitoral.
No Brasil, duas correntes trouxeram versões diferentes da tática de FRENTE AMPLA para enfrentar o Bolsonaro em 2022. Uma primeira corrente, que tem como protagonista o ex-presidente Lula (PT), fala da criação de uma “frente ampla de esquerda” para vencer a onda bolsonarista. A corrente se arvora da ser a legítima correlação de forças anti-bolsonarista, se apoiando no fato de que essa chamada esquerda, através da figura de Lula, ainda conseguiria arregimentar um considerável nicho de votos que garantiria uma vaga no segundo turno da eleição presidencial. E um recall de votos que adviriam do período de crescimento econômico do primeiro e segundo mandato do presidente Lula.
A segunda corrente tem
como grande artífice o ex-ministro Ciro Gomes. Ciro, já em 2018 defendia uma
aliança baseada em um projeto de desenvolvimento que comunicasse da
centro-esquerda ao centro. Com a vitória de Bolsonaro, sua concepção se amplia
inclusive incluindo, ainda mais, nas conversações partidos de centro-direita.
Se aproximando muito da tese defendida no livro de Levitsky e Ziblatt. Se
apoiaria na ideia de que um candidato mais moderado, com uma base mais ampla
pudesse, em segundo turno, congregar o maior número de setores de eleitores
fragmentados contra ascensão antidemocrática representada por Bolsonaro.
Os Estados Unidos, recentemente, aplicaram na prática a tese defendida por Levitsky e Ziblatt ao elevar Joe Biden como representante do Partido Democrata para enfrentar o republicano Donald Trump, que tentava a sua reeleição. Era sabido que apenas um presidente em toda a história Estados Unidos não havia conseguido se reeleger, sendo a tarefa de enfrentamento a esta força extremista autoritária ainda mais complicada. Todavia, vemos a tese defendida sendo aplicada quando o pré-candidato à presidência, Bernie Sanders, de uma ala mais à esquerda da política americana, abre mão de sua pré-candidatura para apoiar o moderado Biden, ex-vice-presidente de Barack Obama.
Biden, após a confirmação de sua candidatura pelo partido Democrata, ainda optou por ter como candidata à vice-presidência, uma mulher negra, a senadora democrata Kamala Harris, apontando para essa ala mais à esquerda do eleitorado americano.
Com o transcorrer do
período eleitoral, os democratas imaginaram uma “Onda Azul”, em referência às
cores do partido Democrata, nos Estados Unidos. Uma verdadeira vitória fácil
contra Donald Trump. Entretanto, tal expectativa não se confirmou. Mesmo
derrotado, Trump, no mapa eleitoral americano, teve diversas vitórias em
condados no interior dos estados americanos, confirmando a tese de que a
vitória contra um populismo autoritário é sempre apertada, não podendo se
subestimar a sua capacidade de mobilização popular.
A corrente defendida pelo entorno
lulopetista encontra problemas ao trazer em seu bojo uma alta rejeição à esquerda
que, por tática comunicacional do Partido dos Trabalhadores, é automaticamente
associado a um apoio ao PT, por conseguinte, uma defesa ao presidente Lula das
suas condenações por corrupção. Um segundo problema, é que, além de enfrentar
uma opinião de cunho lava-jatista de parte do eleitorado brasileiro, a nova
esquerda brasileira é associada à defesa de algumas pautas no campo moral,
defendidas, na maior parte das vezes, com uma prática política identitária, que
ocasionalmente entram em colisão com grupos moralmente conservadores. Um
confronto que, para muitos, é interpretado como um embate a valores cristãos,
estes ainda muito em voga em boa parte da sociedade brasileira, atraindo
rejeição em uma parcela religiosa do eleitorado.
Já o arranjo defendido por Ciro Gomes parece se aproximar mais ao que foi desenhado em torno de Joe Biden nos Estados Unidos. O arranjo padece de uma fragilidade: de não contar com o nicho de votos sólidos que lhe garantam um lugar em eventual segundo turno contra o bolsonarismo. Dando chance, inclusive, a uma eventual candidatura de centro-direita, corrente que ainda não possui um nome claro e tem grande dificuldade de se desvencilhar das pautas econômicas defendidas por Paulo Guedes no governo Bolsonaro. Portanto, a tentativa de aproximação de Ciro com partidos de centro-direita, como DEM e PSD não é só estratégica, mas também vital para superar essa primeira dificuldade, atraindo outros perfis de eleitorado ao momento inicial da eleição presidencial.
O segundo turno das eleições municipais de 2020 parecem ter trazido ensaios para as duas correntes. Em Porto Alegre, tivemos uma chamada “frente ampla de esquerda” em torno da candidata Manuela d’Ávila do PCdoB, a qual, em primeiro turno, teve uma votação expressiva que lhe garantiu vaga no segundo turno. Já em São Paulo, superando candidaturas petista e socialista, Guilherme Boulos, do PSOL, se firmou como a opção à esquerda para o pleito municipal da cidade de São Paulo. Embora ambos tenham recebido pronto apoio de todo segmento à esquerda da política brasileira, ambos sofreram sólidas derrotas no segundo turno. Manuela e Boulos acabaram por ter de lidar com o atual cenário de anti-esquerdismo, inflado pelo ainda presente sentimento de anti-petismo na população brasileira. Manuela d’Ávila foi candidata a vice-presidente em 2018 na chapa de Fernando Haddad, do PT, derrotada por Bolsonaro. Boulos ainda sofre com a memória da sua defesa a Lula durante sua candidatura à presidência em 2018. Ainda é presente a lembrança do seu inesperado “Boa Noite, Presidente Lula”, dito em debate presidencial transmitido a todo o país, mesmo, naquele momento, sendo adversário de um candidato petista. Acrescido a esses fatos, ambas as figuras, ainda possuíam em si, de forma muito clara, a defesa das chamadas pautas morais identitárias.
Estava, assim, muito bem
configurado nesses casos, a chamada “Frente Ampla de Esquerda”. Nos dois casos
sofreram do calcanhar de Aquiles dessa corrente, uma população, em sua maioria,
ainda muito anti-petista e conservadora, recebendo um verdadeiro veto em suas
pretensões.
Já em Fortaleza, território político de Ciro
Gomes, uma “Frente Ampla” foi organizada em torno do moderado José Sarto (PDT),
médico, que em nenhum momento acenou ao “extremo” lulo-petismo, mesmo tendo o
apoio de PT e PSOL no segundo turno. Sarto enfrentava uma candidatura
manifestadamente bolsonarista, Capitão Wagner (PROS), que em primeiro turno
teve um nicho de voto muito consolidado que lhe deu a vaga, sem muito sustos,
no segundo turno. A exemplo do caso Biden, o entorno de Sarto também imaginou
uma vitória tranquila em segundo turno, porém, como acontecido nas eleições
norte-americanas, a Frente Ampla de Fortaleza foi surpreendida com uma vitória
apertada, na qual Capitão Wagner teve uma votação muito acima da esperada.
Confirmando novamente a tese do livro de que o populismo autoritário possui,
sim, uma alta capacidade de votação, que muitas vezes não são detectadas em
pesquisas eleitorais.
Um outro caso que pode ser lembrado pelo
leitor seria a eleição em Belém, vencida pelo candidato Edimilson Rodrigues, do
PSOL, que também reuniu em torno de si uma ampla gama de apoios perante uma
candidatura bolsonarista. Não seria o caso de uma vitória de uma Frente Ampla
de Esquerda? A atenuante no caso de Edimilson é ser o candidato eleito uma figura
já conhecida da política local, ex-prefeito da capital por dois mandatos,
1997-2004. Também conseguiu uma vitória apertada na capital paraense.
É certo que o livro “Como as Democracias
Morrem” traz uma visão estadunidense de fatos históricos ocorridos no mundo.
Entretanto, traz também em seu bojo observações empíricas que sustentam a sua
tese. As derrotas em segundo turno dos dois ensaios da estratégia de “Frente
Ampla de Esquerda”, a vitória de candidatos moderados dentro de uma lógica de
frente ampla, e o sucesso de candidaturas de centro, que procuraram se afastar
do rótulo de esquerda/direita, muitas destas candidaturas de políticos
“experientes”, parecem dar um recado de qual das duas correntes de “frente
ampla” têm maior chance de sucesso com a população.
Ciro é constantemente criticado por conta de uma eventual inconstância ideológica. Boa parte dessa crítica, advém da prática política do ex-ministro de observar experimentações econômicas, políticas e sociais pelo mundo, depreendido de preconceitos doutrinários e ideológicos. O que para alguns é motivo de descrédito, para Ciro tem sido um dos motivos da sua exitosa carreira política: seguir a óbvia lógica de traduzir e implementar práticas que deram certo em outras partes do globo aqui no Brasil. Tal postura guarda, inclusive, coerência com a filosofia política de seu guru Roberto Mangabeira Unger, que tem no centro da sua admiração o modelo federalista de Estado, justamente a capacidade de produzir diversas experimentações institucionais nos entes autônomos. Experimentações que podem posteriormente ser usadas pelos outros entes federativos.
A adoção da tese defendida em “Como as Democracias Morrem”, uma experimentação exitosa em diversos países do mundo que enfrentaram a questão populista autoritária, parece mover o ex-ministro. E o resultado das eleições municipais de 2020 podem justificar a sua aposta. Ousa-se dizer que, talvez, seja o único caminho de um projeto desenvolvimentista progressista alcançar o poder em 2022. Um desafio que tem em seu calcanhar de Aquiles a construção de um bloco de votos, que vá da centro-esquerda a centro-direita, que possibilitem a ida desta FRENTE AMPLA para um acirrado segundo turno.
(*)
Advogado, formado pela Universidade Federal Fluminense, especialista em Direito
Público.
Fonte: Jornalistas Livres
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