Para
facilitar a aprovação do Projeto de Lei (PL) nº 2401/2019 encaminhado pelo
governo federal, que regulamenta o ensino domiciliar, uma promessa de campanha
do presidente Jair Bolsonaro (ex-PSL), a deputada bolsonarista Bia Kicis,
presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, resolveu
fazer uma manobra para aprovar primeiro um projeto que altera o Código Penal.
O PL 3262/19, de autoria de Kicis e das deputadas Chris Tonietto
(PSL-RJ) e Caroline de Toni (PSL-SC), propõe mudar o Artigo 246 do Código
Penal, justamente aquele que caracteriza como crime o ato de famílias optarem
pelo ensino domiciliar, o chamado “homeschooling” que, na prática, autoriza
pais a não mandarem os filhos para escola.
A manobra legislativa é que esse PL estava inicialmente apensado
ao texto que visa instituir a modalidade de ensino residencial no Brasil, mas
foi retirado da proposta original e está tendo um trâmite independente.
Se aprovado o projeto das deputadas eleitas pelo mesmo partido
pelo qual Bolsonaro se elegeu, pais ou responsáveis não poderão ser punidos por
abandono intelectual caso optem pelo ensino domiciliar.
Até agora, criança na escola é lei e pais ou responsáveis por
crianças e adolescentes que se negam a cumprir com essa responsabilidade social
podem ser punidos. As deputadas bolsonaristas e o próprio presidente negam que
o papel do ambiente escolar na formação do ser humano é fundamental para o
desenvolvimento intelectual e quer aprovar propostas que representam um
retrocesso no sistema educacional brasileiro.
Para Renato Janine Ribeiro, ex-ministro da Educação, no governo
de Dilma Rousseff, a bandeira dos bolsonaristas neste caso, é puramente
ideológica. “É uma forma de sair das verdadeiras discussões e debater um
assunto extremamente pontual”, ele diz.
A afirmação de Janine tem base nos dados que vêm sendo
divulgados sobre o número de famílias que estariam interessadas em manter as
crianças em casa, sem ir à escola. Esses números, geralmente são divulgados em
redes sociais e vêm de grupos que defendem o homeschooling, em geral, são grupos
ligados à religião.
“Temos 40 milhões de crianças e adolescentes na educação básica
e cerca de cinco mil famílias que desejam educar seus filhos em casa, segundo
dados, ou 20 mil famílias, como dizem associações que defendem isso. De
qualquer forma é menos de uma criança por mil”, afirma o ex-ministro.
Para Janine Ribeiro é uma pauta para desviar a atenção das
verdadeiras questões da educação que deveriam estar sendo priorizadas pelo
governo, entre elas, como alfabetizar melhor, como ter salas de aula com menos
alunos para que os professores possam dar mais atenção e como tornar a carreira
do educados mais atrativa. “A profissão tem sido depreciada, em especial na
questão salarial”, diz.
O estrago
Apesar de a estimativa ser pequena, o estrago pode ser grande. É o que diz o
presidente da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE),
Heleno Araújo.
“Se vigorar uma lei assim no Brasil, teremos um aprofundamento
das desigualdades social e educacional. Poderá haver evasão escolar”.
A médio e longo prazos, prossegue o dirigente, haverá um aumento
da violência e da desproteção a crianças e adolescentes já que o Estado estará
desobrigado de garantir o direito humano à educação. Ou seja, se é permitido
deixar a criança em casa, sem nenhuma responsabilização, fica sem efeito o
direito a ter acesso ao ensino.
O presidente da CNTE cita ainda várias outras situações se a
proposta for aprovada. A escola, explica, é um ambiente em que frequentemente
são detectadas situações de abuso sexual, exploração e violência contra as
crianças. E se a criança não vai para escola, esses casos serão encobertos, não
serão denunciados.
Além disso, a segurança alimentar das crianças que corre risco
com a educação domiciliar. “Tem muita família de baixa renda em que as crianças
têm na escola suas principais refeições do dia. Sempre dissemos isso – que
matricular a criança na escola garante a segurança alimentar dela”.
Quem está interessado?
O perfil dos movimentos que defendem o homeschooling, citados pelo ex-ministro
Janine, adotam postura ideológica conservadora e de cunho religioso, atacando o
ambiente escolar.
Um deles, que na verdade oferece ‘serviços’ de acompanhamento ao
ensino doméstico, cita na apresentação de seu site que o método “é projetado
para as famílias que desejam exercer o seu direito de pais educadores, para
substituir as escolas presenciais pela prática do homeschooling e assim
implementar a verdadeira educação personalizada”
Diz mais: que os pais são os únicos verdadeiramente capazes de
“fazer muito mais do que qualquer escola física consegue prometer”.
“A escola poder ter defeitos, precisa melhorar, se tornar mais
atraente, ter novos métodos de ensino, tudo isso é verdade. Mas a escola ainda
é uma grande invenção para socializar a criança”, rebate Janine.
Ele explica que cada um de nós nasce em um ambiente único,
fechado e por melhor que seja, está limitado a um grupo cultural, religioso, de
classe social e a escola é uma maneira de perceber que existem outras formas de
vida além da própria. Esses fatores são de vital importância para o
desenvolvimento intelectual e cognitivo da criança.
Além disso, não podemos esquecer a figura do professor, que
definitivamente não pode ser desprezada e faz parte desse processo, acrescenta
o ex-ministro.
“O professor é preparado para ensinar. Isso é pedagogia, é
conduzir a criança para o conhecimento. É extremamente difícil que um pai ou
uma mãe vá conseguir cominar todas as matérias para ensinar o filho. E não
basta conhecer o assunto, tem que ter formação, tem que saber ensinar”, diz
Janine.
“Se o modelo atual não atente, se há uma vontade de mudar, por
que não participam de forma democrática em nos espaços de decisões do plano
nacional de educação, e da própria escola em vez de criar um espaço paralelo?”,
questiona a Secretária de Finanças da CNTE, Rosilene Correia. “ Isso é
responsabilidade de todos”, acrescenta.
“Se esses grupos não concordam com o modelo, o que pretendem,
por exemplo, na universidade? Vão criar um curso de medicina particular no
quintal de casa?”, diz Rosilene.
Tramitação
Se aprovado na CCJ, o PL que altera o Código Civil seguirá para votação no
Plenário da Câmara. Por não incluir a questão “educação” diretamente no texto,
já que propõe alterar apenas o texto do código penal, o PL não passará pela
Comissão de Educação.
A secretária de Finanças da CNTE, Rosilene Correia, afirma que
“é um absurdo o governo trazer essa questão como pauta prioritária em plena
pandemia, enquanto milhares de estudantes estão sem acesso à escola virtual
durante a crise sanitária, por falta de condições, sem internet, nem material
de acesso.
“Isso é o que deveria estar sendo discutido. O que se espera é
ter mais condições e investimentos por parte do Ministério da Educação, e uma
proposta que possa corrigir as sequelas da pandemia”, diz a dirigente
Ela considera que o projeto trata de interesses da minoria e é
uma demonstração que Bolsonaro tem sim um projeto para a educação – a
destruição.
Somos contra
“O movimento de passar rápido o projeto é fator de extremo risco para a
população”, diz Heleno Araújo, presidente da CNTE. Ele afirma que as entidades
que defendem a educação estão se mobilizando para barrar tanto o projeto
defendido por Bia Kicis no Congresso como quaisquer outros projetos semelhantes
em estados e municípios.
“Não podemos permitir esse ataque à política de educação
inclusive, conquistada no Plano Nacional de Educação”, diz Heleno.
Além de representar um retrocesso, o dirigente ainda reforça que
o projeto fragiliza a condição do professor por ter um caráter elitista, feito
para poucos, mas que abre brecha para milhões de pais e mães não serem
responsabilizados por não cumprir com as obrigações previstas em lei.
O que diz a Constituição de 1988?
O artigo 227 da carta magna brasileira, diz que é dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, com absoluta prioridade, dentre
outros, o direito à educação.
Ainda segundo a legislação brasileira, a educação básica é
obrigatória dos quatro aos 17 anos de idade e é dever dos pais efetuar a
matrícula nas escolas.
Três leis federais regulamentam a obrigatoriedade da matrícula:
o Estatuto da Criança e do Adolescente (Ecriad), a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação (LDB) e o próprio Código Penal.
O artigo 246 do Código Penal é que define como abandono
intelectual do menor de idade, deixar, sem justa causa, de prover à instrução
primária de filho em idade escolar, com previsão de pena de detenção, de 15
dias a um mês, ou multa. Portanto é crime.
(CUT Brasil, André Accarini com edição de Marize Muniz, 10/06/2021)
Fonte: CNTE
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