Não é que
voltou o veto a “criado-mudo”? Por Luis Felipe Miguel. Foto:
Reprodução/BBC
O cientista
político Luis Felipe Miguel, da UnB, escreveu sobre a questão do termo
“criado-mudo”. E também sobre seu veto. O texto saiu no Facebook. Entenda a análise dele.Veto ao ‘criado-mudo’?
Não é que voltou
o veto a “criado-mudo”, com base numa etimologia sem pé nem cabeça, inventada
numa campanha publicitária, remetendo a uma história absurda?
A lista de
palavras vetadas, que li em reportagem da BBC Brasil atribuindo-as a uma
cartilha da defensoria pública baiana, começava com “criado-mudo” e terminava
com “escravo”.
A ideia é que a
palavra “escravo” essencializa a condição do cativo, justificativa para
substituí-la por “escravizado”. Mas aqui se revela uma compreensão bizarra do
funcionamento da linguagem.
É uma espécie de
cartesianismo linguístico, similar ao daqueles que querem abolir “risco de
vida” e “gol de bola parada”, ainda mais estranho porque partindo de gente que,
em geral, prega epistemologias “decoloniais” não eurocêntricas.
E, caso fosse
assim, o operário teria que ser “operarizado”, pois ser explorado não define
sua essência como ser humano. O bolsonarista viraria “bolsonarizado”, já que
sua adesão à extrema-direita não está marcada na genética, mas é fruto de
processos sociais. E assim por diante.
Outras palavras e
expressões vetadas, citadas na reportagem, remetem a origens hoje já
completamente esquecidas – mesmo aceitando que as narrativas explicativas são
verdadeiras, o que está longe de ser pacífico. Ou alguém que fala “de meia
tigela”, “feito nas coxas” ou “a dar com pau” está remetendo à escravidão?
É aquela crença
numa espécie de homeopatia etimológica – à qual, aliás, converteu-se até
Reinaldo Azevedo, no esforço desesperado para apagar seu passado recente de
ultradireitista histriônico. Tal como nas beberagens do dr. Samuel Hahnemann,
os sentidos originais das palavras continuam operantes e potentes, mesmo depois
de séculos sendo apagados pelo uso.
Se fosse assim,
seria impossível falar. A língua é atravessada por preconceitos, crenças
falsas, hierarquias sociais. Mas as palavras se emancipam de suas origens.
Aliás, teríamos
que recusar até “vacina”, já que a palavra, paradoxalmente, se associa ao gado
– exatamente aqueles que resistem a ela!
Eu me pergunto
qual é o ganho de recuperar sentidos que o uso apagou.
Para além de
seu uso especializado, a etimologia era uma diversão de salão. Eu, Luís, podia
espantar os convivas chamando um Clóvis de “meu xará”. Agora, tornou-se uma
fábrica de tretas.
Que bom que não
existe nada mais importante no mundo, que exija nossa atenção!
Enquanto isso,
Patricia Hill Collins continua usando o verbo “denigrate” sem nenhum pudor.
Imagino que não seja o caso de cancelá-la – ela, que se tornou um ícone do
feminismo negro, reverenciada mesmo por muita gente que nunca a leu.
Em Black
feminist thought, seu livro mais conhecido, a palavra aparece já no terceiro
parágrafo. E permanece lá, ao longo das edições revisadas.
Tive a
curiosidade de buscar a tradução brasileira.
“Societally
denigrated categories”, que está já no prefácio, virou “categorias socialmente
preteridas”, o que, francamente, não tem o mesmo peso. Pelo livro afora, todas
as vezes, sem exceção, a palavra foi modificada na tradução.
É uma pena,
porque seria interessante exibir uma estratégia diferente – na verdade, uma
hierarquia de prioridades diferentes. Em vez de recuperar o substrato racista
da palavra, tornando-o novamente ativo diante do público, a fim de estimular
sua má consciência, o que Collins faz é aceitar o processo de neutralização do
sentido originário. Assim, foca suas energias em outras coisas. Mais difíceis
de serem enfrentadas, mais espinhosas, mas também provavelmente mais
importantes.
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