Especialista em cultura e desenvolvimento, Javier Alfaya, diz que a deformação que o bolsonarismo provoca no debate cultural visa a atacar e impedir o acesso de artistas progressistas ao fomento, para favorecer artistas mais conservadores.
Uma das fake news mais disseminadas na eleição de 2018, que circulava sob a desconfiança de que teria origem no bolsonarismo, era a da Lei Rouanet e a suposta mamata dos artistas de esquerda. Desde então, se ouve gente na rua falando do financiamento de artistas por essa lei, sem que o crítico em questão tenha a menor noção de como funciona a tal legislação.
Recentemente, esta mentira simplória foi usada por um artista apoiador de Bolsonaro num show, para atacar outro artista crítico do presidente, e o debate virou inquérito policial e expôs a desinformação e manipulação generalizada.
No dia 12 de maio, um comentário demonizando a Lei Rouanet feito pelo músico sertanejo Zé Neto, parceiro de Cristiano, em um show em Sorriso (MT) foi usado para atacar a cantora pop Anitta, o que despertou a ira dos fãs dela. “Nós somos artistas que não dependemos de Lei Rouanet. Nosso cachê quem paga é o povo. A gente não precisa fazer tatuagem no ‘toba’ para mostrar se a gente está bem ou mal”, disse Zé Neto para uma multidão, referindo-se a uma famosa tatuagem íntima de Anitta, cantora que faz campanha contra a reeleição de Bolsonaro.
O comentário infeliz do artista acabou expondo os mecanismos de cultura que favorecem artistas bolsonaristas e facilitam desvio de verbas em pequenas prefeituras. Mas fizeram também todos se perguntarem o que está por detrás desse ataque sistemático a uma legislação cultural que visa, justamente, controlar e dar transparência ao fomento à cultura.
O arquiteto, especialista em Cultura e Desenvolvimento pela UFBA, secretário nacional de Cultura do PCdoB, Javier Alfaya explica que a polêmica da Lei Rouanet, entre os bolsonaristas, nasceu de um debate saudável, deformado pela desinformação e desonestidade para demarcar campo para uma cultura mais conservadora e atacar artistas ligados ao campo progressista. “Assim, envenenam de forma maliciosa a discussão sobre fomento à cultura no Brasil”, lamenta, em entrevista ao Portal Vermelho.
Privatização da gestão
A crítica original à Lei Rouanet, é que o estado desloca a responsabilidade sobre o fomento cultural, e de certa forma, a gestão da cultura, para os departamentos de marketing e comunicação das empresas. Com a Rouanet, disseminou-se por todos os níveis da administração pública um modelo de leis de renúncia fiscal, em que as empresas deixam de pagar parcela do seu imposto, podendo escolher os artistas e projetos culturais que lhe interessarem mais.
O problema dessa privatização da gestão cultural, segundo Javier, é que passa a haver uma concentração de fomento em regiões mais ricas, onde as grandes empresas estão, no Sudeste. Além disso, pode acontecer de serem sempre os mesmos artistas famosos e celebrados comercialmente os escolhidos, impedindo o acesso de grupos menores com projetos culturais alternativos. Com isso, o debate visa a aprimorar a legislação, criando mecanismos que devolvam ao governo a gestão de quem terá acesso a estes recursos de renúncia fiscal.
O objetivo de devolver ao estado a gestão dos recursos é garantir uma justa distribuição por todo o país, descentralizando e regionalizando os incentivos. Desta forma, a renúncia fiscal poderia ir para algum fundo de cultura, compondo o orçamento do Ministério da Cultura. O governo também pode criar mecanismos de destinação de recursos de lucros de empresas estatais para fomento.
Javier observa que os ataques bolsonaristas, no entanto, nada têm a ver com essa crítica construtiva. Criou-se uma caricatura de fomento cultural, em que, supostamente, artistas ligados ao PT teriam privilégios para acessar os recursos públicos nos governos de Lula e Dilma. Mas o próprio mecanismo da lei não permite isso. E os artistas mencionados, como Chico Buarque, sequer utilizam desse tipo de edital para fazer seus shows.
Pequenas prefeituras, grandes negócios
Depois do comentário polêmico atacando Anitta, começou uma briga de fãs. No meio do caos das redes sociais, uma série de posts do jornalista Demétrio Vecchioli mostrou que a dupla sertaneja não usa a Rouanet, mas leva centenas de milhares dos cofres públicos de pequenas cidades, como Sorriso, que bancou R$ 400 mil de cachê para o show sertanejo.
Segundo levantamentos feitos pela imprensa, antes do governo Bolsonaro, os cachês destes artistas eram metade do valor que recebem hoje.
Apesar do episódio folclórico, não são apenas músicos sertanejos que se utilizam do expediente bolsonarista contra a Lei Rouanet. Músicos pop e sambistas também atacam a lei, fazendo seus shows com altas verbas municipais.
Esses shows de prefeituras, entre outras atividades culturais, movimentam a economia local, geram empregos e reúnem multidões, inclusive das cidades ao redor, com retorno parcial do recursos gastos para os cofres municipais. Mas os critérios de escolha, de fiscalização e de contrapartidas para a cidade não costumam ter controle e transparência, permitindo que os altos valores circulem sem que ninguém saiba quem se beneficiou.
A Lei Rouanet, por outro lado, surgiu em 1991 para racionalizar o volume de verba pública destinada a atividades culturais, ao mesmo tempo que daria transparência ao processo. A disputa pelo edital do governo não garante o recurso, apenas a autorização para que o projeto cultural tente convencer o marketing das empresas. Javier relata que os beneficiados pela Lei Rouanet geralmente são projetos caríssimos que projetam a marca da empresa patrocinadora. É o caso de restauro de áreas históricas, de museus importantes ou realização de musicais da Broadway. Até o internacional Cirque du Soleil foi beneficiado por essa lei, mesmo tendo público elitizado, farto e garantido com ingressos caros.
“Algumas empresas têm receio de usar a legislação de renúncia fiscal para cultura ou esporte, por medo de serem auditadas e fiscalizadas”, afirma Javier sobre outro aspecto polêmico.
Desmonte do fomento cultural
É fácil saber quais são os artistas envolvidos num edital da Rouanet, quanto receberam e com o que gastaram. Eles precisam apresentar projetos minuciosos, além de recibos, documentação e imagens de tudo que fizeram. O processo é tão complicado que somente artistas com equipes especializadas em montar esses projetos e geri-los podem participar dos editais. Essa é uma das críticas de grupos de interior ou periferias menos aparelhados.
Para saber quanto aqueles artistas que atacam a Rouanet receberam das prefeituras, já é bem mais difícil. Não há um sistema ou regras de divulgação: cada prefeitura publica de um jeito. Os shows municipais, em geral, são feitos por escolha direta, sem licitação. Ou seja, o prefeito escolhe o artista de sua preferência e paga o que bem entender sem precisar prestar contas de imediato. O mesmo ocorre com o artista que apenas faz o show e recebe o depósito na conta. Posteriormente, conforme explica Javier, a Câmara Municipal aprova o orçamento geral e o Tribunal de Contas vai analisar isso anos depois. Um privilégio que os artistas beneficiados por editais da Rouanet não têm.
“Na verdade, o privilegiado é aquele contratado sem um processo de avaliação pública ou controle fiscal e social e não um beneficiário da Lei Rouanet”, diz o especialista em gestão e políticas culturais. Apenas 16% dos municípios dispõem de Secretaria de Cultura no país. Ele também menciona que, para além da concentração de renda entre certos artistas ligados a esses políticos, o recurso exagerado para produção de eventos pode implicar em desvio de recursos.
O que está por detrás dessa polêmica bolsonarista, segundo Javier, é o desmonte das políticas de fomento controladas pelo estado. Os ataques à Lei Rouanet não indicam propostas para legislações melhores, como a Lei Aldir Blanc 2, por exemplo, que foi vetada pelo presidente Bolsonaro. Permanece o limbo do fomento cultural localizado, entregue à boa vontade ou má intenção de políticos ligados ao bolsonarismo em prefeituras e governos.
“Fazem críticas com o objetivo de destruir o pouco que tem. Resolve-se o problema ampliando os mecanismos de fomento, desconcentração, descentralização, fiscalização e controle. É uma argumentação desonesta e mentirosa com objetivos políticos”, resumiu.
Para Javier, Bolsonaro está obrigando um futuro governo progressista a responder de forma “muito mais ofensiva, criativa, abrangente e poderosa do que tudo que foi feito até agora”. Para ele, mesmo as inovações importantes do ministério da Cultura nos governos de Lula e Dilma foram tímidas diante do que seria necessário para consolidar uma mudança do caráter de fomento que ampliasse o orçamento pífio destinado ao setor. Algo que deveria estar à altura de uma cadeia produtiva de alto consumo e alta produção, se comparada com outros países.
Fonte: Portal BRASIL CULTURA
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